Cultura ou Distopia?

Moderna Parahyba
5 min readFeb 17, 2022

--

Crise do setor cultural tem se agravado ao longo dos anos e atingiu seu ápice durante a pandemia

por Adailson Paiva e Aléssia Guedes

Extinção do Ministério da Cultura. Troca de secretário. Apologia ao Nazismo. Troca de secretário. Exaltação da Ditadura. Troca de secretário. Incêndio no galpão da Cinemateca Brasileira. Este poderia ser o roteiro de uma distopia que tem como plano de fundo o setor cultural brasileiro, mas é a realidade que o setor de Cultura vem enfrentando desde o início da gestão de Jair Bolsonaro.

Bombeiros se mobilizam para conter chamas no galpão da Cinemateca em SP.

A crise que começou bem antes da gestão do atual presidente, se agravou com a extinção do Ministério, que se tornou Secretaria Especial e foi transferida duas vezes para outras pastas. Quando a pandemia atingiu duramente a realidade dos artistas, eles já eram sobreviventes de uma guerra histórica pelo tão esperado e devido reconhecimento de suas profissões.

“A pandemia mostrou como nós somos relegados, porque fomos os primeiros a parar de trabalhar e ainda não sabemos quando voltaremos. Então, nós sobrevivemos como? de quê?”, questiona o artista multivisual Elioenai Gomes que também reprova a burocracia em torno do auxílio destinado à classe cultural, que raramente chega até o artista periférico.

O auxílio financeiro é financiado pela Lei de Emergência Cultural Aldir Blanc, aprovada pelo Congresso Nacional em agosto de 2020, que tem o intuito de apoiar os profissionais da área que foram afetados pelas medidas de distanciamento social. Na Paraíba, o pagamento do subsídio se refere a cinco parcelas de R$ 600 por beneficiário.

No entanto, o cenário distópico não mostra perspectivas de melhora nessa gestão, visto que o Ministério comandado por Paulo Guedes — que vinha como promessa do governo para “salvar” a economia do país — continua realizando severos cortes de verbas em órgãos relacionados à Cultura, com um dos últimos tendo bloqueado cerca de 36 milhões de Reais de várias destas instituições.

A piada continua de mau gosto

Jair Bolsonaro nunca foi discreto em sua aversão ao direcionamento das verbas públicas para a Cultura. Em 2019, a cantora Daniela Mercury se propôs publicamente a explicar ao presidente como funciona a Lei Rouanet, criada para incentivar a Cultura há cerca de três décadas.

Na ocasião, o chefe do executivo respondeu que seria “uma piada” falar sobre o assunto com a artista. No mesmo ano, o presidente se referiu à lei como uma “desgraça que começou bem intencionada” para cooptar a classe artística e atrair famosos ao apoio dos governos anteriores.

Num passado mais recente, um outro representante do governo famoso por suas declarações — o presidente da Fundação Cultural Palmares, Sérgio Camargo — repercutiu uma fala do diretor estadunidense de cinema Spike Lee, na qual ele igualava Bolsonaro, Donald Trump e Vladimir Putin se referindo aos três como gangsteres. Camargo coloca o diretor como consciência da “raça dos vagabundos militantes”, termos pejorativos comumente utilizados para se referir a representantes de movimentos sociais ou políticos alinhados à esquerda.

Elioenai Gomes comenta que há um olhar preconceituoso para os artistas, que são frequentemente chamados de vagabundos e não são reconhecidos como verdadeiros fazedores de arte e cultura do país. “Há uma necessidade muito grande de invisibilizar o artista, principalmente se ele for negro e trabalhar com temáticas afro”, destaca Nai.

Retratos da realidade

Em tempos de uma realidade tão espinhosa, onde encontrar inspiração? Elioenai acredita que é momento do artista mergulhar em si mesmo, porque a inspiração para continuar produzindo é algo intrínseco à classe artística. “Ser artista é exatamente isso: registrar todo o seu entorno com uma nova visão”, argumenta.

É o que tem feito também o cantor paraibano Melo, que resolveu compartilhar suas aflições por meio da música. Em “Paradoxo da Tolerância’’, single do EP Morno, o cantor reflete sobre como a sociedade tem reagido a situações intoleráveis. Ele cita a morte de George Floyd e o conflito entre os poderes Executivo e Judiciário como preocupações de como o intolerável tem se tornado cada vez mais representativo.

Cantor Melo lança EP com cinco faixas que dialogam sobre questões sociais da atualidade.

“O que estamos vivendo é maior do que se pode ver a olho nu e só o tempo nos dirá com clareza quais foram as decisões de fato acertadas. A enorme nuvem de fake news e as cortinas de fumaça vêm fazendo vítimas nos últimos anos e o eco dessa destruição promete fazer muito mais”, analisa o cantor.

Além de “Paradoxo da Intolerância’’, o EP conta com mais outras quatro faixas. Apesar de ser direto no diálogo, Melo conta que o intuito de Morno não é buscar soluções, mas sim levantar questões. Ele define o EP como crítico, cheio de sarcasmos e “às vezes pode soar até debochado”.

Capa do Single Paradoxo da Tolerância. Jarrier Dantas foi o artista responsável pela arte da capa.

“São cinco faixas de diálogo. Sempre imaginei os lançamentos das canções como uma exposição de um tema que merece ser debatido e estou sempre esperando a opinião do público como produto final”, pondera.

Já para a atriz, diretora e roteirista Danny Barbosa, a luta diária de personagens da vida real durante o momento pandêmico foi o que serviu de inspiração para seu primeiro curta-metragem. Escrito, dirigido e estrelado por ela, “Café com Rebu” é um filme realizado durante o Curso de Formação Audiovisual para Pessoas Transgêneros — o AUDIOTRANSVISUAL — ocorrido em 2020, que foi exibido em um festival (virtual) promovido pela Mídia Ninja.

Poster do curta-metragem Café Com Rebu, escrito, dirigido e estrelado por Danny Barbosa para o AUDIOTRANSVISUAL.

Café com Rebu foi a observação de uma situação que ocorreu em frente ao prédio onde eu morava: vi uma garota trans passando pela avenida, à noite, mas não havia sequer movimento de carros e pensei ‘e se ela fosse uma profissional do sexo, como estaria sobrevivendo no meio dessa crise?’ E daí veio o click para o curta-metragem”, conta Danny.

Autoritarismo, incertezas e futuro

Além da crise econômica, o setor também enfrenta as raízes autoritárias do bolsonarismo. Segundo informações confirmadas pela Uol Splash, Mario Frias, atual Secretário Especial de Cultura, anda armado no ambiente de trabalho, causando desconforto entre os funcionários. Há ainda relatos de “escândalos e ofensas” direcionados aos servidores e terceirizados da secretaria.

Danny Barbosa revela seu receio quanto ao futuro do setor cultural. A artista teme que a crise se agrave e deposita suas esperanças no fim do Governo Bolsonaro. “Rezo para que esse governo do retrocesso e do fracasso caia para que a gente volte a sorrir sem medo”, declara.

E ainda que haja incertezas acerca do futuro cultural brasileiro, Elioenai acredita que um dos caminhos para mudar o rumo autoritário do país está justamente no poder de transformação política que a cultura reserva. “Eu não posso deixar de acreditar que esse tempo de autoritarismo vai acabar, porque estou na luta e a minha arte está à frente nesta luta para transformar este país”, finaliza.

--

--