“Pessoas Normais” e as anormalidades da intimidade

Rayssa Oliveira
Moderna Parahyba
Published in
4 min readSep 11, 2020
Paul Mescal e Daisy Edgar-Jones como Connell e Marianne em Pessoas Normais. Divulgação/Hulu.

Poucas adaptações audiovisuais de obras literárias tiveram o privilégio de serem equiparadas ao conteúdo original. E mesmo as que conseguem tal feito, sempre são vítimas da fatídica frase de encerramento “mas o livro é melhor”. Isso não acontece com Pessoas Normais. O livro pode até ter mais detalhes, ou alguma profundidade específica em um dos temas retratados nele. Mas sua adaptação consegue ser tão sensível, real e crua quanto.

Sally Rooney, autora de Pessoas Normais. Patrick Bolger/The Guardian.

O segundo trabalho da escritora irlandesa Sally Rooney, foi lançado em 2018, mas conseguiu a atenção do grande público em 2019, após suas sucessivas indicações e vitórias em prêmios literários. Normal People chegou a sair na lista de melhores livros lidos em 2019 pelo ex-presidente estadunidense Barack Obama. Rooney ganhou o título de “primeira grande escritora” da geração millenial e Pessoas Normais foi chamado de “um futuro clássico” pelo jornal britânico The Guardian. Estava óbvio que o livro caminhava pela famosa estrada de um best-seller que atrairia o interesse de um estúdio em adaptá-lo.

A minissérie produzida para a BBC Three, e depois contando com todos os seus episódios disponibilizados no serviço de streaming Hulu, chegou ao mundo de falantes de língua inglesa em abril. Aqui no Brasil, Pessoas Normais está disponível no Starzplay desde julho.

Divulgação/Hulu.

Talvez você se questione sobre qual é o apelo. O porquê de tanta comoção. Talvez você acredite que se trata de mais um livro para jovens adultos com um romance exagerado entre adolescentes. Afinal, a premissa colabora com essa visão. Dois jovens no interior da Irlanda iniciam um relacionamento no final do ensino médio e somos levados a acompanhar o desenvolvimento desta relação até o ano final de faculdade. Ela, uma menina tímida excluída pelos seus colegas de sala. Ele, um rapaz envolvido em esportes que tem um grupo bem estabelecido de amigos. Este resumo simplista que mistura o enredo de qualquer comédia romântica adolescente genérica com a sinopse de Um Dia de David Nichols não condiz com a riqueza da história de Pessoa Normais.

Tanto no livro quanto na minissérie, os protagonistas Connell e Marianne condizem com o título da obra em que estão inseridos. São jovens envolvidos em situações cotidianas e completamente verossímeis. O relacionamento iniciado ainda na escola, e estendido por momentos de afastamento e proximidade ao longo da passagem dos dois pela universidade é retratado com camadas que adicionam uma profundidade inquestionável.

Além do relacionamento em si, as dinâmicas sociais que envolvem o casal são pontos importantes na narrativa. Quando descobrimos que a mãe de Connell trabalha como faxineira na casa da família rica e abusiva de Marianne, somos levados a várias discussões sobre classe e desigualdade que crescem à medida que nossos protagonistas amadurecem. O relacionamento oculto aos colegas da escola não tem essa dinâmica apenas por capricho juvenil de um dos dois, ele é atravessado por vários outras questões determinantes. O livro e sua adaptação entram em uma crescente satisfatória no momento em que o casal atinge a vida universitária. A troca de papéis, sendo agora ela a pessoa com melhor traquejo social e ele a pessoa com dificuldades de se encaixar e se adaptar na nova cidade, potencializa as discussões sobre a intersecção entre qualidade de vida, desigualdade social e problemas psicológicos em jovens adultos.

Paul Mescal em Pessoas Normais. Divulgação/Hulu.

Normal People não recebeu três indicações ao Emmy sem motivo aparente. As indicações de Melhor Ator para Paul Mescal, Melhor Roteiro e Melhor direção só são o apontamento de algumas das melhores coisas da minissérie. Mescal consegue transmitir todo os conflitos internos de Connell de forma avassaladora. E embora não tenha indicada, a Marianne de Daisy Edgar-Jones consegue nos emocionar da mesma forma que no livro.

Mas outras coisas também merecem ser elogiadas na minissérie. Um dos assuntos mais comentados no que diz respeito a adaptação é como foram retratadas as cenas de sexo entre os protagonistas. A construção da intimidade e do que há de mais normal, comum e até mesmo anormal nela é um triunfo no meio de tantos retratos completamente irreais do assunto.

Pessoas Normais é sensível sem apelar para o exagero. O retrato do amor e da intimidade sem que estes sejam inalcançáveis ou idealizados demais é o que há de mais incrível no livro e na minissérie. Mas a forma delicada e ao mesmo tempo dura com que somos apresentados às dificuldades das vidas de Connell e Marianne também são importantes. Elas provavelmente irão nos lembrar de algo da nossa própria vida, ou da vida de algum conhecido. E esse é o ponto-chave da história. O quanto nas nossas vidas normais, encontramos toneladas de anormalidades e o quanto as pessoas que encontramos no caminho podem aliviar este peso, ou torná-lo maior.

Divulgação/Hulu.

Livro e minissérie nos fazem querer e não querer um amor como o de Connell e Marianne, ao mesmo tempo em que nos fazem lembrar sobre amores passados e presentes. Pessoas Normais é um belo retrato sobre primeiro amor, amizade, classe, problemas psicológicos e acima de tudo: sobre as anormalidades da intimidade.

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Rayssa Oliveira
Moderna Parahyba

um projeto de jornalista e uma degustadora profissional de delícia de abacaxi.