a luta feminista na paraíba — para onde vamos agora?

Moderna Parahyba
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6 min readDec 14, 2020

o que aprendemos com mulheres à bessa?

Foto: Coletivo Mulheres à Bessa

No dia 04/12 quase três meses após ter espancado até a morte sua esposa Pâmela Bessa, em Poço José de Moura, cidade do alto sertão paraibano, Hélio José de Almeida Feitosa foi preso em Rio Grande da Serra — SP. Esse feminicídio foi responsável por provocar indignação popular, não apenas na cidade do crime, mas também em suas regiões vizinhas. Os protestos, organizados por mulheres em defesa de nossas vidas, cobrando justiça por Pâmela, teve repercussão em nível estadual e até mesmo nacional.

Esses protestos foram o berço do coletivo Mulheres à Bessa, iniciativa de mulheres do Poço José de Moura, no intuito de transformar a indignação das pessoas em luta organizada. Tiveram bons resultados. Logo após o feminicídio, conseguiram convocar vários protestos que contaram com a presença de diversas pessoas. Desde as mais velhas, até jovens e crianças. Acirrou os ânimos. Na Paraíba, já fazia algum tempo em que as feministas não se reuniam para além de ações pontuais em datas marcadas (como oito de março) e em torno de uma demanda concreta a ser resolvida.

Não é exatamente incomum que casos de feminicídio despertem essas reações, na verdade, é praticamente a herança deixada pelos grupos feministas paraibanos, desde meados dos anos 80 até então. Quando pesquisamos sobre a atuação desses grupos, descobrimos que a primeira vez na “história do estado” em que as mulheres foram para as ruas reivindicando direitos às suas vidas, foi motivado pelo feminicídio de Violeta Formiga, em 1982. Na época, outras experiências aconteciam pelo Brasil, o que tornou possível e inspirou a coragem dessas mulheres.

Claro, nos anos 80 o feminismo estava em ebulição, a prova disso foi a própria rede globo ‘absorvendo-cooptando-esvaziando’ nossas lutas e estreando uma minissérie chamada “quem ama não mata”, justamente no ano e no mesmo mês que Violeta foi assassinada. Geralmente, o intuito desses grupos é garantir que o feminicida seja preso, pegue pena máxima e cumpra a sentença. Muitas vezes é comum também a reivindicação por políticas públicas, como secretarias e delegacias da mulher. Nesses casos, a luta por políticas públicas emerge como finalidade e horizonte político, buscando que as próprias militantes ocupem cargos públicos nos recentes órgãos conquistados.

Entregues à máquina estatal, as mulheres passam a trabalhar para seus inimigos, garantindo cooptação e desmobilização da reação organizada em nome de “denúncias burocráticas” na secretaria da mulher. Além disso, é comum que quando o assassino é capturado e preso, a fé e confiança no Estado se renovem — traz a sensação de que “a justiça foi feita”. As lutas feministas se dissipam após a prisão/punição dos agressores. Mas o que significa a prisão individual de um misógino? Ou ainda mais, o que significam as prisões?

Sim, é nosso direito e dever reivindicar nosso patrimônio histórico de lutas. Entender o que foi feito até agora e como essa experiência acumulada pode contribuir para a luta de hoje. Queremos justamente aprender com os erros dos grupos feministas paraibanos do passado para superá-los, dando um novo passo em direção a libertação das mulheres de nosso território.

Quando o coletivo Mulheres à Bessa surgiu, nós sabíamos disso e queríamos superar alguns desses problemas, dar passos a horizontes mais largos e ampliar nossas conquistas. Era o caso de fazer a mobilização ultrapassar a luta somente por políticas públicas. Queríamos ampliar nossas reivindicações. Trabalhar com as mulheres na base, por bairros. Muitas coisas foram feitas em menos de três meses. A máxima expressão disso foram mulheres se voltando para nós para pedir ajuda, pois sofriam agressões em casa e agora, entendendo o termo feminicídio, temem acabar mortas.

Eu poderia me voltar aos desafios, limitações, erros e conquistas do coletivo Mulheres à Bessa, em seus três meses engatinhando. Mas escrevo porque, com a prisão de Hélio, acabamos de estacionar em uma das maiores questões das lutas das mulheres. A comunidade poço-mourense que até então havia nos apoiado nos protestos e desenvolvido afeto pelas nossas reivindicações, agora comemoram com fogos de artifícios e caminhadas nas ruas a prisão de Hélio.

Tem que se comemorar, a felicidade não é um equívoco, especialmente diante da compreensão de que Hélio foi capturado relativamente rápido devido a pressão popular que apontou sempre a postura do delegado, forçando-o a dar longas entrevistas em programas locais para explicar o caso. Isso fez com que, diferente de muitos outros casos de feminicídio, a polícia civil estivesse atenciosamente interessada em dar resposta à demanda social.

O que a prisão dele significará? Dissipação dos diálogos ou apenas uma fase diferente da luta? Precisamos criar as condições necessárias para que até o momento de seu julgamento — evento que obviamente reunirá muitas mulheres em volta — consigamos ampliar as forças em direção a soluções mais efetivas, não apenas em relação a feminicídio, mas a todas as violências cotidianas que tornam nossas vidas insuportáveis como mulheres pobres y periféricas, afroameríndias, não cis-heteronormativas que somos. Lutar contra o feminicídio é fundamental porque queremos sobreviver a esta posição feminina que nos impuseram. Mas queremos mais do que apenas sobreviver.

Podemos evitar a dispersão e continuar organizadas? A violência não foi reparada, apenas alterou-se seu status, precisamos trabalhar nessas novas circunstâncias. Precisamos expandir os diálogos em toda a região do alto sertão, criar pontes, apoios, estrutura. Quais tarefas nos são colocadas a partir de agora para ampliarmos nosso alcance? Quais são as demandas concretas das mulheres sertanejas neste momento? Precisamos estabelecer pontes de diálogos com elas para agir a partir disso. O refluxo é praticamente uma constante nesse formato de organização chamado coletivo. Quais táticas podem ser usadas para superar esse problema? Serão essas as perguntas corretas?

Pensar essas questões são tarefas de nossa responsabilidade. Não apenas de Mulheres à Bessa, mas de todas as mulheres que desejam se organizar e não permitirão mais ser reduzidas a fodíveis e burras pelos homens de diversas organizações de esquerda. Não seremos apenas esposas de líderes, amantes de líderes, cabeças por trás de lideranças. Servas, empregadas, escravas. Não, também não repetiremos Alexandra Kollontai. Não estamos mais dispostas a sermos traídas no último momento.

Eu acredito que os coletivos são um formato de organização política importante. Normalmente, um coletivo adota maior horizontalidade organizacional. Por não se pretender hierárquico, a partilha de informação e a tomada de decisão está mais ao alcance de todas as pessoas, estando elas aptas para agir de forma mais autônoma. E, claro, eu também acredito na luta das mulheres. Em nós mesmas fazendo com nossas mãos, ao invés de entregar o destino de nossas vidas “a quem sequer sabe a experiência que carregamos como mulheres, a quem nem sequer sabe das dores que nos atravessam por escolhermos a liberdade de viver fora da heteronormatização, a quem não nasceu onde nasceu a maioria de nós, povo pobre, preto, indígena, periférico [nordestino, sertanejo] do Brasil”*.

Para avançarmos na luta das mulheres através de coletivos/grupos feministas, precisamos encontrar novas formas de nos organizar e como mantê-las vivas. Precisamos buscar ampliação de nossas pautas, prioridades, objetivos a curto e médio prazo, alargar nossos horizontes políticos. Precisamos criar as condições e estruturas para vivermos as revoltas onde poderemos, finalmente, dançar. Superar a individualização da violência e a prisão de nossos feminicidas pode ser uma forma de tentarmos não perder de vista o complexo de violências que nos assombram.

*Helena Silvestre em um texto sobre representações políticas nas eleições municipais

Autora: Lua Lacerda, 21 anos. Seu primeiro livro de poesia “redemunho”, acaba de ser publicado pela editora UFPB . Nasceu em Cajazeiras (PB) e mora em João Pessoa (PB), onde faz graduação em Jornalismo pela UFPB.

Revisão: Jaqueline Rodrigues

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