PAULO RÓ: A Loucura Lúcida de um Movimento da Década de 70

Aléssia Guedes
Moderna Parahyba
Published in
6 min readAug 13, 2020

Década de 70 na Paraíba. Dois irmãos, Pedro Osmar e Paulo Ró, começam um movimento de guerrilha cultural em plena ditadura militar, nomeiam o movimento de Jaguaribe Carne. Jaguaribe é o bicho que deu nome ao rio, o rio que deu nome ao bairro, o bairro que deu nome ao grupo e Carne de alimento, vida e sexo.

(Foto: Reprodução/Internet)

“Pedro Osmar já era compositor no começo da década de 70, ele participava dos festivais que aconteciam em João Pessoa com seu trabalho. Mas ele foi sentindo que o que ele queria na verdade era algo novo para poder trabalhar com o que tinha na cabeça dele. Na época, eu era um jovem adolescente e comecei a aprender a tocar violão com as pessoas que frequentavam nossa casa, essa história dos festivais trazia muitas pessoas para ensaiar, para conhecer o trabalho um do outro. E eu fui me interessando por tocar violão e aprendi. A partir de 73, a gente começou a fazer experiências em casa, sons novos. Gravar com nosso gravadorzinho uma torre de latas de leite caindo, fazendo barulho, jogando as latas para cima […]. A gente começou a perceber que era preciso alguma coisa a mais do que apenas fazer música, a gente queria experimentar sonoridades novas. […] O início do Jaguaribe Carne foi isso, foi uma coisa de vivência e novas sonoridades.” conta o co-fundador do grupo, Paulo Ró.

Para explicar o que seria um movimento de guerrilha cultural, Paulo relembra os guerrilheiros que fizeram oposição à Ditadura Militar:

“A questão da guerrilha cultural é que como sabemos, guerrilheiro é aquela pessoa que ficava lutando contra a ditadura, dentro da mata, com todas as dificuldades que se possa passar uma pessoa que vive dentro da mata, os guerrilheiros faziam isso. A gente assumiu essa terminologia, porque o que a gente fazia era muito difícil, era música que ninguém queria ouvir, letras que ninguém queria saber. Então esse negócio da guerrilha é por causa da dificuldade que tínhamos com relação ao quebrar portas. […] a guerrilha cultural é isso, a gente não vai pelo lugar mais fácil, a gente vai por dentro mato tentando resolver as coisas que ninguém quer resolver, ninguém quer saber.”

E por falar em Ditadura Militar, o Jaguaribe Carne que tinha em suas letras um teor de denúncia social sofreu diversas intimidações na época e, por várias vezes, teve suas músicas censuradas. Paulo conta que houve uma vez em que todas as músicas que iria cantar foram censuradas e precisou fazer o show totalmente experimental. E quando estava com o grupo Jaguaribe Carne, em um festival, chegaram a ser levados à Polícia Federal para prestarem depoimentos.

“As coisas não foram fáceis, nós fomos participar de um festival de música, em Recife, e Pedro foi cantar a música Baile de Máscaras. Na hora do ensaio, nós dissemos que queríamos cantar onde ficavam os apresentadores, na parte de baixo do palco, e o pessoal [da organização] não queria, disseram que lugar de cantar era o palco. Ficou essa confusão e um deles disse “acabou a hora do ensaio de vocês, não vai ensaiar mais não” e não ensaiamos a música. Na hora de apresentar a música, nós entramos com um carrinho de lixo que estava no teatro, uma escada também do teatro e uma caixa de papelão. Nós tínhamos recebido, durante a viagem, um daqueles panfletinhos evangélicos; e pegamos ele, uma bula de remédio e um livro que a gente leu. Então a música ficou o seguinte: Eu li a bula do remédio, Vandinho de Carvalho que era nosso percussionista leu o panfleto evangélico e Pedro o poema, tudo ao mesmo tempo. Não deu 30 minutos, desligaram o som e chamaram a polícia e fomos levados para a Polícia Federal para prestarmos depoimentos sobre o que era aquilo. O diretor do festival estava irritadíssimo, eu acho que ele quase teve um ataque naquela hora, chamando a gente de comunista safado, nós ficamos na Polícia Federal durante a noite. Depois, Pedro ligou para um amigo dele que era Lenine e, logo cedo, ele foi lá tentar dar uma amenizada na situação, dizer que era música experimental. Liberaram a gente, porque viram que era só uma coisa diferente mesmo. Mas são essas coisas que a ditadura fez e fará de novo se a gente não se cuidar.”

As músicas experimentais foram características do Jaguaribe Carne desde o primeiro show deles, no Teatro Santa Rosa. Segundo o músico, as pessoas ficaram surpresas com a primeira apresentação, mas que o movimento foi agregando mais artistas.

“Depois desse primeiro show as pessoas ficaram chocadas com o que viram e ouviram no palco, e foi juntando poetas, artistas plásticos, outros músicos. É a coisa da influência né? Doido chama doido, e doido no mundo tem muito. A gente ficou sendo uma referência por causa do nosso trabalho. As pessoas acham que a gente é louco, mas é uma loucura lúcida. As loucuras que a gente comete, as pessoas gostariam muito de cometer.”

A ideia do grupo era utilizar a cultura popular que eles sempre observaram com tanta força no bairro de Jaguaribe. E o sentimento pela cultura regional era tão forte que o primeiro disco do Jaguaribe Carne foi todo feito com ritmos populares como a ciranda, o coco de roda, o baião e o bumba meu boi. Além disso, o primeiro disco do grupo teve, curiosamente, mil capas diferentes. Paulo conta que a ideia foi de Pedro Osmar que, na época, trabalhava com design e também porque eles estavam envolvidos com arte postal, então enviavam dez capas para alguém em Recife, mais dez capas para alguém em São Paulo, para pessoas do Brasil todo e também fora dele, que estavam envolvidas com arte postal as convidando para fazerem parte do projeto. Em João Pessoa, eles convidaram artistas plásticos, poetas e até crianças para fazerem as capas dos discos.

(Foto: Divulgação)

“A ideia é que como a capa já nos induz a um som, então cada pessoa que fosse ouvir seu disco iria ouvir um disco diferente. Porque como a capa era diferente, a música certamente se tornaria uma música diferente.”

Já o segundo disco do grupo Vem no vento, lançado 10 anos após o primeiro, teve participações de grandes nomes da música paraibana como Elba Ramalho, Chico César, Escurinho, Totonho e Vital Farias. Houve ainda participação de outros cantores nordestinos como Lenine, Zeca Baleiro, Xangai e Elomar.

“São pessoas que sempre estiveram perto convivendo com essa coisa da necessidade de fazer música aqui em João Pessoa, o trabalho vem no vento foi pensado com a ideia de que as pessoas cantassem nossas músicas. […] São pessoas que diretamente ou indiretamente tinham envolvimento emocional com a música do Jaguaribe Carne.”

Para finalizar, Paulo acredita que a música paraibana vive, atualmente, uma efervescência:

“Grandes músicos. Cantores maravilhosos. Gente que você ouve cantar e percebe que além da técnica tem talento. E essa efervescência de grupos e compositores têm trazido um movimento que, de uma maneira ou de outra, está fazendo com que as pessoas comecem a perceber que tudo aquilo que a gente tentou fazer com o Musiclube era uma necessidade. Hoje em dia, nós começamos a ver que essas pessoas percebem a necessidade da organização, como diria o filósofo Chico Science ‘desorganizando, eu posso me organizar’”.

Revisão: Adailson Paiva

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Aléssia Guedes
Moderna Parahyba

Escrevo, escuto e compartilho histórias. Jornalista nas horas não vagas.