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Coloque um Pouco de Política no Seu Discurso de Moda Sustentável

Se não colocarmos política no movimento sustentável, viveremos na utopia da autorregulamentação de mercado sem avanços para transformar a lógica dominante

Modefica
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9 min readOct 30, 2018

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Esse texto está para sair desde o começo das eleições, mas só agora consegui tempo (ou, para ser honesta, ânimo) para tirar ele da mente e colocar no mundo. Ânimo porque, admito, me sinto cansada só de pensar na ideia de ter que explicar o porquê fascismo e sustentabilidade não combinam. Ou desenhar os porquês apoiar alguém cujo plano é fechar o Ministério do Meio Ambiente e falar em sustentabilidade é lunático. Ou falar, de novo, o que já falamos tanto por aqui: a economia acima de tudo e a completa negação de que o bem estar social está vinculado a uma economia interdependente da natureza, não corrobora (ou não deveria) com as ideias de quem se diz defensor de qualquer coisa no campo dos direitos humanos e ambientais em primeiro lugar.

Mas talvez o que realmente tenha me dado um gás para expurgar esse texto foi estar, acima de tudo, extremamente incomodada por ver pessoas desvinculando política institucional de sustentabilidade. Como se uma não dependesse da outra para acontecer. O campo dos isentos, mais do que o campo dos convencidos, me gerou, nessas eleições, um tipo de desconforto difícil de colocar em palavras. Quem fala de sustentabilidade, reuso, transformação, disrupção, enche o feed com foto na Amazônia, abraçando índio, fazendo ioga, Namastê, mas simplesmente lavou as mãos do debate contra uma política fascista e claramente irresponsável para com as pessoas e o meio ambiente por medo de perder seguidores, é exatamente o tipo de pessoa que nós não precisamos no movimento para alcançar um mundo sustentável.

Veja bem, não é sobre tirar carteirinha de “ativista” de ninguém. É sobre cobrar o mínimo de responsabilidade sobre o discurso (afinal, você faz o que você posta?). Se não colocarmos um pouco (ou melhor, uma quantidade bem considerável) de política no movimento da sustentabilidade e da moda sustentável vamos viver na utopia da autorregulamentação de mercado sem avançar nos campos necessários para realmente transformar a lógica (operante e dominante) e alcançar a prosperidade.

Talvez eu gostaria que fosse diferente. Talvez eu gostaria que tívessemos qualquer possibilidade de criar um Bem Viver, ou um ecossocialismo, ou um pós-capitalismo, ou seja lá o que for sem precisarmos minimamente olhar para a relação entre política institucional e mercado. Mas eu não posso fingir que isso é possível. Eu já li muitos que vieram antes de mim para me dar o luxo da isenção: Naomi Klein, Alberto Acosta, Eduardo Viveiros, Néstor García Canclini, Ricardo Abramovay e Noam Chomsky só pra citar alguns.

Então, queridas e queridos leitores, cobrem das pessoas e das marcas que vocês seguem e admiram nesse ambiente da sustentabilidade posicionamentos políticos. Não há mais tempo para se manter em cima do muro e acreditar num movimento da moda sustentável sem política. Ele pode (e deve) ser suprapartidário, mas ele jamais poderá ser apolítico. Como bem diz a imagem cedida a nós pela querida Luiza Brasil para ilustrar esse artigo, tudo é político.

Como provocação ainda não tão elaborada quanto eu gostaria, mas já possível de ser compartilhada com vocês, deixo abaixo algumas justificativas dos porquês não se faz moda sustentável sem política.

1. Não vai ter “fibras sustentáveis” enquanto a bancada ruralista tiver força.

Em agosto, estive na maior fazenda de plantação de algodão do Brasil. Localizada em Goiânia, a imensidão de 20 mil hectares é de domínio da maior empresa agrícola do mundo que detém (pasmem) 440 mil hectares. Se gostam de chamar orgânico de ideologia, naquele momento eu tive certeza que o agronegócio também é. Vivi para ouvir que o orgânico faz mal, que agrotóxico é remédio e não veneno e que agropecuaristas não só são protetores da biodiversidade como também os maiores produtores de alimento do mundo (eles só se esquivaram de dizer que esse alimento é, na verdade, ração de gado).

Foi naquele momento que tive outra certeza: é impossível pensar em algodão orgânico ou sustentável num cenário de domínio, e incentivos, ao monopólio da terra. Primeiro, porque enquanto tiver monopólio da terra por parte de uns, outros vão ficar sem terra (muitos desses, inclusive, donos dessa terra muito antes dos europeus chegarem por aqui). Segundo, não há sustentabilidade que dê conta de monoculturas tão grandes. A natureza é biodiversa e a monocultura só é possível com muita intervenção humana antinatural.

O algodão é cultivado em plantações rotativas, ou seja, uma parte do ano planta-se algodão, em outra parte soja e milho (a ração de gado). A bancada ruralista no Congresso e por meio de lobby, tenta, com êxito, diminuir a demarcação de terras indígenas e proteção da floresta para conseguir expandir suas terras (e seu lucro). Ela está tentando, também, tornar o uso de defensivos agrícolas mais fácil e sua regulamentação menos burocrática. Apesar de já ter poucos funcionários porque o trabalho nas monoculturas é, majoritariamente, feito por máquinas, há também uma sede insaciável por diminuir direitos dos trabalhadores.

Quando vemos 100% da bancada ruralista apoiando um candidato, podemos ter certeza absoluta que as defesas de distribuição de terra e proteção da biodiversidade estão em risco caso tal candidato seja eleito (assim como a segurança de quem se coloca contra o avanço do agronegócio). Quando um plano de governo não menciona agroecologia, apoio ao pequeno produtor, ampliação do cultivo de orgânicos e redução de uso de agrotóxicos, podemos deixar de lado qualquer esperança de ver o cultivo de algodão orgânico e mais sustentável crescer.

Algumas empresas podem ampliar o uso do algodão orgânico em seu mix de produtos (inclusive e sobretudo importado), mas isso, jamais, será suficiente para transformar a lógica de monopólio de terra que segue em curso desde o Brasil colônia (a custo de muito sangue). Produção orgânica só será viável com a descentralização de terra e multiculturas, e isso só vai acontecer por meio da política institucional (e do reconhecimento e fortalecimento dos esforços daqueles que lutaram para melhorar a vida e o cultivo dos pequenos produtores e dos assentamentos como ONGs, Institutos, empresas e pessoas que dedicam uma vida lutando contra a maré).Até lá, as marcas vão continuar dizendo que o algodão orgânico é caro e sua produção insuficiente (duas verdades), e que algodão de monoculturas com uso “controlado” de agrotóxicos é o mais sustentável que podemos ter (em grande escala).

Eu poderia seguir no debate da viscose ou da exploração já injustificável do petróleo para produção das fibras de plástico. Mas acredito que vocês já entenderam meu ponto.

Dica: Continue lendo sobre o desenvolvimento do algodão orgânico no Brasil com as pesquisas da Textile Exchange e não deixe de dar um alô para o Sílvio, diretor da ONG no país e um conhecedor da realidade da produção de algodão brasileira. Conheça o trabalho de Bia Saldanha com a borracha nativa e os índios na Amazônia; conheça o trabalho da Francisca Vieira da Natural Cotton Collor, com assentamentos e agricultura familiar. Se inspire em quem está no campo e na floresta e descubra porque eles jamais podem se isentar.

2. Não vai ter logística reversa e economia circular sem incentivo e punição por meio de legislação.

Ninguém vai cuidar do próprio lixo se não for obrigado ou se ele não der dinheiro. Infelizmente. Enquanto marcas, corporações, empresas (e até mesmo sociedade civil) não verem incentivo econômico para cuidar do que despejam no mundo, a logística reversa será sempre uma tentativa frustrada de redução de danos (principalmente, danos de imagem). Eu sempre digo que as empresas tiveram tempo o suficiente para se auto regulamentar e não o fizeram, então é um pouco ingênuo, da nossa parte, esperar que elas o façam agora. Até porque, temos pesquisas que corroboram com a crença de que a maior parte das empresas só muda quando é obrigada e/ou vai perder dinheiro (a curto prazo).

Sem uma legislação de obrigatoriedade de logística reversa, algo como a Política Nacional dos Resíduos Sólidos passando a valer para têxteis e moda, e sem incentivo (principalmente fiscal) ao uso de matérias-primas não virgens, para tornar a lógica da reciclagem e de reuso viável economicamente, a economia circular não será nada mais do que uma etiqueta verde tentando justificar e viabilizar a longo prazo a produção e venda de cada vez mais produtos.

Ao mesmo tempo, é imprescindível que governos tomem essa responsabilidade para si, principalmente quando parte da estratégia de crescimento econômico passa pelo aumento do consumo e diminuição de impostos. Se ele não entrar no jogo junto com as empresas, quem vai pagar essa conta é primeiro o meio-ambiente e, em consequência imediata, nós mesmos. Por sua vez, apenas em um estado democrático teremos chance de cobrar essa postura e se posicionar totalmente contra qualquer tipo de isenção não favorável ao “desenvolvimento” sustentável.

Já falamos sobre isso aqui, aqui e aqui. Mas reforço ainda mais esse posicionamento com a fala do, entre outras coisas autor, Alberto Acosta em O Bem Viver: “acreditar que os problemas ambientais globais se resolverão com medidas de mercado é um erro que pode nos custar muito caro: está demonstrado que as normas e regulamentações — embora insuficientes — têm sido mais efetivas que “as leis” de oferta e demanda preconizadas pela economia capitalista”.

3. Não vai ter combate ao trabalho análogo à escravidão sem equidade social.

O combate ao trabalho análogo à escravidão está longe de ser algo simples. Exige esforço do governo e das empresas, além de consciência e demanda social, atuando em conjunto para erradicar a prática. Entretanto, enquanto houver desigualdade social e pessoas em situação de vulnerabilidade, ficaremos correndo atrás do rabo. O combate ao trabalho análogo à escravidão precisa de um Ministério Público do Trabalho com força para flagrar e punir, e para articular melhorias sistêmicas e duradouras. Precisa da revogação da atual reforma trabalhista e construção de uma nova reforma, construída a partir do diálogo com diferentes atores, para incorporar as necessidades dos trabalhadores contemporâneos, a PJtização e outras demandas que a nossa atual legislação não dá conta. Mas, acima de tudo, precisa de equidade social e um sistema que inclua e não exclua.

Um exemplo de ação sistêmica — e política — do combate ao trabalho análogo à escravidão é a Lei da Imigração. Apesar de ser entendida como insuficiente e ineficaz em muitos pontos, ela garante mais direitos aos cidadãos imigrantes e auxilia na inclusão social, tirando-os da situação de vulnerabilidade que levam muitos ao trabalho precário nas confecções paulistas, por exemplo. Por mais que a lógica de expor e punir grandes marcas tenha funcionado como um alerta para elas enxergarem e limparem suas cadeias de fornecimento, além de ter colocado o debate na boca de mais pessoas, ela já se mostrou uma estratégia esgotada e insuficiente para, de fato, resolver o problema. Os piores casos de trabalho análogo à escravidão na cadeia produtiva da moda no Brasil nem vinculados a grandes marcas estão.

Um outro exemplo de enfraquecimento social é a não demarcação de terras indígenas, a não proteção de comunidades quilombolas e a destruição do meio ambiente, que são fontes de vida e renda, dessas comunidades. Ao não garantir o direito de existência desses povos tão menosprezados dentro da mentalidade econômica vigente, os lançamos à margem numa lógica totalmente contrária até mesmo à lógica capitalista ocidental de bem estar e segurança, muitas vezes os transformando em mendigos urbanos. Uma vez nessa situação de total vulnerabilidade, essas populações podem facilmente ser tragadas pelo trabalho análogo à escravidão e outras formas de trabalha precário.

É por esse, e outros motivos, que movimentos indígenas, de mulheres imigrantes e de outras minorias sociais lutam tanto para garantir apoio na constituição e proteger sua dignidade e suas vidas. Ignorar isso e colocar tanto toda a culpa quanto toda a glória nas mãos das marcas é, mais uma vez, um erro que pode (e já está) nos custando muito caro.

Dentro desse tema, o que eu aprendi nesses 4 anos como pesquisadora, comunicadora e consultora de moda e sustentabilidade é que precisamos ouvir mais as pessoas que estão na linha de frente dessa batalha: os trabalhadores em si. Aprendi muito escutando as mulheres imigrantes em São Paulo, a relação delas com a confecção e como elas estão sendo resistência. Muitas vezes, até quem tem como tema principal a questão do trabalhador se esquece que ele é sujeito nessa história.

Finalizo dizendo, como mencionei acima, que as ideais aqui estão mais rascunhadas do que extremamente elaboradas. Talvez poderia trazer outros exemplos e fazer outras correlações, mas depois desse outubro admito uma certa exaustão, amplificada pela total perplexidade. Uma perplexidade não dos resultados das eleições — eles eram esperados há algum tempo quando se anunciava o avanço do conservadorismo como uma resposta populista automática (e totalmente contraditória, sim) à crise econômica global. Mas por como pessoas seguem lavando as mãos e ainda ganhando prêmios e dinheiro para falar de sustentabilidade. De uma forma ou de outra, sigamos juntas e de olhos abertos. Os comentários ficam sempre abertos para vocês complementarem minhas ideias.

Originally published at modefica.com.br on October 30, 2018.

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Marina Colerato
Modefica

Journalist, independent researcher and speaker. Founder at Modefica and Co-Founder at Futuramoda.