“O amor é a maior das subversões”

Moderna Parahyba
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10 min readFeb 7, 2022

O Nós Também e o sentido da arte em transformar.

por Rayssa Oliveira

Em uma edição recente dos quadrinhos do Superman, o novo herdeiro do manto, Jonathan Kent, assumiu ser bissexual. O filho de Clark Kent com o seu par romântico clássico, Lois Lane, pareceu despertar a fúria de fãs que não se conformaram com a ideia do seu personagem preferido ser LGBTQIA+.

John Timms/DC Comics/Reprodução

Esta não é a primeira vez que um personagem queer das HQs gera reações parecidas. Em 2019, o então prefeito do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella, censurou um gibi dos Vingadores na Bienal Internacional do Livro por trazer a ilustração de um beijo entre um casal homoafetivo.

Marvel Comics/Reprodução

Os comentários sobre o assunto de alguns usuários do Twitter que demonstraram descontentamento com a bissexualidade do novo Super-homem vão desde frases como “lacração babaca”, ou teorias da conspiração sobre como os quadrinhos estão se curvando à “agenda globalista”. Para eles, a ideia de uma mídia conhecida pelos seus personagens “másculos” e mulheres hipersexualizadas romper com seu passado problemático, é absurda demais. É só um exemplo das consequências contemporâneas do “esquerdismo”.

Talvez lhes chocaria muito a ideia de, nos anos 1980, as histórias em quadrinhos serem utilizadas como aliadas na luta contra a homofobia por um artista paraibano em plena ditadura. Longe da hegemonia estadunidense de gigantes como Marvel e DC Comics, talvez soe irreal a possibilidade de uma personagem lésbica ser a protagonista de suas tirinhas. Mas para o choque hipotético deles, felizmente, Henrique Magalhães e sua personagem, Maria, existem.

O professor aposentado da Universidade Federal da Paraíba e fundador da sua editora, a Marca de Fantasia, também foi um pioneiro na organização e luta LGBTQIA+ em João Pessoa. Mas sua trajetória mista entre quadrinhos e política começa muito antes de pisar os pés no mundo acadêmico. Henrique foi estimulado por seus pais a desenhar desde criança e já na adolescência, aos 17 anos, criou sua icônica Maria. Segundo ele, seu amor pela “sinestesia” das HQs vêm de influências como Mafalda, Homem-Aranha e até mesmo Henfil.

Henrique Magalhães na exposição de Maria no festival AmadoraBD, Portugal, em outubro/novembro de 2017. Site da Editora Marca de Fantasia/Reprodução

Sua relação com a instituição onde mais tarde veio a ser docente iniciou em 1975, quando começou a estudar Arquitetura. Mas foi o seu período no curso de Comunicação Social que lhe trouxe a base necessária para transformar Maria no que ela é hoje.

“A minha entrada na universidade foi muito importante para uma ampliação da minha visão de mundo e para uma tomada de consciência, me fez politizar a personagem. Porque eu mesmo entrei no movimento estudantil e acabei tendo a consciência e uma visão de mundo muito maior do que aquela de quando era adolescente”, afirma ele.

É neste mesmo período que Henrique Magalhães conhece outros jovens abertamente LGBTQIA+ da UFPB. E é assim, que eles se tornam Nós Também.

“A origem foi bem prosaica”

Em julho de 1980, Henrique e outros amigos estudantes estavam na 33ª reunião da SBPC (Sociedade Brasileira para o Progresso da Ciência) em Salvador, Bahia. E foi em um debate sobre militância homossexual que tudo começou. Estavam presentes nesta roda de conversa representantes de grupos de outras partes do país, como o Somos, parte fundamental do movimento queer em São Paulo. Após a reunião, foi criada uma lista com contatos de grupos que tivessem interesse em criar laços de articulação entre si.

Henrique Magalhães (à esquerda) e outros membros do Nós Também. Acervo Pessoal/Henrique Magalhães

“Uma amiga nossa que não tinha nada a ver com o meio, sabendo da nossa vivência, disse ‘tem o Somos, então nós também somos’. No final do debate, as pessoas colocaram os nomes de seus grupos, endereços e telefones para contato. Então, ela foi no quadro e colocou ‘Nós Também, João Pessoa — PB, telefone tal e endereço tal’. A gente achou graça.”

O que para Henrique e seus colegas era, inicialmente, uma brincadeira, se tornou o início do que foi o primeiro coletivo LGBTQIA+ com registro da capital paraibana. O Nós Também tinha a proposta de unir arte à militância. Em um período conturbado e autoritário da história brasileira, seus membros falavam sobre questões que nem sempre eram incluídas nos movimentos de esquerda da época. Outro diferencial do grupo era a sua inclusão, pois a maioria dos coletivos eram segregados entre mulheres lésbicas e homens gays. No Nós Também, todos coexistiam, sem uma hierarquia, e debatiam suas pautas.

Postal “Casal”, feito por Lauro Nascimento em seu período no Nós Também. Acervo Pessoal/Henrique Magalhães

Além disso, ser formado por discentes e docentes dos núcleos de comunicação e artes da UFPB tornou a manifestação artística algo natural e inerente ao coletivo. As reuniões ocorriam aos domingos e, segundo Henrique, para os seus membros era “quase como ir à igreja”:

“Eram reuniões políticas e vivenciais. A gente fazia até laboratório de relaxamento, de discussão, de desmistificar certos termos como ‘veado’. Às vezes chamávamos um ao outro de ‘bicha’ para descaracterizarmos a força pejorativa desses termos.”

Mas não era apenas ao ambiente acadêmico e às casas de alunos que o Nós Também se resumia.

“E lá todo mundo se encontrava”

O jornalista Chico Noronha não estava no que Henrique Magalhães chamou de “núcleo duro” do Nós Também, mas transitava nos mesmos locais que seus membros. Isso não significa que ele não estivesse envolvido com os movimentos locais: Chico foi o primeiro presidente e fundador do Centro Acadêmico de Enfermagem em sua passagem pelo curso, antes de ser estudante de Comunicação Social. Contudo, o que ele mais destacou dos seus tempos de juventude foi o finado Bar da Xoxota. “Ele era como uma sociedade recreativa e cultural onde todo mundo cabia”, diz o comunicador.

Postal “Bar da Xoxota”, feito por Henrique Magalhães. Acervo Pessoal/Henrique Magalhães

Situado na praia de Tambaú, o estabelecimento era gerenciado por duas mulheres lésbicas e foi um enclave revolucionário dentro da cidade. Sobre ele, Henrique relembra com carinho:

“Todas as pessoas iam, ou por curiosidade, ou porque tinham empatia, ou porque faziam uma militância lá dentro. Você tinha de travesti ao homem mais grosseiro que ia só por curiosidade só para ver o povo se beijando. Era uma coisa transformadora dentro de uma cidade provinciana como era João Pessoa. Então, a gente atuou muito dentro do Bar da Xoxota, frequentando constantemente e fazendo intervenções. Nós contávamos com o consentimento e participação das donas, que eram lésbicas e achavam aquilo maravilhoso. Não era um bar gay, era de todo mundo.”

Dentro da universidade, Chico Noronha relembra com amargor do tempo em que a Polícia Federal era uma presença constante no campus, mas sempre faz questão de dizer o quanto estar vivo naquele capítulo da história brasileira o preparou para o que estamos vivenciando hoje, na UFPB e no Brasil. Mas é a liberdade coletiva misturada com toques de curiosidade, juventude, descontração e política no Bar da Xoxota que, tanto Noronha, quanto Magalhães, contam com mais empolgação.

“Nós éramos e somos amigos”

Em sua dissertação de Mestrado para a Universidade Federal de Pernambuco intitulada “Cultura material e ativismo: o Design Gráfico como ferramenta de militância do grupo Nós Também”, o designer Bruno Santana mostra como a trajetória do grupo se encontra com a de outros coletivos e pessoas que lutavam no início da reabertura política da ditadura militar. O material está disponível no formato de livro no site da Editora Marca de Fantasia e se propõe a contar a história do Nós Também, bem como analisar o que foi produzido por seus membros em seu período de atividade.

Entre esses encontros e desencontros, são citadas algumas “farpas” trocadas com outro grupo queer pessoense, o Beira de Esquina, que acolhia homens gays e travestis em situação de vulnerabilidade social e econômica. Ele foi a base para o que hoje é o Movimento do Espírito Lilás (MEL). O motivo seria o fato de os participantes do Nós Também serem “pequenos-burgueses”. Entretanto, Henrique ressalta o tom irônico e de brincadeira dessas críticas.

“Para nós, não havia atrito nenhum. A gente tinha perfis diferentes. O Nós Também trabalhava com arte e era mais ligado ao pessoal da universidade. O Beira de Esquina tinha um caráter mais social, de tentar apoiar pessoas em situação de vulnerabilidade. Eles atuavam em um canto e nós em outro. Mas nunca, jamais houve conflito. Inclusive, nós éramos e somos amigos. Só que eles diziam que nós éramos burgueses e eles não. Tinha esse tom de ‘são os burguesinhos que estão fazendo militância gay e nós somos da pesada, nós estamos na rua’. O Beira de Esquina passou a existir depois do fim do Nós Também. Então, não tinha como ter briga!”, diz o artista se divertindo com estas memórias.

Mas não era somente com outros grupos LGBTQIA+ que eles tinham seus desencontros. Assim como o Beira de Esquina se tornou o MEL, o Nós Também deu origem a outro grupo, a Ação de Libertação Homossexual (ALH).

Bandeira da ALH, projetada para um outdoor. Acervo Pessoal/Henrique Magalhães

“Toda notícia que saía, trazia o homossexual como um cidadão de segunda classe”

Embora a arte fosse o carro-chefe do Nós Também, seus membros participavam de atos e protestos de outras maneiras. Especialmente, após a criação da ALH, que era um braço do seu predecessor, encabeçado por Henrique e a professora Sandra Craveiros. Uma dessas participações foi em uma manifestação em defesa dos trabalhadores e contra a política econômica da época, na Lagoa do Parque Sólon de Lucena. Henrique, motivado pelo seu desejo de apoiar a causa, queria falar durante o protesto:

“Nessa época, os trabalhadores ainda tinham esse perfil de ‘machões’, que falavam sério. Quando a passeata foi chegando na Praça João Pessoa, eu disse: ‘eu quero falar também, quero meu espaço para demonstrar apoio aos trabalhadores’. Então, eu subi no palanque com uma amiga, ela segurando a bandeira [da ALH] junto comigo, e comecei a falar. E aí começaram a gritar ‘tira, tira’, como quem dissesse ‘não cabe esse tipo de manifestação, vai manchar nossa luta’. Só que as pessoas começaram a soltar o coro de ‘deixa, deixa’ e permitiram eu terminar a minha fala.”

Contudo, o ponto alto do Nós Também, segundo Magalhães, foi a leitura de uma nota de repúdio contra o jornal O Norte, para o qual contribuía com tirinhas. Nas suas matérias de cunho policial, o veículo sempre fazia questão de associar travestis e homossexuais à criminalidade, depravação e perigo.

“Normalmente, toda notícia que tinha um crime era porque ‘mataram um homossexual’. Ou ‘homossexual foi encontrado morto na zona de tráfico’, escrito bem grande. Você não lia ‘mataram um heterossexual’, por exemplo. Isso revoltava a gente.”

E foi motivado por essa discriminação, que Henrique leu uma nota de repúdio contra essas matérias, durante um show no antigo Clube Astrea em 1981. O evento contava com apresentações de artistas paraibanos que estavam voltando do sudeste, como Ivan Santos, Tadeu Matias, Bráulio Tavares e Cátia de França. Embora fosse um período de reabertura política, a Polícia Federal havia recomendado aos organizadores que não fosse permitida nenhuma manifestação política dentro da apresentação.

Mas entre vaias e aplausos, Henrique Magalhães venceu sua timidez e leu sua nota de repúdio sem pausas e sem abaixar sua voz. Ele afirma que não houve nenhum tipo de retaliação por parte do O Norte e que continuou a colaborar com seus quadrinhos para o jornal.

“Maria é meu alter ego”

O final do Nós Também parece ter tomado o mesmo rumo de muitos projetos, amizades e grupos formados durante os anos de universidade: com um afastamento natural de seus participantes e com a dificuldade de encontrarem um local para seus encontros. Henrique considera o lançamento do filme Baltazar da Lomba (1982), produzido pelo grupo, como o marco final dele. O curta-metragem está disponível no Youtube e conta a história do primeiro homossexual brasileiro perseguido pela Inquisição no período colonial.

Ao ser perguntado sobre o que ele leva do seu período de militância para a vida, o professor não consegue falar apenas de uma coisa. Ele cita as descobertas de expressão da sua sexualidade e o companheirismo dos seus colegas de faculdade como memórias felizes desses tempos.

Mas o fato de Maria ser uma mulher lésbica consegue se conectar com todos os aprendizados supracitados. Sobre isso, ele diz:

“Essa virada dela para a questão da homossexualidade veio, justamente, com a minha participação no Nós Também. Porque foi um período em que eu estava me descobrindo e me afirmando como homossexual. Mas foi no momento que a gente não teve vergonha de si. E claro, que isso ia refletir no meu trabalho artístico. Maria sempre tinha uma companheira, uma coadjuvante, chamada Pombinha. Eu vi que aquela relação era de afetividade e não só de amizade.”

Inspirado no conteúdo do livro 1984, de George Orwell, o artista decidiu publicar uma edição intitulada “Maria: A maior das subversões” no ano que dá o título a esta distopia, na qual Maria e Pombinha assumem o seu amor. O Nós Também, para ele, foi mais do que um grupo de militância. Sua relação com o “núcleo duro” (Lauro Nascimento, Gabriel Bechara, Germana Galvão, Sandra Craveiros, José Augusto, “Lu” e o próprio Henrique) moldou parte de quem ele é e de como se identifica hoje.

Capa de “Maria: A Maior das subversões”, publicada em 1984. Reprodução/Editora Marca de Fantasia
Ilustração de uma das páginas de “Maria: A maior das subversões. Reprodução/Editora Marca de Fantasia

Não é surpresa que isso tenha transpassado os limites da vida real e tenha transbordado na sua arte. Maria, o Nós também e Henrique Magalhães existem em um plano que é pessoal, mas também político e, acima de tudo, artístico.

E para aqueles que não concebem a ideia de quadrinhos e assuntos políticos coexistirem, o professor-artista-editor-quadrinista avisa:

“Quem diz que quadrinho ou arte não deve se misturar com política, é porque quer que as coisas continuem como estão. Tudo que a gente faz tem a ver com a realidade. Até a indiferença não é indiferente. Até se omitir é permitir que aquilo continue. Então, é impossível que a arte se aliene. Não ser politizado já é ser politizado. Para mim, a arte só tem sentido se transformar.”

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