Dia 922, Uma longa história sobre estrada

Introdução do livro

Aldo Lammel
Livro "Dia 922"
6 min readMar 25, 2016

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© Aldo Lammel

INTRODUÇÃO

Frio azul de continente novo, de cores quentes e rosadas ao entorno. Uma Antártida em dias cada vez mais curtos. Sabíamos com muita antecedência que aquele seria o último. Minutos antes, deitados ao gramado, eu reparava nas folhas do plátano acima. Depois, vozes aleatórias, ecos do cimento e metal. O relógio de teto grande o bastante para que não pudéssemos ignorá-lo. Minutos nunca correram tão rápidos.

— As minhas mãos… — disse a moça em graça, sorrindo como sempre em quase risada. Acostumara-se a pedir-me desculpas por tal bobagem. Sua dor cintilava através dos olhos de água enquanto suas palmas, como sempre umedecidas, eram o mais insignificante de seus muitos detalhes.

Eu, sem desviar-me do rosto baunilha flanqueado por seu cabelo curtinho que não lhe tocava os ombros, mantive o queixo erguido junto de meu mais desesperado sorrir até o alarme bater no horário. Apesar das aparentes contradições que nos levaram à direções contrárias, aquela moça foi a mulher que eu…

Foi único e irremediável.

Afasto-me por um instante do laptop aberto sobre o colo a dois mil metros de altitude. Um resquício de bateria, somente. Nem deserto ou montanha me inspira hoje. Quando procuro escrever sobre o agora, apago os parágrafos porque já não é mais relevante. Tantas coisas e eu só penso no ontem. Coisas da estrada…

Estrada. Foram anos dentro dela sem voltar para casa. Se eu não perder o voo, serão 1.135 dias por múltiplos países e à mercê do acaso. Talvez umas três ou quatro vezes a estrada quase me matou por conta disso. Curioso pensar que nos primeiros incidentes eu me tinha conhecendo a adrenalina de verdade; aquela de saber que faltou um triz pr’eu me fodê. Cada vez que o inesperado ocorria, sensações me vinham em paralelo e com força; com a vida pulsante, pedindo por novidades aqui dentro. Às vezes eu tinha raiva; outras, medo, porém logo depois, já fora de qualquer real perigo, a explosão da euforia batia tão firme quanto. Satisfação pura que por vezes desacelerava a noção de tempo. De fato, eu achei que, querendo ou não, momentos como aqueles de grande risco convergiriam no ponto-alto da viagem, mas não. Precisei me ver no extremo, isolado, sedento, cara-a-cara com uma besta selvagem para me dar por conta que qualquer um daqueles instantes não fora — NEM DE PERTO — o momento mais forte da jornada. Nada pôde ser tão imersivo e único quanto meus meses no continente mais gelado. Sem mapas a me nortear, sem recursos que me dessem mais do horizonte. Despido como nunca, eu me acabava efusivo em emoções como o medo que eu nunca havia sentido… Não daquele jeito! Era eu defronte ao mar desconhecido, rodeado pelo maior que eu. Um gélido azulado tão intimidador que tornara-se, no passar dos meses, a única intempérie que eu queria escrever sobre. Aquilo foi pessoal. A coisa mais pessoal que já vivi. Aquilo guiou-me para o fim de um espetáculo, o dia mais terrivelmente lindo de uma história de muitas páginas. No dia 922 eu soube que o topo não estaria na última página; que clímax do que é real não respeitaria estruturas literárias. No 922 eu atingi todos os meus limites e, quando o alarme soou, foi o início da minha volta para casa ainda que eu não soubesse.

A tela se desligou. Empurro o laptop para dentro da mochila e abraço pensativo os joelhos. Por entre coisas misturadas, uma em especial tão estranha embora previsível: a viagem está para acabar. Cá estou há dois dias acampado sobre uma rocha no árido elevado e terroso ao sul do Irã. Massa e atum a cozinhar sob o sol persa de deserto indelével pela última vez, deixo o pranto mudo da saudade prematura e irrevogável transbordar-me pela encosta íngreme do desfiladeiro. Comigo na barraca, dois milhares de páginas de diário bruto; dezenas de horas de diálogos e monólogos registrados em áudios e vídeos. E as cartas… Cartas de uma ou duas páginas de caligrafias diferentes e com trechos que, apesar dos esforços, não consegui traduzi-los. Mas aqui trago-lhe tudo. Tudo para que, abrindo o livro dos truques e aprendendo a como fingir uma viagem para trás no tempo, eu possa estender a mão a você. Por enquanto, não me questione, só a pegue como um bom amigo de longa data. Abandonei momentos, coisas, lugares e pessoas, talvez até mesmo alguma sanidade… mas iniciei uma aventura que buscava o além do crível.

Deixe-me te trazer até o topo da montanha, mesmo que por um continente gelado que lhe faça tremer a cada instante. Num salto no calendário, lá para trás de muitas páginas, me veja a gritar de euforia na solitude dos desertos do Chile e Irã; dirija comigo, segure o volante a 150 quilômetros por hora com os Alpes austríacos ao lado. Abra o vidro, permita o ar lhe estapear a cara. Grite o que quiser! Seja doente mental, mas berre a todo pulmão à sua liberdade! Sinta-a! Dane-se se formos pegos; nunca tive dinheiro e tampouco falava outros idiomas! Cruze o inverno andino até teus dedos dar sinais de congelamento ao tocar o céu boliviano; desde o colorido quente do Caribe da Colômbia ao monocromático álgido do Mar Negro no Cáucaso; pegue uma bebida hispânica, cante qualquer coisa em tcheco e não se assuste se eu sumir por horas ou dias, perdido entre as pernas de alguém que dance Salsa. Trepadas casuais, paixões fugazes de mentira. Ou talvez não. Descubra. A estrada brinca com o imaginário de quem repara na mochila com múltiplas bandeirinhas costuradas a ela; porque na solidão do voo solo, meu caro, os acidentes flertam nus por teus parágrafos até que o impossível aconteça. Há tanto para ver através destas anotações…

Levanto-me, faço um par de fotografias e começo a guardar as coisas. Um período de vida simples aonde o contexto foi a minha maior riqueza.

© Aldo Lammel

— Sabe que eu gostei daqui?! — distrai-se meu amigo nova-iorquino de tantas aventuras.

Sorrio a ele. Calmo e ciente de minha loucura, serpenteio montanha abaixo, alcanço a vilinha de sopé e abasteço-me de água da bica. Coberto por tecidos ao rosto, caminho com a pesada mochila até alcançar o acostamento da estrada principal. Com o asfalto por debaixo das mesmas botas que iniciaram a viagem, meu polegar se eleva, eu abaixo o scarf e visto um semblante mais amigável. Na outra mão, o papelão com “Teerã” escrito em farsi.

Ao final da mais emblemática viagem de minha vida, eu, que achava que seria herói, tornei-me um contador de histórias, ciente de que meus pés estão prestes a deixar os anos dourados que não voltarão sequer se o dom da escrita me pertencesse. Mesmo que alguma busca por notoriedade fizera parte de meus textos, Dia 922 é a prova empírica da minha própria insignificância frente a um mundo incorrigível; um lugar em que as rédeas de nosso caráter e habilidades dão a ideia de direção, embora estejamos, você querendo ou não, numa dança caótica em contagem regressiva de encontros e despedidas.

Convido-lhe a gargalhar e chorar pelo extraordinário ou trivial que aqui se manifestará em capítulos. Não espere de mim aplausos ao Sol ou abraços em árvores. Trata-se de sonhar, de fazer acontecer e, fundamentalmente, de se divertir. E se não houver jeito de minhas motivações fazerem sentido, então brigue comigo! Mas na soma de todos os fragmentos é inegável que eu tenha para você uma longa história sobre estrada.

Aldo Lammel
Dia 1.125, arredores de Persépolis, Irã.

Vídeo, Episódio © Aldo Lammel
Plano original © Aldo Lammel

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