Eu não sou a Lexi de Modern Love (mas poderia ser)

Jéssica Modinne
Modinhas
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12 min readOct 10, 2022

Every man I knew went to bed with Gilda and woke up with me.

-Rita Hayworth

Anne Hathaway no papel de Lexi, em Modern Love (temporada 1).

Todo mundo tem uma série de conforto — a maioria das pessoas, provavelmente vai dizer Friends, ou The Office, ou Brooklyn 99 (ou qualquer outra anglófona com a maioria de atores/atrizes brancos/brancas); no que diz respeito a minha pessoa, tenho um episódio de série de conforto: o famoso episódio 3 da 1ª temporada da série Modern Love do Prime Video (Amazon), chamado “Me aceita como eu sou, quem quer que eu seja”.

Modern Love estreou no streaming de Jeff Bezos em 2019 e eu lembro de ficar curiosa para assistir o episódio com a Anne Hathaway porque estavam dizendo que o cabelo ruivo dela estava sensacional. Em 2019 eu tive uma melhor amiga ruiva e eu também tinha os cabelos pintados de ruivo; lembro que eu e essa amiga tínhamos uma dificuldade enorme em chegar nos tons de ruivo perfeitos e que combinassem com o que queríamos (plot twist: nunca chegávamos, porque pintávamos nossos cabelos em casa). Fazia todo o sentido do mundo eu querer ver a protagonista de O Diário da Princesa, também ruiva, interpretando o que diziam ser uma personagem de tom melancólico, ainda mais depois de todo o drama solenemente cantado em Les Misérables, de 2012.

Não me apressei para o episódio por algum motivo que não lembro mais, muito menos para a série inteira que, confesso, até hoje não consegui terminar de ver. Acho que as palavras “modern” e “love”, quando combinadas, soam líquidas demais aos meus monogamicamente românticos ouvidos (o que é uma tristeza, mas sigo tentando mudar o que já não me cabe mais).

Cartaz da série.

Foi em 2021, após a dolorosa e derradeira superação do isolamento social (por demanda de sobrevivência que a pandemia de COVID-19 nos trouxe), que achei que “amor” e “moderno” deveriam ser encarados, sendo líquidos ou não. Lembro que havia acabado de ver Green Knight, com o Dev Patel, o que me colocou numa breve obsessão por todos os trabalhos já realizados pelo ator. Foi aí que me lembrei que ele protagonizou um dos episódios de Modern Love — o 2º episódio, para ser mais específica, chamado “Quando o cupido é uma jornalista curiosa”, o qual eu recomendo profundamente, mas não pelo Dev Patel. Segui a numeração dos episódios e lá estava Anne, ruiva. Para a minha surpresa, ela não havia tingido os fios, mas isso não foi o que chamou a minha atenção; a atuação tão pouco surpreendeu, já que a triz é multifacetada na dança e no canto, então ela ser excelente já era de se esperar. O que o episódio quis me dar de surpresa foi algo meu, sem que eu soubesse.

Modern Love é uma série com duas temporadas e tem episódios completamente independentes uns dos outros, como se fosse Rick and Morty (péssima comparação, eu sei — mas também recomendo Rick and Morty). Todos os episódios trazem histórias diferentes protagonizadas por personagens inspirados/inspiradas em histórias de leitores/leitoras do The York Times. O famoso jornal mantém, até hoje, uma coluna semanal homônima (que você pode acessar aqui https://www.nytimes.com/column/modern-love) com histórias que falam sobre o amor e como pessoas em diversos contextos têm lidado com isso.

No entanto, não estou aqui para resenhar ou fazer uma crítica sobre a produção da série ou sobre a coluna do jornal. Voltemos para o meu episódio de série de conforto. Antes de continuar a sua leitura, aviso que haverá spoilers e você pode acabar perdendo boa parte da experiência da narrativa se continuar, já que o que emociona é acompanhar a história do episódio sem fazer a menor ideia do que vai acontecer. Falo isso a partir da minha própria experiência com o episódio.

Hathaway interpreta Lexi, uma jovem adulta que mora na cidade grande e que gosta de vestir casacos cor-de-rosa com blusa de lantejoulas douradas em plena luz do dia. Não que isso seja ruim, ao contrário, o estilo da personagem já era um sinal de como nos vestiríamos para ir ao supermercado durante a pandemia de COVID-19 (lembrando que a produção estreou em 2019). O início do episódio vem do fim dele, te dando uma prévia de algum momento em que aquilo tudo vai fazer sentido. Daí, então, Lexi começa a contar sobre o dia em que queria muito comer pêssegos de manhã cedo, ao acordar.

Corte: aparece Lexi desejando comer pêssegos, naquele figurino extravagante (casaco rosa, lantejoulas douradas), dentro do supermercado, fazendo compras; ao redor, os figurantes dançam piruetas descontextualizadas, animadas demais para um supermercado desbotado. Ela está feliz, o dia está lindo, o ruivo do cabelo dela não está manchado e é isso! No hortifruti do mercado, Lexi enxerga de longe aquele homem: ele é lindo, ela está disponível; logo se esquece dos pêssegos. Sendo uma história sobre amor, os olhares desavisados que assistem ao tão maravilhoso dia de Lexi são capturados pela possibilidade de um bom romance hétero entre a personagem e um rapaz que ela conhece no supermercado, Jeff, interpretado por Gary Carr. Lexi se aproxima de Jeff num flerte bastante teatral, os dois tomam um café e marcam um encontro para a próxima quinta-feira.

Lexi (Hathaway) e Jeff (Carr).

Mais um corte: Lexi chega em casa e tudo muda rapidamente de clima; agora, o dia feliz virou uma cama desarrumada onde a personagem fica deitada por horas, dias, sem saber de nada lá fora, sem ir para o trabalho ou tomar banho. O telefone toca e é aquele cara lindo do supermercado. Amo como os roteiristas escolheram mostrar esta personagem no auge de uma crise de humor, onde a oscilação é tão brusca que não tem como ninguém não perceber o que está acontecendo ali, e não se melindraram em tornar um suposto romance padrão em algo maior — e, principalmente, quebrar a curva do que é um romance. Você precisa prestar atenção em como esse roteiro está tentando explicar o que é amor moderno para entender que há amor (e que ele pode ser esperançado).

Então que aquele cara lindo do supermercado está na porta do prédio de Lexi e ela sequer tem vontade de sair da cama — é quinta-feira. De moletom e cabelo bagunçado (lembram que não teve banho? Pois é), ela desce do seu andar e vai comer qualquer coisa em um lugar qualquer com aquele cara — que, a essa altura do campeonato, já deve ter se arrependido de estar ali. Depois tomam sorvete e voltam andando para o prédio dela. Corte: ela está bem de novo, melhor do que nunca, mais um auge. Por que não ligar para ele às 6h da manhã e marcar mais um encontro? E marcam. O combinado é que ela sirva um jantar na própria casa para aquele cara lindo.

Chega o dia. Lexi está se arrumando, está tudo perfeito (a casa limpa, o vestido prateado, o cabelo escovado e a maquiagem feita), até que ela vai retocar o rímel no banheiro. Quando ela vê o próprio reflexo no espelho, você logo pensa “Ah, não, Lexi! Agora não, por favor!”, mas o roteiro te deixa na mão. A própria personagem pede para si “por favor!”, mas não consegue. A partir daí, a cena segue em uma queda brusca de humor de embrulhar o melhor estômago que existir para assistir cenas de sofrimento. Ela apenas começa a “cair” emocional e fisicamente, terminando a cena deitada no chão do banheiro, em posição fetal, chorando, enquanto a campainha toca lá fora (o cara lindo do supermercado chegou — e logo foi embora). A Lexi sabe e nos conta que isso sempre acontece: ela nunca consegue sustentar as relações que começa porque, em algum momento, essas oscilações de humor vão chegar de forma arrebatadora e ela vai ficar à mercê de tudo, sem saber como lidar, mesmo tendo feito todos os tratamentos possíveis. Essas oscilações de picos e vales produtivos (mania e depressão) são o Transtorno Afetivo Bipolar, ou TAB, e ela vive isso desde a infância disfarçando os períodos de grande cansaço e tristeza com os períodos de produtividade desenfreada e brilhantismos.

Lexi durante crise, antes do encontro com jeff.

E é aí que o episódio te revela o objetivo dele: a última sequência do roteiro mostra Lexi indo ao escritório de advocacia em que trabalha para pegar as suas coisas. Ela foi demitida por faltar muito ao trabalho, apesar de ser excelente advogada (quando não está em crises de oscilação de humor, o que a deixa dias paralisada na cama). Uma amiga do escritório a convida para um café, lamentando a demissão da protagonista, e é lá que a cobertura desse bolo emerge na degustação inteira da sobremesa, com Lexi revelando tudo o que vive por conta do Transtorno Afetivo Bipolar — você, caso ainda não esteja desidratado/desidatrada, começa a desidratar de chorar junto com a Lexi recebendo o amor sobre o qual este episódio de Modern Love se trata — aquele pelo qual você, eu e todo mundo segue no esperançar.

O TAB é, possivelmente, um daqueles diagnósticos que se tornaram “moda” nas práticas psiquiátricas mal empreendidas — o que causa muito problema, especialmente quando envolve medicações — e que se tornam um saco de gato de estereótipos quando alguém diz que tem. Existem muitos debates hoje sobre a existência de um transtorno do ESPECTRO bipolar. Segundo o CID-10 (manual diagnóstico chamado de Classificação Internacional de Doenças e Problemas Relacionados à Saúde — também conhecida como Classificação Internacional de Doenças — CID), o Transtorno Afetivo Bipolar (código F31) tem 9 formas diferentes de se manifestar (para saber os nomes, indico o seguinte link: https://www.medicinanet.com.br/cid10/1530/f31_transtorno_afetivo_bipolar.htm, mas se você quiser saber mais sobre esse transtorno afetivo, recomendo que se faça buscas no Google ACADÊMICO e, caso seja possível, tire dúvidas com profissionais qualificados/qualificadas).

O TAB pode se manifestar de muitas formas (são 9 variações, né?) e o da Lexi ocorre em curtos períodos de tempo, variando, bruscamente, ente mania e depressão: em um momento, a personagem é super produtiva, faz mil coisas ao mesmo tempo e é frequentemente recompensada por isso; já em outro momento, ela se afunda em um humor tão depressivamente paralisante que sequer levanta da cama. Um exemplo disso (e que eu já citei) é quando ela mesma explica nas cenas finais do episódio que sempre tentou compensar esses momentos de queda de humor sendo o mais eficiente possível quando estava se sentindo bem (na verdade, esses momentos eram episódios de mania).

Sendo bem honesta, não acho que a série mostra uma realidade estigmatizada de quem tem TAB; também acho que esse nem é exatamente o objetivo dela; acredito que o amor ainda é o centro de tudo nesse episódio. É por isso que sinto um abraço forte e quente, mesmo chorando litros todas as vezes em que vejo a Lexi contar para a sua colega de trabalho que é diagnosticada com TAB. A identificação é real e é aí que eu posso pensar em formas de amor que não são aquelas que vi as gerações passadas pregarem como verdade. Amor se faz em práticas de cuidado.

Vamos voltar para a hora em que o roteiro aposta que já estamos chorando com a Lexi? Vamos. Quando ela conta a realidade para a amiga, somos educandos/educandas da série: a protagonista, após contar tudo para a sua amiga, diz que vai entender se ela quiser se afastar — e, mais tarde, a Lexi nos conta que se afastou de muita gente por conta do TAB (!!!) –, mas esta amiga pergunta o que Lexi quer fazer naquele momento e mostra que dará o suporte emocional que puder, contrariando toda a expectativa de abandono e sofrimento que a personagem principal já nos mostrou ter vivido (abandono da parte de outras pessoas, ou da parte dela mesma).

As idealizações sobre amor, encontrar alguém, viver um romance, são cruéis demais. Nada disso existe, é uma tese de padrão que esmaga subjetividades e controla nossos corpos, sejam eles quais forem. Lexi não tinha duas personalidades, ela tinha uma variação de humor que é produção sistemática de uma lógica de ódio; de uma lógica que a limitava em muitos sentidos; ela, numa analogia feita no roteiro, se sentia como Rita Hayworth, que precisava sair do papel de Gilda, a ruiva flamejante, divertida e sexy, mas que era uma pessoa real no final do dia. Quando a realidade de se relacionar com uma pessoa vem à tona, quando Gilda dá lugar à Rita, se vê alguém e não uma personagem. O amor empreendido aqui não está em encontrar o “par perfeito”; está, diferentemente, em assumir as próprias limitações e delas não se esquivar, ou mesmo se atrever em ultrapassá-las quando é necessário estar em um lugar seguro para si, sozinha ou com alguém(ns).

Lexi conversando com a sua amiga de trabalho sobre o diagnóstico de TAB.

Talvez, esse lugar seguro seja esse reconhecimento de si. Não falo de jogar a toalha, alçar bandeira branca ou coisas do tipo. Isso não é um discurso à resignação enquanto forma de vida possível, ao contrário; isto é o encontro com um espelho que nos reflete e nos dá pistas sobre quem somos naquele exato momento em que nos encaramos. Olhar no espelho que as relações nos convidam a olhar, alçar a vela da disponibilidade de compartilhar as próprias descobertas com alguém, mas, principalmente, por nós.

Não devemos dar margem ao discurso de “lutar por amor”, pois este é um dispositivo muito poderoso de adoecimento de corpos e subjetividades, especialmente, para aquelas pessoas que não se encontram no padrão da questão toda. Lutar por amor é, enquanto prática de ódio, afirmar que este é um lugar de batalha, se não, uma guerra, onde um dos lados deve sair perdendo, já que a lógica bélica é o que rege o contexto de luta. Nesse sentido, aquilo que cedemos e exigimos vira um tratado de paz, um mero contrato a ser cumprido por ambas as partes; caso não ocorra, o risco de guerra é instalado, o risco de violência é real.

Amor não precisa ser uma guerra; aliás, não tem que ser. Assim como não precisa ser entre duas pessoas, não tem que ser entre mim e o meu reflexo. O amor não precisa seguir a direção externa a nós, ele precisa se ampliar como uma rede rizomática, como algo sem início e sem fim, respeitando as próprias limitações em relação a quem somos num determinado momento de vida.

Eu me esforcei muito para escrever sobre a Lexi, sobre um amor moderno (não vamos entrar no mérito de um debate histórico sobre quando começa, continua e termina a modernidade) e sobre como ele funciona como um espelho — eu me vejo naquilo que evito? Eu posso me evitar? — e ter escrito sobre tudo isso me serviu de acalanto para um momento bem difícil que estou tendo que lidar agora. O meu limite começa quando não me enxergo em algum amor, porque lá estou eu, esperando por mim. E mais: ao me ver e tentar fugir, vou tropeçar em mim o tempo todo. Acho que chegamos em tempos em que amamos o que nos dizem que pode ser amado, mas o amor está em muitas tramas de nossas vidas — esse talvez seja o amor (pós)moderno que ainda não elaboramos o suficiente para assumir. Nos falta saúde (mental) ou coragem de nos tornarmos pessoas para amar? O que fazemos com o amor que recebemos? E por que não recebemos, ou não nos deixamos receber amor de nós mesmas/mesmos?

A Lexi é um retrato que compõe ciclos expressivos de reflexos de si. Talvez, numa sintomatologia mais geral, o TAB se expresse nesses reflexos onde a sobrevivência é acionada automaticamente através de gatilhos muitos enigmáticos, mas sociais, reais. Transtorno mentai/afetivo é o que chamamos para aquilo que não nos responsabilizamos socialmente em produzir. Das confusões e identificações, concluo que não, eu não sou a Lexi e estou longe de ser, mas, em um espectro bastante amplo e de compreensão muito amorosa, eu poderia ser, sim. E lanço um palpite arriscado de que, na sugestão cuidadosamente empenhada deste texto, você possa se enxergar na delicadeza desta personagem assim como eu e pense que pode ser a Lexi também.

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