Isto não é uma crítica: Midsommar, de Ari Aster

Jéssica Modinne
Modinhas
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7 min readSep 27, 2019

Antes de começar a ler, saiba: há spoilers mil.

Cartaz francês do filme.

Quarta-feira é o segundo dia que eu menos gosto da semana, só perde para a segunda-feira, por motivos óbvios que todo o corpo proletariado já sabe e lamenta ao longo do ano (vide Twitter). Como toda boa millennial, reclamo, semanalmente, das mesmas coisas e dos privilégios que possuo — ter um emprego durante a crise econômica brasileira é um desses privilégios e, mesmo assim, reclamo de ter que trabalhar na segunda-feira.

Mas, nesta quarta que passou, resolvi que seria uma ótima ideia ver um filme do Ari Aster; afinal de contas, Hereditário foi bem fraquinho e nem fez tanto sentido assim no final. Midsommar, então, não tiraria o meu sono, achei, inocentemente. Aster tem as suas marcas registradas; a que eu mais gosto é a de usar pessoas nuas com corpos totalmente fora dos padrões para causar asco na plateia — coisa que eu, particularmente, gosto e aprovo, visto que o grotesco é uma construção social que parte de padrões visuais e, nesse caso, corpóreos, para manifestar uma verdade: temos medo do que não está no padrão.

O filme demora e, se você assistir antes de dormir, talvez acabe dormindo antes do filme terminar. Sim, ele exige café ou outras drogas para manter acordada a plateia menos acostumada com o estilo “Ridley Scott” de fazer filmes — vocês já notaram que os filmes dele são bem parados? Mesmo em filmes que têm mais ação, como Blade Runner, parece que o tempo para (e isto também não foi uma crítica) — o que, contudo, não compromete a qualidade da experiência que Aster nos convida a viver. Muito pelo contrário: a demora, a calmaria, o silêncio, o passar arrastado do tempo do roteiro são ingredientes que complementam a ideia que eu, enquanto pessoa que não está fazendo crítica nenhuma ao filme, em absoluto, julgo central no sofrimento que é ver este filme (numa quarta-feira, o segundo dia que eu menos gosto na semana).

Sim, sofrimento, e não, sofrimento não é algo necessariamente ruim. Taí uma ideia que o filme trabalha muito bem. Tudo morre e isso causa sofrimento, mas há vida justamente por causa desse sofrimento. O luto da personagem principal circunscreve esta ideia de uma forma muito intensa e profundamente complexa, no maior estilo “Ai Gabi… Só quem viveu sabe!”. Entretanto, o grande truque do filme é fazer você viver o que só quem viveu sabe, e esse quem é Dani, uma jovem que passa por um episódio profundamente agressivo de luto: teve os pais assasinados pela própria irmã que, após cometer o ato, se matou.

Andressa Urach protagonizando um dos maiores memes brasileiros.

O filme começa à noite e vai, aos poucos, crescendo para uma manhã eterna. Um “sol de meia noite” infinito e perturbador. Nada parece passar, tudo fica, e as sensações de agonia, angustia, dor, sofrimento e estranheza permanecem, insensatamente. A insistência da manhã parece causar um clima de torpor muito semelhante ao que se pode sentir durante um período de “crise depressiva” (chame como desejar) e é aí que o estilo “Ridley Scott” triunfa em nos fazer sentir o que a personagem principal está sentindo. Dani viaja para a Suécia com o namorado displicente (Christian) e os amigos (Josh, Mark e Pelle), igualmente indesejáveis, desse namorado. Não me aterei ao que cada um deles simboliza no filme porque não é deles que eu quero falar aqui nesta anticrítica cinematográfica. O que me interessa é a Dani.

Um desses amigos do namorado convida todo mundo para ir para o vilarejo/ a comunidade onde ele cresceu, na Suécia e, pasmem, o local é totalmente isolado do resto do mundo. Minha ironia não é uma crítica (nunca) ao velho clichê do isolamento humano em filmes de terror — até porque Midsommar não é um filme de terror e eu me recuso a encará-lo desta maneira, com licença –, mas ao primeiro indício sobre a matéria do filme. De forma complexa, a aldeia de Pelle, o amigo que convidou a galera toda para a viagem, se mostra como uma espécie externalização da experiência subjetiva de Dani. Tudo que acontece ali possui um caráter de muita estranheza, beirando, de vez em quando, um nonsense macabro: são as festas, são as mulheres torcendo os lençóis lavados, são os homens não fazendo os serviços domésticos (ops) etc.

Galera do bem da aldeia.

Ao pisarem na comunidade onde Pelle cresceu, os recém-chegados são imediatamente convidados a usar algum tipo de alucinógeno e já iniciam a visita com as suas percepções alteradas. Essa cena me lembrou muito a busca incessante pela redução de percepção de dor, efeito imediato dos analgésicos produzidos e ingeridos massivamente em nossa cultura de remediar as dores subjetivas através de medicalização. A princípio, Dani, que toma um chá de cogumelo, sente-se mal, insinuando uma crítica em relação à medicalização da vida em sofrimento: preferimos nos sentir mal por causa de um remédio, algo que pode comprometer nosso corpo, do que elaborar alguma perda em nossa vida. A anestesia social aqui é uma verdade comumente ignorada pelas especialidades de saúde, sobretudo, as que comungam com a medicina moderna — nós da psicologia não estamos excluídas(os) desta porca realidade.

Dani depois do chá de cogumelo.

No meio do caminho, o filme nos questiona sobre os rituais entorno da morte e da vida, fazendo emergir, de forma mística, questionamentos sobre o valor de uma vida, a sua dignidade e direito à morte. Em uma das cenas mais chocantes, dois idosos da aldeia, um homem e uma mulher, vivem o seu último dia de vida em uma celebração cujo ritual implica em suicídio, algo que causa uma imensa indignação aos visitantes desta comunidade. O que é a morte quando ela é tomada como um direito do sujeito e não do estado? A vida e a morte, nesta aldeia, são judicializadas como em qualquer sociedade que adora um tabu específico, mas o luto dos que se suicidam por terem chegado em uma certa idade é lidado da forma mais sublime possível pelas(os) habitantes da aldeia. Morrer com dignidade, nesse contexto, é poder se matar antes da decrepitude que a idade possa causar. Isto é ter dignidade e respeito. O choque de Dani diante da situação é mais um indício de que o filme busca desconstruir algumas verdades sobre a morte e a destruição, deslocando-as do senso comum e pondo-as como um exercício necessário e natural das vivências subjetivas humanas.

A obviedade do filme está escondida sob um véu de alegria. O terror não espera a noite porque o terror já está em nós. O que pode ser mais assustador do que o desamparo? Mesmo vivendo em solidão, é necessário que se tenha um suporte emocional. Dani não tem isso. A noite começa a virar dia e os dias começam a ser uma tortura quando os pais de Dani são assassinados pela irmã da personagem que, em seguida, se suicida. Para piorar, o namorado, única pessoa que poderia dar o suporte emocional necessário à Dani, pouco se importa com a sua situação, estando mais interessado em estar com os amigos.

Em uma das cenas mais fortes do filme — que não usa gore ou qualquer monstruosidade –, Dani entra numa espécie de colapso onde só consegue chorar e gritar sem parar. As mulheres ao redor seguram-na e começam a reproduzir os sons do choro e dos gritos e as expressões faciais de Dani, dando um sentido de comunidade à cena, mas, principalmente, nos arrastando para a sensação de “bola de neve” ansiosa, depressiva e em pânico que é buscar a saída da realidade da perda. Essas mulheres ao redor da personagem simbolizaram, para mim, todo o peso da pessoa em sofrimento, que não consegue fugir da dor e é obrigada a coexistir, lamentavelmente, com o desconsolo do abandono, da falta e do desamparo enlutados.

Dani sendo (des)amparada pelas mulheres da comunidade.

Além do episódio de suicídio, a comunidade de Pelle festeja mais três rituais que, aos olhos despreparados para as estranhezas, podem ser complexos demais: a escolha da Rainha de Maio — festejo em que as jovens da comunidade devem dançar sem parar, vencendo a que não cair durante a dança, que pode levar dias –, uma espécie de ritual de cópula — que ocorre em grupo, não sendo, no entanto, uma orgia, mas sim um tipo comunhão onde mulheres ajudam outra mulher a engravidar — e a queima de uma casa que foi construída para ser queimada contendo pessoas vivas e mortas. Esse último ritual fecha o filme com um final surpreendentemente feliz, o qual revela, para quem ainda não havia conseguido digerir, que o filme é uma jornada pelo luto de Dani. O sorriso final da personagem principal, eleita Rainha de Maio, é a evidência clara de que o luto chegou no fim.

Dani coroada como Rainha de Maio, um dos pontos altos do filme.

A morte do que deveria morrer é o mote final de Aster em Midsommar e o filme termina numa espécie de começo, ao qual não somos permitidos experimentar, mas, assim como o propósito da obra, está embebido de simbolismos, os quais a imaginação nos proporciona construir, destruir e construir novamente.

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