Isto não é uma crítica: Midsommar, de Ari Aster
Antes de começar a ler, saiba: há spoilers mil.
Quarta-feira é o segundo dia que eu menos gosto da semana, só perde para a segunda-feira, por motivos óbvios que todo o corpo proletariado já sabe e lamenta ao longo do ano (vide Twitter). Como toda boa millennial, reclamo, semanalmente, das mesmas coisas e dos privilégios que possuo — ter um emprego durante a crise econômica brasileira é um desses privilégios e, mesmo assim, reclamo de ter que trabalhar na segunda-feira.
Mas, nesta quarta que passou, resolvi que seria uma ótima ideia ver um filme do Ari Aster; afinal de contas, Hereditário foi bem fraquinho e nem fez tanto sentido assim no final. Midsommar, então, não tiraria o meu sono, achei, inocentemente. Aster tem as suas marcas registradas; a que eu mais gosto é a de usar pessoas nuas com corpos totalmente fora dos padrões para causar asco na plateia — coisa que eu, particularmente, gosto e aprovo, visto que o grotesco é uma construção social que parte de padrões visuais e, nesse caso, corpóreos, para manifestar uma verdade: temos medo do que não está no padrão.
O filme demora e, se você assistir antes de dormir, talvez acabe dormindo antes do filme terminar. Sim, ele exige café ou outras drogas para manter acordada a plateia menos acostumada com o estilo “Ridley Scott” de fazer filmes — vocês já notaram que os filmes dele são bem parados? Mesmo em filmes que têm mais ação, como Blade Runner, parece que o tempo para (e isto também não foi uma crítica) — o que, contudo, não compromete a qualidade da experiência que Aster nos convida a viver. Muito pelo contrário: a demora, a calmaria, o silêncio, o passar arrastado do tempo do roteiro são ingredientes que complementam a ideia que eu, enquanto pessoa que não está fazendo crítica nenhuma ao filme, em absoluto, julgo central no sofrimento que é ver este filme (numa quarta-feira, o segundo dia que eu menos gosto na semana).
Sim, sofrimento, e não, sofrimento não é algo necessariamente ruim. Taí uma ideia que o filme trabalha muito bem. Tudo morre e isso causa sofrimento, mas há vida justamente por causa desse sofrimento. O luto da personagem principal circunscreve esta ideia de uma forma muito intensa e profundamente complexa, no maior estilo “Ai Gabi… Só quem viveu sabe!”. Entretanto, o grande truque do filme é fazer você viver o que só quem viveu sabe, e esse quem é Dani, uma jovem que passa por um episódio profundamente agressivo de luto: teve os pais assasinados pela própria irmã que, após cometer o ato, se matou.
O filme começa à noite e vai, aos poucos, crescendo para uma manhã eterna. Um “sol de meia noite” infinito e perturbador. Nada parece passar, tudo fica, e as sensações de agonia, angustia, dor, sofrimento e estranheza permanecem, insensatamente. A insistência da manhã parece causar um clima de torpor muito semelhante ao que se pode sentir durante um período de “crise depressiva” (chame como desejar) e é aí que o estilo “Ridley Scott” triunfa em nos fazer sentir o que a personagem principal está sentindo. Dani viaja para a Suécia com o namorado displicente (Christian) e os amigos (Josh, Mark e Pelle), igualmente indesejáveis, desse namorado. Não me aterei ao que cada um deles simboliza no filme porque não é deles que eu quero falar aqui nesta anticrítica cinematográfica. O que me interessa é a Dani.
Um desses amigos do namorado convida todo mundo para ir para o vilarejo/ a comunidade onde ele cresceu, na Suécia e, pasmem, o local é totalmente isolado do resto do mundo. Minha ironia não é uma crítica (nunca) ao velho clichê do isolamento humano em filmes de terror — até porque Midsommar não é um filme de terror e eu me recuso a encará-lo desta maneira, com licença –, mas ao primeiro indício sobre a matéria do filme. De forma complexa, a aldeia de Pelle, o amigo que convidou a galera toda para a viagem, se mostra como uma espécie externalização da experiência subjetiva de Dani. Tudo que acontece ali possui um caráter de muita estranheza, beirando, de vez em quando, um nonsense macabro: são as festas, são as mulheres torcendo os lençóis lavados, são os homens não fazendo os serviços domésticos (ops) etc.
Ao pisarem na comunidade onde Pelle cresceu, os recém-chegados são imediatamente convidados a usar algum tipo de alucinógeno e já iniciam a visita com as suas percepções alteradas. Essa cena me lembrou muito a busca incessante pela redução de percepção de dor, efeito imediato dos analgésicos produzidos e ingeridos massivamente em nossa cultura de remediar as dores subjetivas através de medicalização. A princípio, Dani, que toma um chá de cogumelo, sente-se mal, insinuando uma crítica em relação à medicalização da vida em sofrimento: preferimos nos sentir mal por causa de um remédio, algo que pode comprometer nosso corpo, do que elaborar alguma perda em nossa vida. A anestesia social aqui é uma verdade comumente ignorada pelas especialidades de saúde, sobretudo, as que comungam com a medicina moderna — nós da psicologia não estamos excluídas(os) desta porca realidade.
No meio do caminho, o filme nos questiona sobre os rituais entorno da morte e da vida, fazendo emergir, de forma mística, questionamentos sobre o valor de uma vida, a sua dignidade e direito à morte. Em uma das cenas mais chocantes, dois idosos da aldeia, um homem e uma mulher, vivem o seu último dia de vida em uma celebração cujo ritual implica em suicídio, algo que causa uma imensa indignação aos visitantes desta comunidade. O que é a morte quando ela é tomada como um direito do sujeito e não do estado? A vida e a morte, nesta aldeia, são judicializadas como em qualquer sociedade que adora um tabu específico, mas o luto dos que se suicidam por terem chegado em uma certa idade é lidado da forma mais sublime possível pelas(os) habitantes da aldeia. Morrer com dignidade, nesse contexto, é poder se matar antes da decrepitude que a idade possa causar. Isto é ter dignidade e respeito. O choque de Dani diante da situação é mais um indício de que o filme busca desconstruir algumas verdades sobre a morte e a destruição, deslocando-as do senso comum e pondo-as como um exercício necessário e natural das vivências subjetivas humanas.
A obviedade do filme está escondida sob um véu de alegria. O terror não espera a noite porque o terror já está em nós. O que pode ser mais assustador do que o desamparo? Mesmo vivendo em solidão, é necessário que se tenha um suporte emocional. Dani não tem isso. A noite começa a virar dia e os dias começam a ser uma tortura quando os pais de Dani são assassinados pela irmã da personagem que, em seguida, se suicida. Para piorar, o namorado, única pessoa que poderia dar o suporte emocional necessário à Dani, pouco se importa com a sua situação, estando mais interessado em estar com os amigos.
Em uma das cenas mais fortes do filme — que não usa gore ou qualquer monstruosidade –, Dani entra numa espécie de colapso onde só consegue chorar e gritar sem parar. As mulheres ao redor seguram-na e começam a reproduzir os sons do choro e dos gritos e as expressões faciais de Dani, dando um sentido de comunidade à cena, mas, principalmente, nos arrastando para a sensação de “bola de neve” ansiosa, depressiva e em pânico que é buscar a saída da realidade da perda. Essas mulheres ao redor da personagem simbolizaram, para mim, todo o peso da pessoa em sofrimento, que não consegue fugir da dor e é obrigada a coexistir, lamentavelmente, com o desconsolo do abandono, da falta e do desamparo enlutados.
Além do episódio de suicídio, a comunidade de Pelle festeja mais três rituais que, aos olhos despreparados para as estranhezas, podem ser complexos demais: a escolha da Rainha de Maio — festejo em que as jovens da comunidade devem dançar sem parar, vencendo a que não cair durante a dança, que pode levar dias –, uma espécie de ritual de cópula — que ocorre em grupo, não sendo, no entanto, uma orgia, mas sim um tipo comunhão onde mulheres ajudam outra mulher a engravidar — e a queima de uma casa que foi construída para ser queimada contendo pessoas vivas e mortas. Esse último ritual fecha o filme com um final surpreendentemente feliz, o qual revela, para quem ainda não havia conseguido digerir, que o filme é uma jornada pelo luto de Dani. O sorriso final da personagem principal, eleita Rainha de Maio, é a evidência clara de que o luto chegou no fim.
A morte do que deveria morrer é o mote final de Aster em Midsommar e o filme termina numa espécie de começo, ao qual não somos permitidos experimentar, mas, assim como o propósito da obra, está embebido de simbolismos, os quais a imaginação nos proporciona construir, destruir e construir novamente.