O Quarto de Jack: histórias de cativeiro

Selene Machado
Mixórdia
Published in
5 min readMay 20, 2017

A infância pode apresentar uma inocente incompreensão diante do absurdo e da violência e alguns filmes explicitam essa delicadeza diante de situações brutais. É o caso de, por exemplo, O labirinto do fauno (2006), A vida é Bela (1997), A menina que roubava livros (2013), O menino do pijama listrado (2008). E é o caso também de O quarto de Jack (Room, 2016), meu filme preferido do ano.

Sinopse: Joy (Brie Larson) e seu filho Jack (Jacob Tremblay ) vivem isolados em um quarto. O único contato que ambos têm com o mundo exterior é a visita periódica do Velho Nick (Sean Bridgers), que os mantém em cativeiro. Joy faz o possível para tornar suportável a vida no local, mas não vê a hora de deixá-lo. Para tanto, elabora um plano em que, com a ajuda do filho, poderá enganar Nick e retornar à realidade.

Muito pode ser dito sobre esse longa-metragem maravilhoso, mas, nesse texto irei focar em como o filme ilustra aspectos de casos reais de privação de liberdade.

Existe um tipo peculiar de sequestro que não ambiciona resgate, e sim, a posse irrestrita sobre outro ser humano. Várias pessoas já foram mantidas em cativeiro durante um longo período de tempo, vítimas desse crime.

O Quarto de Jack não é um filme baseado em fatos reais mas é possível perceber, assistindo-o, que não foram poupadas pesquisas sobre histórias de cativeiro para fundamentar a produção.

Conheça alguns casos reais e entenda a fidelidade do filme ao tema:

  • As vítimas e os agressores:

Muitas vítimas são sequestradas ainda na infância ou adolescência e, embora a maior parte delas seja mulher, existem também alguns casos em que a vítima era do sexo masculino.

O sequestrador é sempre um homem, embora algumas vezes seja ajudado por uma mulher, que, geralmente, é sua esposa - como nos casos de Jaycee Lee Dugard, raptada nos Estados Unidos aos 11 anos de idade por Philip Garrido e sua esposa; e Colleen Stan, que também foi sequestrada nos Estados Unidos por Cameron Hooker e sua esposa, quando tinha vinte anos de idade.

Philip e Nancy Garrido, sequestradores de Jaycee Lee Dugard/ Crédito Wikimedia Commons

Em “O quarto de Jack” a protagonista foi sequestrada por Old Nick aos 17 anos e mantida em cativeiro durante 7 anos.

  • Relação vítima e sequestrador: O raptor emprega violência física, sexual psicológica e material sobre suas vítimas.

A austríaca Natascha Kampusch foi sequestrada em 1998 por Wolfgang Priklopil, quando tinha 10 anos de idade. Kampusch escreveu um livro, com o título 3096 dias, sobre o período de 8 anos em que passou em poder de seu sequestrador.

No livro a garota relata os constantes ataques que sofria de Priklopil que lhe batia violentamente e deixava-a nua (de forma a dificultar sua fuga, presumindo que ela não correria sem roupas).

O raptor mantinha controle extremo sobre o ambiente em que ela vivia (um porão): até a iluminação estava em seu poder, se ela ficaria na claridade ou no escuro. Natascha era privada de comida e quando fugiu pesava apenas 48 kg (apenas 3kg a mais de quando foi sequestrada, aos 10 anos).

Além disso, Priklopil dizia constantemente que ninguém mais estava procurando pela menina e menosprezava-a minando sua autoestima e confiança.

Wolfgang Priklopil, sequestrador de Natascha Kampusch. Crédito: Wikimedia Commons

O controle sobre a alimentação, a violência e a depreciação constante sofridas pelas vítimas também são relatados nos livros: Uma vida roubada, escrito por Jaycee Lee Dugard, e Libertada, escrito por Michele Knight, (uma das três vítimas de Ariel Castro, a primeira a ser sequestrada, em 2002, quando tinha 20 anos). Além disso Dugard e Knight relatam os estupros que sofriam constantemente.

Ariel Castro sequestrador de Michelle Knight, Amanda Berry e Georgina “Gina” DeJesus/ Crédito: Wikimedia Commons

No filme encontramos vários exemplos das violências retratadas pelas vítimas de casos reais. Em uma das cenas cruciais do longa Old Nick suspende o aquecimento elétrico do espaço onde Joy e Jack estavam confinados, como forma de punição.

  • Filhos:

Algumas das vítimas tiveram filhos de seus sequestradores, assim como a protagonista do filme, Joy.

Jaycee Lee Dugard teve dois e Elizabeth Fritz, sequestrada aos 18 anos pelo próprio pai, Joseph Fritz, teve 7.

Joseph Fritz, conhecido pela alcunha de “o monstro de Amstetten”
  • Assédio da mídia — Uma crítica ao sensacionalismo:

Por serem casos que envolvem muita comoção pública existe um enorme assédio dos meios de comunicação sobre as vítimas. Não é dado tempo a elas para se restabelecerem minimamente sem a perseguição dos repórteres.

Além disso, os jornalistas nem sempre tem sensibilidade para lidar com as vítimas de casos complexos. Os profissionais podem ser cruéis, tanto com as perguntas feitas, quanto com a forma de lidar com respostas que fogem ao que esperavam.

Isso pode ser visto claramente no filme com a insensibilidade das perguntas feitas para Joy pela jornalista (é possível perceber o julgamento que a profissional faz, mesmo não tendo a menor ideia do que é passar pelo que a personagem passou).

Uma das vítimas de sequestro que teve uma das relações mais complicadas com a mídia e o público foi Natascha Kampusch, sobre isso ela diz :

“As coisas não são totalmente pretas ou brancas. E ninguém é totalmente bom ou mau. Isso também vale para o sequestrador. Essas são palavras que as pessoas não gostam de ouvir de uma vítima de sequestro. Porque os conceitos de bem e mau já estão claramente definidos, conceitos que as pessoas querem aceitar para não perder o rumo em um mundo cheio de tons de cinza.”

“Quando falo sobre isso, posso ver a confusão e o repúdio no rosto de muitas pessoas que não estavam lá. A empatia que sentem pela minha história se congela e se transforma em negação. Pessoas que não têm ideia da complexidade do cativeiro me negam a capacidade de julgar minhas próprias experiências ao pronunciar três palavras: ‘Síndrome de Estocolmo’.”

Esse é um dos motivos para que a readaptação social das vítimas de crimes como esses seja tão dolorosa. Além de terem que lidar com problemas como transtorno pós traumático, readaptação a relações familiares e afetivas que não possuem a mesma dinâmica do período da abdução, entre outros, ainda é preciso lidar coma espetacularização dos crimes de que foram vítimas e com os julgamentos da mídia e opinião pública.

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