Como enfrentar violência contra a mulher? Apontamentos de uma feminista pelo 8M

Jéssica Modinne
Modinhas
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5 min readMar 13, 2020

Talvez esse assunto nunca termine de ser debatido. Talvez as forças engajadas nesta disputa não cessem jamais de tentar se sobrepor uma a outra. O ponto é: até quando precisaremos debater? Qual estratégia é definitiva e eficaz para o fim da violência de gênero, sobretudo, a que diz respeito às mulheres?

Se indagar sobre é o primeiro passo; apesar de ser um passo de formiga, não é sem vontade. Violentar mulheres é uma das mil práticas terroristas de estado que enquadram vidas de pessoas como menos enlutáveis; precariza existências, precariza vidas. Judith Butler, em sua obra “Quadros de Guerra: Quando a Vida é Passível de Luto?” expressa sua criticidade sobre as políticas de vida e morte, ou sobre como o biopoder opera sobre esses corpo que não são passíveis de luto. Os nossos corpos biológicos de mulher estão, infelizmente, nesta lista; vou mais além: a feminilidade está nesta lista, pois o feminicídio se encontra com outros assassinatos produzidos por identidades de gênero, local onde a sexualidade se faz sempre presente. A lista grande: mulheres brancas, negras (em maior número), indígenas, classe alta, média e baixa periférica (em maior número também); heterossexuais, lésbicas, mulheres e homens trans; travestis; mulheres cisgêneras, travestis, mulheres e travestis que se prostituem. Tudo que se liga à feminilidade, à performance dita como feminina nos padrões patriarcais de socialização, está ligado ao risco da violência e da morte.

Violência e morte são mecanismos de disciplinarização dos corpos promovido largamente pelo Estado terrorista, e não me refiro ao atual governo brasileiro, cujo desbunde supera qualquer cara de pau disposto a fazer da feminilidade um modo de vida subjugado. Esta questão, a de violência contra a feminilidade data de muito antes; data de um tempo que nem tem data. Disciplinarizar corpos — no contexto em que aqui falo — é exercer controle sobre as formas e padrões desses corpos, ou seja, materializar o que chamados de biopoder. Ora confiamos nossa proteção a este Estado, ora reivindicamos dele os nossos direitos fundamentais — deixados, em nome desta proteção, em suas mãos.

Este acordo, ou o que Thomas Hobbes chamou de Contrato Social, judicializa as vidas promulgando discursos que não chegam às práticas. A Lei Maria da Penha, um dos maiores exemplos, é celebrada como uma conquista relativa aos direitos das mulheres o Brasil, portanto, os direitos humanos. Entretanto, o descumprimento desta lei, e mesmo a justificativa de sua necessidade são termos preocupantes, pois fazem emergir os reais motivos de sua existência. Enquanto que a mídia demonstra a lei como alcance de direitos, a História a revela como um “pagamento de pena” ao qual o Brasil foi o brigado a cumprir: Em razão desse fato, o Centro pela Justiça pelo Direito Internacional (CEJIL) e o Comitê Latino Americano de Defesa dos Direitos da Mulher (CLADEM), juntamente com a vítima (Maria da Penha), formalizaram uma denúncia à Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA, ocasião em que o país foi condenado.

Maria da Penha em sua juventude e quando teve uma lei promulgada em seu nome

O caminho histórico para o alcance desta lei, deste direito, não é o único desafio a ser encarado quando olhamos para a realidade de violência contra as mulheres no Brasil. Legislações não modificam por completo, ou erradicam condições de vida sub-humanas. Problematizar a jusdicialização de violência contra a mulher se torna um assunto de extrema urgência quando pensamos em Marielle Franco, quando pensamos na própria Maria da Penha, quando pensamos nos inúmeros e famosos feminicídios protagonizados por uma sociedade misógina a autoritária, cujo Estado é sim agente de terrorismo. A lei Maria da Penha permanece como exemplo: por mais que as mulheres, todas, sem exceção, estejam amparadas juridicamente, os mecanismos atrelados a esta lei não funcionam de acordo com ela própria. Quantos relatos já se escutou de mulheres violentadas, perseguidas, abusadas, estupradas, que chegam nas delegacias e ainda são revitimizadas pelo próprio sistema de “proteção” às vítimas? Frases como “o que você estava vestindo?”, “o que você bebeu?” ou “volte para casa e tome um banho” são frequentes nos relatos daquelas que procuraram por um sistema que se diz protetivo em seu regimento, mas que utiliza de mais violência ainda para “proteger”. A denúncia, neste contexto, é compulsória (em seu sentido literal) e pode resultar em mais prejuízos psicológicos e físicos para as vítimas.

Entretanto, há de se convir que os números de denúncias aumentaram (e continuam aumentando) desde a promulgação desta lei, o que dá visibilidade para o caso de violência contra a mulher e de gênero. A importancia da Lei Maria da Penha não morre em seus tortuosos mecanismos; ela sobrevive em meio deles, reforçando a sua tão urgente necessidade em nosso país.

Além desta questão, os movimentos sociais feministas e pró-feministas têm participação colaborativa e essencial para o combate à violência contra a mulher e de gênero. Sem os estudos feministas, negros e de classe, seria impossível impulsionar melhoras na legislação e, sobretudo, nas práticas diárias de direitos humanos. Uma forte tendência temática nos estudos de gênero tem se mostrado proeminente quando falamos em violência contra a mulher: masculinidades. Perguntou-se como seria possível combater este tipo de violência sem a presença de homens — protagonistas nos números referentes à quem agrediu quem na violência doméstica —, já que eles estão diretamente ligados aos registros de violência doméstica, de gênero e contra a mulher. É impossível combater essas violências sem o diálogo com os homens; precisamos pensar numa educação, numa socialização não machista, não misógina, não tóxica e agressiva, e isto deve ser feito a partir de agora, mais do que nunca, pois o avanço autoritarista já alcançou patamares muito decisivos para que demos um tempo para pensar.

A presença de homens nesta luta não busca retirar as mulheres do protagonismo dos movimentos feministas, mas, sim, tornar mais denso aquilo que é tão reivindicado por nós: parem de nos matar. A importância desta parceria não beneficia apenas nós, mulheres, mas também ajuda na conscientização de que o Estado (terrorista) patriarcal só beneficia quem está no padrão de feminilidade e masculinidade, coisas que são e sempre serão impossíveis de serem alcançadas por qualquer pessoa. Os homens também sofrem com patriarcalismo que os consome. Coisas como a pouca procura por serviços de saúde (demonstrada nos índices de câncer de próstata, por exemplo), o silêncio sobre o que sente, o choro enodado na garganta, as obrigações de terem relações sexuais com mulheres — mesmo que não sejam consensuais –, entre outras situações, só mostram que a produção de masculinidade padrão e tóxica acontece também através de violência.

Por fim, gostaria de reafirmar a importância da luta que combate violência contra as mulheres e violência de gênero relembrando que a judicialização da causa não assegura o seu cumprimento prático; é preciso que tornemos isso uma realidade material em nosso cotidiano.

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