O Dia Em Que Dorival Encarou A Guarda: polícia, racismo e a banalidade do mal no Brasil

Selene Machado
Mixórdia
Published in
4 min readMay 6, 2017

O filme elegido para esse sábado é um curta metragem brasileiro, o que trás uma pergunta: quantos curtas produzidos em terras tupiniquins você já assistiu? Se a resposta for “poucos” aqui vai uma oportunidade de começar a mudar isso.

Sinopse do curta retirada do IMDB (tradução livre): Dorival, um homem em uma cela, tem apenas um desejo: tomar um banho. Para atingir seu objetivo ele desafia o soldado, o cabo, o sargento e, finalmente, o tenente encarregado da prisão.

São apenas 14 minutos e 43 segundos de pura genialidade cinematográfica, assistam:

O curta, dirigido por Jorge Furtado, é um daqueles filmes em que não se pode ignorar a data de lançamento (1986 — um ano após a abertura do regime militar) sem perder possibilidades de sentido. Mesmo fazendo referência a um período histórico específico a película continua extremamente atual por discutir questões como o racismo institucionalizado e a militarização da polícia.

O filme e os anos de chumbo:

Já na abertura do filme, um desenho de cadeado aberto faz referência a dois momentos: um contextual e o outro diegético (de dentro do filme). Eles são, respectivamente, a abertura do regime militar em 86 e o banho de Dorival.

O banho representa uma vitória de Dorival, vitória que não vem fácil: é preciso desafiar as forças armadas e ter o corpo ferido. Como não pensar nas forças rebeldes torturadas e assassinadas na luta contra a ditadura?

Além disso, no desenvolvimento do curta, os policiais aparecem expostos à elementos da cultura norte americana: Um deles lê a HQ de faroeste, Tex, e outro assiste ao filme Casa Blanca. Tais elementos parecem denunciar a influência estadunidensa na ditadura.

O racismo e a truculência da polícia militarizada

No filme o primeiro policial a entrar em cena associa Dorival ao King Kong, um macaco, o que demonstra um pensamento racista cuja origem é a animalização dos negros, relegando-os à selvageria, à irracionalidade, o que os afastaria da categoria de humanos.

Essa animalização é típica do racismo e aparece também de outras formas não retratadas no filme, como, por exemplo, na hipersexualização de corpos negros femininos e masculinos.

Em outros momentos o racismo é retomado, como quando os policiais se referem de forma pejorativa à Dorival, chamando-o de “crioulo” e de “negrão”. Em um trecho do filme, o sargento pede desculpas ao tenente, único negro do corpo policial, por chamar Dorival de “crioulo” de forma depreciativa.

O racismo na polícia não é novidade e é mortal. Na polícia de São Paulo dois em cada três jovens mortos são negros , enquanto no Rio de Janeiro, em 2015, 77% dos mortos pela polícia eram negros, ou pardos. Não existem motivos para acreditar que no resto do Brasil a situação seja diferente, e a dificuldade em achar dados semelhantes que englobem todo o país parece apontar um descaso com essas mortes.

O filme mostra uma polícia militarizada e hierarquizada, herdeira da ditadura militar. As ordens vindas, supostamente, dos superiores não são questionadas e os policiais não demonstram habilidade de dialogar. A única forma de persuasão que apresentam é a violência. É uma polícia muda, sem voz, truculenta. No final, oito homens são levados à cela de Dorival e o surram.

O que nos leva a “banalidade do mal”

Os policiais cumprem uma ordem vazia sem se perguntar sobre a origem da mesma e sem refletir sobre a violência que ela implica. O que remete ao conceito de banalidade do mal, cunhado por Hannah Arendt após presenciar o julgamento de Eichmann (tenente coronel da SS). Para a cientista política :

“o mal, quando atinge grupos sociais, é político e ocorre onde encontra espaço institucional. A banalidade do mal se instala no vácuo do pensamento, trivializando a violência.” (A Banalização do Mal, Tony Bellotto)

Ficamos por aqui com uma das frases de Dorival para fechar o texto:

“Se não sabe de onde vem as ordens e obedece, não é homem, é um boneco”

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