Antifoucaultiana

Jéssica Modinne
Modinhas
Published in
6 min readJul 2, 2023
“Refrão” (https://www.behance.net/gallery/159848783/Refrao)

Vou começar falando de onde eu vim para o desabafo fazer sentido (não é pela dor que toda mulher escreve?): teve um momento em que comecei a entender a universidade como uma morada, um lar. Nessa casa, eu podia ter a liberdade de falar e escrever. Por mais que houvessem regras de referências, eu não desanimava, porque achava que uma hora eu poderia usar os nomes que eu quisesse e que, melhor que isso, eu seria esse nome.

O problema é que, para eu ser esse nome e chegar no lugar onde quero chegar, eu tenho que usar essas referências. Vi-me presa a elas e, igualmente aprisionadas, a minha criatividade e as minhas ideias, a minha voz de mulher como produtora de conhecimento. Para ser mais exata, o problema nem é usar referências bibliográficas, elas fazem e devem fazer parte da escrita acadêmica, pois é um exercício de memória. O que me incomoda no presente são os nomes das referências em si.

Os grandes nomes usados para legitimar estudos de raça, classe, gênero e sexualidade não estão localizados onde os estudos se propõem pesquisar. Esquisito, se você olhar de longe; de perto, faz todo o sentido. O uso e desuso de referências dos clássicos, especialmente, nas ciências humanas, é uma faceta do fascismo no fazer de pesquisa atual. Não estamos imunes de sermos fascistas só porque pesquisamos e “denunciamos” fascismos nas nossas pesquisas, ainda podemos ser machistas, racistas LGBTQIAPN+fóbicos, capacitistas, entre outras coisas abomináveis.

Nomes como o de Aristóteles, Immanuel Kant, Karl Marx, Sigmund Freud, Jean-Paul Sartre, Gilles Deleuze e Félix Guattari têm me intimidado grandemente na hora de produzir. Excluindo o grego, os dois alemães e o austríaco, os 3 franceses assombram meus escritos e falas acadêmicas de forma sistemática num tom obrigatório e torturante, como se maio de 1968 na França tivesse sido o momento mais importante para qualquer pessoa das ciências humanas NO BRASIL.

Mas nada — absolutamente nada! — se compara à horripilante perseguição da figura branca, calva, míope e igualmente francesa de Michel Foucault. O que houve conosco para erguermos essa igreja foucaultiana em nossos programas de pós-graduações, institutos e universidades? O que houve com nossos grupos de estudo, com as nossas aulas, com os nossos escritos? Vejo dezenas de artigos científicos publicados, bem como livros, que tratam de questões de raça, classe, gênero, sexualidade e território, utilizando Foucault como referência-chave para falar de coisas que ele sequer se importou em mencionar nas aulas longas e extremamente pedantes que dava no Collège de France. A maior preocupação deste senhor estava em analisar as coisas numa zona cinza, coisa preocupante quando tentamos empurrar o seu uso em pesquisas e produções acadêmicas em um Brasil assolado pelo neofascismo, neoliberalismo e neonazismo de 2023.

Você já discordou de um foucaultiano? Nem tente. Mesmo criticando fortemente os freudianos, os foucaultianos também protegem o nome do seu filósofo favorito como quem vai para a guerra: argumentos prontos, com citações de ano e nome do texto/livro na ponta da língua. O que é bem estranho, porque Foucault era a favor de problematizações aprofundadas sobre qualquer discurso, mas os seus seguidores apenas o citam e, estando em ambiente acadêmico, onde as vaidades falam mais alto, o citam para ter mais razão que todo mundo — afinal, quem vai duvidar de Foucault, o Jesus Cristo das ciências humanas?

A pós-verdade, presidida por estudiosos foucaultianos, não quer se limitar a um norte ou combater, a partir de lógicas radicais, práticas de machismo, racismo, LGBTQIAPN+fobia, entre outras violências estruturadas socialmente com a justificativa de que existem muitas verdades e que devemos respeitá-las, todas. Isso abre margens problemáticas: se, por um lado podemos reconhecer identidades múltiplas, também nos encontramos estagnades em problematizações eternas, onde o pensamento de pós-verdade foucaultiano se limita a sentar, debater, escrever e publicar. As vivências de militância não existem nesse meio e se acredita que artigos científicos mudarão o mundo.

Longe de mim condenar o fazer acadêmico e a pesquisa; sou pesquisadora (de gênero e feminismos). No entanto, me pergunto frequentemente quem vai chegar em casa, abrir o google acadêmico, digitar o termo “gênero”, ou “raça”, ou “classe”, ou “Amazônia”, e ler um artigo antes de dormir para relaxar; me pergunto quem vai gastar grana, uns R$80,00, R$90,00, num livro acadêmico cheio de artigos sobre essas temáticas, quem? As únicas pessoas que consomem este tipo de conteúdo são as pessoas da academia — quem está fora não se importa!

As pessoas fora da realidade acadêmica não estão se importando com o que está sendo produzido lá dentro. Digo mais: elas não querem saber. Por que? Porque a realidade acadêmica está sendo produzida em uma bolha. A realidade paralela dos muros das universidades parece estar sendo construída apenas para quem faz parte desse mundo. E mais questões me vêm em mente: para quem estamos produzindo? Com quais verdades estamos lidando? Aliás, qual verdade é a mais confortável?

É aí que o feitiço vira contra as feiticeiras — porque, sim, é isso que somos dentro destes muros: nós, pesquisadoras feministas e militantes somos as feiticeiras, bruxas, somos malquistas, quando não burras, desinformadas, como se não soubéssemos ler e escrever, como se tivéssemos que gritar todo dia pelo direito de permanecer nesse lugar, tomar esse lugar para nós. Daí nos chamam de grossas, autoritárias e dizem que nada tem a ver com machismo ou misoginia, racismo, lesbofobia ou bifobia, transfobia, que é coisa das nossas cabeças e nós precisamos nos tratar, porque temos algum problema com raiva.

Quando queremos nos emancipar dessa “seita referencial”, quando enxergamos na militância o caminho para a produção de conhecimento, somos ridicularizadas, zombadas, isoladas do teto emprestado a nós dentro das universidades. Não estamos em conformidade com a ordem, então, por que nos dar o direito de produzir? Nos fazem não querer mais escrever, não querer falar, não querer mais voltar naquele lugar nunca mais.

Nos apequenam tanto em nossas escritas, em nossas falas, nas forças das nossas vozes, que, quando precisamos gritar, somos infernais, amaldiçoadas, loucas. E somos tudo isso segundo Foucault, 1900-e-foda-se, página-tanto-faz. É, queridas, estamos na casa do senhor tentando demolí-la com as ferramentas dele (para citar Audre Lorde). O simples uso de referências é uma prisão silenciosa, como muitas outras que nós nos deixamos entrar pensando encontrar a liberdade. As concessões que fazemos têm preços que, geralmente, nos custam nossa liberdade.

A solução? “Jurei mentiras e sigo sozinho/assumo os pecados”. Vamos tomar de assalto as nossas referências, vamos ser as referências. Nada é mais poderoso do que conhecimento de causa através de vivências, marcas no corpo, na memória. Somos mapas cheios de referências, vocês não veem? Quantas de nós temos nossas falas e escritas freadas porque nos dizem que não bastamos? Quantas de nós são obrigadas a enfiar um Michel Foucault pra ninguém reclamar e ter um artigo publicado? Para uma mulher ter um teto todo seu ela precisa entender que quem morará sob este teto será ela: a cama, o sofá, o fogão, o papel, a caneta, mas também sua voz, a sua memória e o seu corpo inteiro.

“Radicalismo seu, Jéssica”. Sim, radicalismo, digam o que quiserem. Estou indo bem na raiz da coisa, pois é lá que se encontra o problema. A pós-verdade foucaultiana não me enche os olhos, nada que me freie e que freie as lutas das mulheres, dos movimentos negros e LGBTQIAPN+ no Brasil me enche os olhos. Se eu precisar combater esse tipo de coisa entre os meus pares, será porque esses não são os meus pares no que diz respeito às lutas de pessoas que têm suas subjetividades negadas dentro das universidades.

Fora isso, num âmbito pessoal, quero um texto só meu, que ninguém interfira; quero uma anti-referência. Aliás, melhor que isso, eu quero ser a minha referência! Quero poder escrever e produzir conhecimento sobre gênero e feminismos a partir de experiências minhas e de outras mulheres — como Conceição Evaristo, Lélia Gonzales, Zélia Amador de Deus, Carolina Maria de Jesus, Clarice Lispector, Hilda Hilst — sem precisar pensar através de uma citação de um europeu que nunca nem mencionou as condições de vida das mulheres da minha época e do meu país.

Para terminar, quero dizer que sei que o incômodo alheio é certo — já está sendo — e desejo boa sorte para que encontrem terapeutas com preços de sessões em conta. Psicoterapia é um serviço caro.

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