A vingança de Violeta Formiga

Moderna Parahyba
Moderna Parahyba
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4 min readOct 3, 2020
Foto: Coletivo Mulheres à Bessa

“em memória de pamela do nascimento e lilinha justino, vítimas de feminicídio em setembro de 2020 no sertão paraibano”

Estou esperando por ele já faz algum tempo, eu diria toda minha vida. Três horas desde que cheguei aqui e até agora nada na rua murmurou meu nome. Tudo está quieto como se o ar pesado ocupando o espaço soubesse do crime que vou cometer. Meu único problema com a Lei é que, na maioria das vezes, ela impede a justiça. Por isso precisei recorrer ao mistério e reencarnar humana de novo, sertaneja de novo, poeta como requer a vingança. Uma vez, eu me lembro, éramos estrelas de nenhum tempo. Depois, meu corpo celeste se tornou esta matéria na terra. Foi quando me fizeram de mulher e assinaram-me aos 31 anos. E continuam, certamente continuarão até o tempo inaugural da história em que dirão mulher e ninguém mais saberá o que significa. Será uma palavra esquecida como a luz engolida n’algum buraco negro, enterrada com o passado que nos envergonha, sem qualquer lugar no museu de memória das línguas. Mas por hora estou aqui. As estrelas em mim implodem ao me verem humana de novo. Voltei depois de alguns poucos anos para me vingar de meu feminicída.

Ele me amava e me matou. O problema é quando as pessoas dizem que quem ama não mata, como se o amor acontecesse isolado da dominação e fosse uma força externa à nós que vem para nos salvar. Às vezes tenho impressão de que todo amor é violento, que apenas buscamos alguém para usar “de um jeito bom” seu poder contra nós. Ele me amava e me assassinou. Foram tiros de Beretta 6.35. Em seguida, ligou a vitrola e ouviu Beethoven. Assim, calmo e confiante. Por enquanto o amor é isso, mas pode ser diferente. Quero vingança, mas ainda mais a mudança, livrar o amor dos perigos da terra. Deve haver outro jeito de acariciar o rosto de nossas pessoas queridas sem deixá-las insones. Não as cansar jamais, pois se ficamos cansadas, assim também fica o amor. O amor é o nosso próprio corpo, este corpo explorado e violado. Por isso, se quiser mudar alguma coisa, tenha em mente o amor. Tenha em mente que para libertá-lo precisamos nos libertar. Saber que o amor será o que nós somos.

Na minha última vida eu era poeta e negociei com a santa nascer poeta de novo. Antes, livre em versos breves. Agora, prosaica e espantada. Pouco me importa como, quando sei que escrevo para enganar: se digo que sou poeta eles perdem o medo, essa arma orgânica poderosa. Se eles perdem o medo, é claro que perderão a guerra. Na língua, ou você usa as palavras ou é usada por elas. E as palavras não me assossegam, não. Não são meu esconderijo. Manobrar o alfabeto latino está na clausura do meu contrato com a santa. A poesia faz parte da vingança. E o sangue faz parte também. Por isso, estou esperando por ele na rua da sua casa já faz algum tempo. Eu diria que três horas ou aproximadamente a vida toda. Nada na rua murmurou para mim até esse momento, quando o segredo do silêncio é quebrado por sua silhueta cambaleante se aproximando na esquina.

Eu apenas deixo que ele se aproxime. De dentro de meu carro parado, começo a achar que as máquinas são coisas divinas. Separam nossos corpos, escondem nossos sorrisos sádicos, nos mantém seguras e salvas quando o inimigo está bem na nossa frente, nos olhando como se pudesse enxergar através do espelho do tempo e reconhecer em nós o massacre desde 3000 a.c. Ilumino seu rosto com os ávidos olhos dos faróis. Ele ainda é como antes, tão elegante quanto decadente. Piso no acelerador e tenho sede. Vou na sua direção com meus 120 cavalos e o esmago. Dou ré. Sua cabeça abre fácil feito um jerimum de leite. Desço porque preciso vê-lo. Completamente estourado e eu ainda reconheço suas mãos, são os mistérios dos amantes, é o que passa pela minha cabeça. Atiro sob seu corpo suas flores favoritas. Então decido deixá-lo assim, coberto de violetas para ser devorado pelas formigas. Algumas estrelas nascerão essa noite e eu ficarei por perto até anunciarem nos jornais a morte de Rosada Maia. Depois voltarei a pegar a estrada. Para onde vou, nunca soube, sei apenas que vou feliz como os anjos que ainda não nasceram¹.

¹verso do poema minha vida de Violeta Formiga.

Autora: Lua Lacerda, 20 anos. Seu primeiro livro de poesia “Redemunho”, foi publicado pela editora UFPB e terá lançamento virtual neste mês. Nasceu em Cajazeiras (PB) e mora em João Pessoa (PB), onde faz graduação em Jornalismo pela UFPB.

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