Um dedinho de prosa com Mia Couto

Selene Machado
Mixórdia
Published in
3 min readApr 24, 2019

Foi apenas no dia seguinte que me dei conta: eu havia realizado minha primeira entrevista como jornalista formada. E logo com quem? Mia Couto. Um dos grandes nomes da literatura contemporânea, o moçambicano é o autor mais traduzido de seu país.

Tão logo adentra a sala de imprensa Mia causa uma impressão em mim: ele entra timidamente, como se também fosse um jornalista à espera do entrevistado — ou como se o escritor recusasse o posto de fonte, sendo, por natureza, aquele que observa.

Na gravação ouço minha voz de criança hesitante, sucedida pela voz calma, baixa, e profunda de Mia (será que um dia, eu aprendo a falar assim? Como um sábio das histórias de fantasia; ou um contador de histórias na noite do sertão…). Ele fala em um bonito sotaque, cantante, no português moçambicano que até então me era desconhecido.

Mia veio ao Brasil para participar de uma tour que promove a nova edição do Grande Sertão: Veredas, editada pela Companhia das Letras. O assunto, Guimarães, aumenta ou diminuí meu nervosismo?

Sei lá. Os dois ao mesmo tempo. Não, na verdade, diminuí. Porque Rosa me é tão familiar quanto os Buritis no fundo do quintal de meu pai (na parte aguada do sertão).

Como mineira que sou, transformo a entrevista em um dedinho de prosa (fico devendo o café), ou em papo de mesa de bar (só nos falta tempo e cerveja ). Interessada nos sentimentos de Mia sobre Guimarães, porque ambos são escritores do sentir. Segue o resultado de todas essas emoções:

Desço as escadas com os joelhos tremendo.

É hora do segundo round ! Mia fala para o auditório lotado, com lucidez, sobre um sem número de coisas: O ciclone Idaí e a destruição de Beira, sua cidade natal; a influência da literatura e cultura brasileira do outro lado do Oceano; o respiro que Rosa ofereceu a um prisioneiro de um campo de concentração em Cabo Verde;

Sobre o obscuro presente do Brasil:

“Meus amigos brasileiros asseguram-me que Grande sertão podia ter sido escrito nos tempos de hoje. Com líderes populares sendo assassinados, com fazendeiros e madeireiros invadindo terras indígenas, com a dificuldade de o Estado de direito fazer frente aos jagunços que agora têm novos nomes e novos mandantes. Disparar 80 tiros sobre uma inocente família só pode ser mais que um acidental excesso. Pode ser uma manifestação de uma outra lei que se quer impor à margem de toda a lei.”

Por fim, Mia deixa em mim a impressão de que nós não habitamos os lugares, eles que habitam em nós.

“Tal como o sertão de Rosa, a minha cidade é mais da palavra do que da terra. Os nosso lugares de afeto são sempre mais da linguagem do que da geografia. Os territórios onde nascemos são, como diz Rosa, esses pastos que carecem de fecho. Agora sei: nenhum ciclone me pode roubar essa pertença.”

Obrigada, Mia Couto!

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