Não está tudo bem!

Aléssia Guedes
Moderna Parahyba
Published in
5 min readJun 15, 2020
Cena do filme “Gaslight”

O termo “relacionamento abusivo” passou a ser mais denunciado recentemente, mas isso não quer dizer que esse tipo de relacionamento seja algo novo. A psicóloga e terapeuta de famílias e casais Thaíla Keill acredita que a força que a internet ganhou nos últimos tempos favoreceu o movimento.

“O acesso à informação gera essa corrente. Uma pessoa que nem sequer sabia o que era relacionamento abusivo, por exemplo, hoje ela consegue ter acesso à internet e saber que ela não está sozinha, que outras pessoas passam por isso, acaba gerando um certo tipo de conforto e segurança.”

Antes de entender o relacionamento abusivo, a psicóloga avisa que é preciso ter em mente o que é um relacionamento saudável, ou seja, que precisa haver prazer e ser bom para as duas pessoas. E acima de tudo, precisa ter diálogo e respeito.Também é necessário refletir um pouco sobre a romantização do machismo na sociedade. Aspectos de posse, controle e ciúmes são romantizados e tidos como algo normal dentro de um relacionamento, mas não é.

“O relacionamento abusivo acontece em qualquer tipo de relação, tanto entre homem e mulher, como entre duas mulheres ou dois homens; como também em relações familiares, relações profissionais, relações de amizade. Mas o mais frequente, por causa do índice de feminicídio, é o relacionamento abusivo entre homem e mulher. E muitas vezes, as pessoas associam relacionamento abusivo apenas a comportamentos agressivos, quando chega na agressão física, mas a gente precisa entender que o relacionamento abusivo vem muito antes, na manipulação psicológica, que geralmente é o primeiro sinal.”

A manipulação psicológica acontece quando o agressor traz sempre a culpabilização para a vítima, e a sensação de insegurança lhe é trazida.

“A pessoa fica o tempo todo insegura, o tempo todo pisando em ovos, com medo de errar. O agressor, geralmente, coloca a culpa toda na vítima, por mais que você faça as coisas perfeitas, sempre vai ter um defeito, sempre vai ter uma coisinha que você errou e o abusador faz questão de falar sobre esse erro.”

É comum que o abusador fale “Ah mas você que me provoca” ou “Você sabe que eu tenho ciúmes, mas você faz” para reafirmar a culpa da vítima. Ela começa a achar que tudo o que faz é errado e isso gera insegurança em todos os aspectos, seja na autoestima, aparência ou até com relação a fazer novas amizades.

Outro sinal é o isolamento, porque tudo é visto como suspeito para o agressor, tanto amigos quanto a própria família da vítima: ele consegue isolar ela de todo mundo.

“Não deixar ela estudar, não deixar ela trabalhar, na verdade são estratégias para fragilizar ainda mais a mulher e deixá-la mais sob o controle dele, e aí essa pessoa (vítima) se torna mais dependente do abusador e isso traz uma força para ele. Quanto mais a vítima é dependente, quanto mais frágil e vulnerável ela está, mais o abusador impõe, agride e manipula o relacionamento.”

Thaíla afirma que outro sinal bastante comum é forçar o sexo, e que isso não acontece apenas com desconhecidos, mas também dentro dos casamentos.

“Se a mulher não se sente bem, se a mulher não está disposta, não é não! Então o homem precisa saber e entender que não é só porque você está em um casamento ou porque você está em uma relação de anos, morando com sua companheira, que ela vai estar disposta o tempo todo para fazer sexo com você. […] o papel dela não é satisfazer o outro o tempo todo.”

E, por fim, outro sinal muito frequente é o comportamento agressivo, ele está diretamente ligado aos altos índices de feminicídio que ocorre no nosso país.

“Primeiro ele começa quebrando objetos dentro de casa, ele esmurra a parede, ele quebra vasos e a sensação que dá é que realmente o que ele queria era te bater, mas ele ainda não deu esse passo. Se esse tipo de relação, tipo de atitude continuar vai chegar uma hora que ele vai te bater, ele vai te empurrar, ele vai te apertar, vai te beliscar e pode até te matar.”

O abusador tem características padrão, mas a psicóloga avisa que é muito difícil de perceber inicialmente, porque estamos acostumados a normalizar o ciúme dentro de um relacionamento.

“Geralmente as mulheres acreditam que ciúmes é uma prova de amor, é uma prova de carinho, é uma prova de que a pessoa está te amando, mas não é. […] ‘eu tomo conta do que é meu’ ‘você é minha’ muitas vezes são falas de pessoas que querem estar no controle. Controle das roupas, controle das amizades, controle das redes sociais e frequentemente as mulheres acabam achando que é papel delas obedecer, é papel delas passar por isso, elas normalizam esse tipo de relacionamento.”

Dentro de relacionamentos abusivos existe um ciclo muito comum que é o ciclo do abuso. Em geral, ele começa com a tensão, explosão e lua de mel. A tensão é o momento em que a vítima está o tempo todo cautelosa, para o abusador nada está perfeito e existe aquela tensão da vítima fazer tudo certo e tentar não errar no relacionamento. Logo depois, é a fase da explosão quando o abusador mostra traços agressivos, ele explode muito fácil o tempo todo. O último momento é a lua de mel, quando o abusador pede desculpas e a vítima acaba acreditando, porque ela está muito dependente do relacionamento. O ciclo então recomeça.

Quando isso ocorre, uma das partes depende emocionalmente do parceiro, mas não entende isso. Ela trata o abusador como centro de sua vida, como a pessoa que vai fazê-la feliz, não consegue se imaginar sem ele e, muitas vezes, também depende financeiramente dele.

“A dependência emocional ocorre quando uma pessoa acaba projetando expectativas no outro, ela coloca o outro como centro da vida, passa a depender do outro para ser feliz, para ser capaz, para tomar decisões, para se sentir amado. E dependência emocional geralmente está relacionado a esse tipo de apego que a gente desenvolve e causa diversas dificuldades, principalmente para tomar decisões sozinha e isso gera autoestima baixa, ciúmes excessivo e incapacidade de viver sozinho. […] Ele realmente se torna a pessoa ideal para você e a vítima acaba acreditando, ela se apega muito a isso, porque existe a dependência emocional, dependência de que a pessoa vai mudar, de que ela precisa do abusador para ser feliz…para seguir a vida.”

Desconstruir a dependência não é fácil, mas existem caminhos para ir resgatando o prazer de sua própria companhia. A psicóloga assegura que é muito importante buscar momentos prazerosos consigo mesmo, porque ajuda na reconstrução da autonomia e independência que acabam se perdendo no caminho.

“Para desconstruir isso de que a gente não precisa do outro para ser feliz, para se sentir amado, a gente precisa buscar mecanismos de estratégias que nos façam desenvolver essa autonomia dentro da gente, mesmo estando dentro de um relacionamento, a gente precisa buscar se amar mais, precisa buscar sentir prazer sozinha, precisa buscar momentos sozinha. […] E uma coisa muito importante que precisa ser dita: a gente precisa buscar ajuda profissional para compreender esses mecanismos da dependência emocional, para poder buscar estratégias junto com o profissional e tentar desenvolver nossa autonomia, tentar desenvolver esses momentos prazerosos que são muito importantes. Muitas pessoas não têm paciência para ficar sozinhas, não conseguem conviver com sua própria companhia, então realmente precisa buscar uma terapia ou um profissional que possa desenvolver estratégias para desconstruir essa dependência.”

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Aléssia Guedes
Moderna Parahyba

Escrevo, escuto e compartilho histórias. Jornalista nas horas não vagas.