2020: Meus álbuns favoritos e como a música me salvou neste “annus horribilis”.

Rayssa Oliveira
Moderna Parahyba
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9 min readDec 29, 2020

Em 1992, a rainha Elizabeth II do Reino Unido usou a expressão “annus horribilis” para definir aquele que seria considerado o pior ano de sua vida como monarca. O termo em latim significa “ano horrível”, e foi utilizado por ela por conta dos escândalos que marcaram aqueles doze meses.

Embora esteja bem óbvio que eu não sou uma rainha imperialista com fama de ter achado o segredo para a imortalidade, gostaria de usar esse termo também para definir o que 2020 foi na minha vida. E talvez na sua também. Ou na do mundo inteiro, para ser sincera.

Meu ano horrível foi marcado pelo luto e por uma batalha intensa contra a depressão e a ansiedade. E nem a consciência de que muitos desses problemas eram compartilhados juntamente com milhares de pessoas, conseguiu me fazer sentir menos só.

Meus problemas ligados à saúde mental não vieram junto com a pandemia. Eram dois pesos que eu carregava desde a minha pré-adolescência. Hoje, em acompanhamento psicológico e psiquiátrico, sei que o privilégio de ter acesso à tratamento é determinante para sobreviver nessa luta. Juntamente com o apoio e carinho de amigos e familiares.

Nos meus piores dias de crise e isolamento, antes de ter o suporte e medicamentos que hoje me auxiliam nesta jornada, uma única coisa me manteve de pé: música.

Em um ano em que todos tiveram que ficar dentro de suas casas e lidar com as incertezas que a pandemia trouxe, os lançamentos de 2020 nos deram o conforto e o entretenimento que precisávamos para continuar acreditando. Ou no meu caso, para ter um pouquinho de sanidade mental em meio a tudo que estava acontecendo.

Uma das maiores ironias, que depois acabou se tornando um método de escapismo, foi a volta da música disco para o topo das paradas. Aquele que era o gênero musical da vida noturna, das discotecas e festas da década de 1970, voltou justamente em um ano de isolamento e solidão em que ninguém podia sair para dançar ou aglomerar.

Muitos dos álbuns que trouxeram o disco de volta foram idealizados em 2019, antes de o mundo sequer saber da existência do vírus. Os produtores e artistas que idealizaram esses trabalhos talvez tivessem em mente que aquelas músicas iriam embalar as festas e noites de muita gente. E não estavam totalmente errados.

Entre o medo e as videochamadas do Zoom, todos aproveitamos pelo menos um tempinho para dançar sozinhos no quarto e tentar afastar por alguns minutos os pensamentos negativos. A volta do disco não foi para seu ambiente já conhecido e sim, para as nossas casas enquanto tentávamos nos proteger.

O escapismo advindo das referências musicais a décadas passadas marcadas pelas discotecas não reinou sozinho em 2020. Outros artistas buscaram trazer esse sentimento de maneira bucólica e até mesmo quase arcadista, representando a solitude desses tempos com alusões à natureza, noites chuvosas e um bom cobertor em músicas calmas e intimistas.

Eu não tenho a pretensão de achar que possuo qualquer moral ou conhecimento que me torne capaz de criticar, ou até mesmo listar os melhores álbuns do ano. Mas sinto um sentimento de gratidão absurda por esses trabalhos que foram o meu porto seguro em um momento tão difícil.

E é motivada por esse sentimento que gostaria de compartilhar com vocês os meus álbuns favoritos desse annus horribilis. Aqueles que embalaram meus momentos de tristeza, crise, luto e até mesmo alguns sorrisos que conseguiram ser esboçados pelas poucas coisas boas que pareciam nunca acontecer, mas que apareceram.

Então, sem mais delongas, aqui estão os 10 álbuns que marcaram o meu 2020, e as relações que eles tiveram com esses momentos tão diversos, intensos e pessoais.

10. Lianne La Havas — Lianne La Havas

O autointitulado álbum da cantora britânica Lianne La Havas é um deleite de R&B e neo soul da melhor qualidade. Definido como um álbum conceitual que passeia pelos estágios de um relacionamento fadado ao fim em suas músicas, esse é um dos trabalhos mais coesos e fortes de La Havas.

Mesmo que o ponto alto seja sua canção de abertura, Bittersweet, o resto traz uma Lianne mais livre e capaz de mostrar todos os seus pontos fortes: sua composição confessional e seus instrumentais cativantes.

9. After Hours — The Weeknd

Embora este álbum dispense apresentações, e o artista por trás dele ainda mais, o After Hours é digno de todas as indicações e listas de melhores do ano possíveis. Indicações estas, que injustamente não recebeu em uma das maiores premiações de música do mundo, o Grammy.

After Hours é o disco mais importante e mais bem feito da carreira de Abel (vulgo The Weeknd). Toda a sua produção marcada pelo synthpop, e por tantos outros elementos de músicas dos anos 80, conseguiu passar bem as intenções de fazer algo que tivesse inspiração no passado, mas que fosse novo e atemporal.

O dono de um dos maiores hits do ano, Blinding Lights, chegou ali no comecinho da pandemia e provavelmente é fortemente associado com o começo do que viria a ser um período conturbado. Mas assim como o próximo da lista, é um daqueles trabalhos que ultrapassa essa associação pela sua capacidade de nos fazer dançar em um momento tão sombrio.

8. Future Nostalgia — Dua Lipa

Um dos maiores representantes da volta da música disco em 2020, Future Nostalgia também chegou no começo da pandemia e nos deu um bom motivo para dançar. Mesmo com as aparições exaustivas e irritantes no reality show Big Brother Brasil, Don’t Start Now não deixa de ser um dos singles mais brilhantes dos últimos anos, e o álbum certamente é um dos mais marcantes da música contemporânea.

Todo o instrumental com violinos, baixo e palminhas no fundo das canções realmente nos dão um gostinho do que o segundo álbum de estúdio da cantora britânica pretendia fazer: nos transportar para as pistas do Studio 54 ou para uma cena de Os Embalos de Sábado à Noite. Ele pode não ter tido a chance de ser tocado para que muitas pessoas juntas dançassem o famigerado passo do “tamborzinho, tamborzinho”, mas certamente embalou nossas danças sozinhos enquanto tentávamos esquecer o que acontecia ao nosso redor.

7. Ungodly Hour — Chloe x Halle

As irmãs Bailey podem estar quase sempre associadas à sua madrinha musical, Beyoncé, mas está mais do que na hora de reconhecê-las pelo seu trabalho e talento. Abraçando de vez um R&B mais pop e mais radiofônico, Chloe e Halle nos presentearam com um dos melhores álbuns do ano.

As harmonizações, que já são marca registrada das duas, vieram acompanhadas de uma produção “classuda” e de músicas que sabem conversar muito bem com o que está funcionando no mercado musical americano. Se elas continuarem a refinar o que já estão entregando, Ungodly Hour será seu melhor álbum apenas por um tempo. Porque o que está por vir me deixa com mais expectativa ainda.

6. Sin Miedo (del Amor y Otros Demonios) — Kali Uchis

Entregando o trabalho mais maduro de sua carreira, Kali Uchis fez o caminho inverso do que muitos artistas latinos fazem ao tentarem entrar no mercado estadunidense. Seu primeiro álbum, o sensacional Isolation, é quase todo em inglês. E agora no seu segundo, Uchis trouxe um trabalho em espanhol.

Mesmo que Sin Miedo não consiga estar à altura do seu antecessor, não é como se ele precisasse. É um disco que apesar de curto, anda com as próprias pernas, contando com a novidade do idioma, e com a já tão conhecida produção impecável das músicas da cantora.

5. folklore/evermore — Taylor Swift

Enquanto tantos outros artistas precisaram se apoiar na nostalgia de gêneros musicais de décadas passadas para dar o tom da tendência das paradas de 2020, Taylor Swift já não precisava disso. Justamente por já ter o feito há 6 anos, com o divisor de águas que foi o 1989.

Os dois álbuns irmãos serão lembrados, sem nenhuma dúvida, como um dos maiores representantes de obras primas que surgiram nesse período de isolamento. Aqui, o escapismo não precisa viajar para o passado, e sim para paisagens florestais e frias com cara de um chocolate quente tomado em frente a lareira.

P.S.: Minha opinião impopular é que o evermore é muito melhor que o folklore.

4. Fetch the Bolt Cutters — Fiona Apple

Que Fiona Apple não dá a mínima para as regras de divulgação e premiações pretensiosas, eu já sabia. E que ela iria aproveitar a pandemia para lançar seu álbum mais pessoal de todos ao invés de adiar essa data, também não foi surpresa.

O que causou um espanto foi como, álbum após álbum, Apple consegue superar a perfeição trazendo mais perfeição. Mesmo que Tidal continue sendo o meu favorito da cantora por puro apego emocional, Fetch the Bolt Cutters é sem dúvida seu melhor trabalho, com composições que parecem mais um grito da alma de Fiona em uma produção caseira de melhor qualidade.

Sem contar que um álbum que conta com cachorros com backing vocals não tem como ser ruim.

3. SAWAYAMA — Rina Sawayama

Quando coesão é citada como ponto forte de um álbum, geralmente o artista por trás dele escolheu canções que estão dentro do mesmo espectro musical. Com o SAWAYAMA não é assim.

Poucas vezes um álbum de estreia é tão corajoso e eclético quanto SAWAYAMA conseguiu ser. Com inspirações que vão desde o pop dos anos 2000, até nu-metal, Rina conseguiu deixar sua marca e mostrar o quão versátil é.

Sem dúvida, deixa expectativas altas para o seu próximo lançamento. Mas até lá, ela já entregou um disco que a tornou inesquecível.

2. Punisher — Phoebe Bridgers

Em algum lugar do Twitter, alguém disse que Phoebe Bridgers é o que Taylor Swift seria se a última jamais tivesse feito terapia. Embora não dê para saber com certeza se Swift já foi a um psicólogo, a comparação não é tão justa.

Tirando os cabelos loiros e apego por seus violões, as duas estão longe de serem a versão uma da outra. Com Punisher, Bridgers trouxe uma narrativa que se encaixa perfeitamente nos nossos tempos. A produção e as letras ainda mais tristes, realmente conseguiram superar o já melancólico, Stranger In The Alps.

Punisher é uma fantasia sombria que nos faz refletir sobre traumas, amores frustrados e solidão.

1- Women In Music Pt. III — HAIM

Depois de uma estreia inesquecível e de um segundo álbum morno, o trio de irmãs realmente precisou encontrar um rumo que nos desse a qualidade do seu primeiro trabalho, e que tirasse o gosto amargo que seu predecessor deixou.

Elas conseguiram. E como conseguiram! Women In Music Pt. III trouxe algo digno das comparações com Fleetwood Mac, e ainda nos deu canções como The Steps que deixariam George Harrison com muito orgulho, e outras com Man From The Magazine que dariam inveja à Joni Mitchell. Isso sem contar com as faixas que flertam com o R&B tão amado pelas irmãs.

O título que brinca com a nada criativa e enfadonha pergunta “e como é ser uma mulher na música?” (que parece ser a única dúvida que jornalistas têm a questionar a artistas femininas), é muito bem-vindo. Principalmente em uma indústria que ainda não se acostumou em ver mulheres no rock, mesmo depois de anos

2020 realmente não deixará nenhuma saudade para mim. Por mais que eu tente me apegar ao sentimento de que tirei um aprendizado de tantos momentos difíceis, ainda não consegui ressignificar tudo que aconteceu.

Mas esse ano certamente será lembrado com mais gentileza graças a esses trabalhos que tanto me acolheram, e me deram uma motivação para escutá-los e agora, escrever sobre eles.

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Rayssa Oliveira
Moderna Parahyba

um projeto de jornalista e uma degustadora profissional de delícia de abacaxi.