Tortura, Brasil e mulheres: ensaio de ensaio

Jéssica Modinne
Modinhas
Published in
6 min readJul 5, 2019
Manifestante carregada por colegas. Foto: Evandro Texeira.

Sexta-feira de julho, 2019: acordo de um sono mais ou menos, com calor e torcicolo. Tentar tirar férias não é fácil, mas é o que eu venho tentando fazer há quase uma semana. Levanto e tiro o celular do cabo do carregador, o aparelho já está quente. Antes de continuar, gostaria de explicitar que isto foi um erro: como é possível tirar férias acordando e lendo mensagens do Whatsapp logo cedo? Simplesmente não é. Deixo a dica para aquelas e aqueles que acham que podem tirar férias com o celular ligado: você não vai conseguir.

Aliás, vou pegar o gancho do erro, bem melhor do que deixá-lo como um parêntese qualquer no meio deste texto, vamos lá. Abro o famigerado Whatsapp, a maior inteligência artificial com personalidade configurada para “abusador psicológico” que existe no planeta Terra, e que foi, provavelmente, pensado justamente para este fim; em seguida, me deparo com a tela branca com uma lista imensa de grupos dos mais diferentes tipos: trabalho, trabalho, trabalho, trabalho, trabalho com militância, trabalho com arte, trabalho que eu estou tentando engajar e família (o pior grupo, por incrível que pareça, não é o da família). Abro, como que por reflexo, o primeiro e lá está ela, A Notícia.

Poderia ser um dia normal em que eu me estressaria com 5 coisas, mas que me animaria com 3 coisas, o que não compensaria os 5 estresses que tive anteriormente, em que eu comeria coisas enlatadas — diminuindo, assim, a minha expectativa de vida — e tentaria ver, sem sucesso, algum filme, até o fim, no Netflix (caso fosse possível escolher um em menos de 40 minutos de busca nos títulos). Mas não foi. Foi um daqueles dias em que o peso das memórias ressoa violentamente, nos levando de volta para outras épocas: uma mulher, no Distrito de Icoaraci, Belém-PA, foi torturada por 5 horas ininterruptas pelo ex-namorado de 19 anos — esqueci o nome do dito “rapaz”. Ele a obrigou a comer fezes de animais e raspou a cabeça da moça com uma navalha, infligindo cortes no couro cabeludo e no rosto dela. A matéria acompanha uma foto do exame de corpo e delito, com as coxas da moça marcadas, talvez à ferro quente.

Quando eu estava no ensino médio, lembro bem, tive ótimas(os) professoras(es) de história. Uma em especial (tão especial que, ironicamente, esqueci o nome — a ironia não é sarcástica, é real) lecionava história do Brasil. Gostava das aulas dela pelo bom humor e por ela contar causos diferentes do que eu havia escutado antes. Era a independência do Brasil em cima de um burrinho, com um príncipe sofrendo de piriri no meio de uma floresta amazônica; era uma princesa branca interesseira alforriando escravas(os) e criando um enorme contingente de pessoas pobres; era uma ditadura travestida de revolução e comandada por gente mentirosa.

Minha parte preferida da história do Brasil era a da ditadura militar — isto mesmo que você leu. Na época, eu já era muito fã de Chico Buarque, Caetano Veloso, Eliz Regina, Gal costa, Mutantes e de uma penca de outras(os) artistas que produziam uma contra-cultura chamada de Tropicalismo — basicamente, uma antropofagia modernista reformulada pelas demandas das décadas que seguiram com a ditadura militar. Essa professora contava histórias de heróis: falava do fulano que foi exilado porque as músicas eram tidas como “subversivas”, da sicrana que foi para a guerrilha e morreu olhando nos olhos de seu carrasco, dos beltranos que, mesmo com toda a tortura, violência e morte, ainda continuavam a cantar, pintar, representar e escrever. Isso me encantava, inspirava. Era, para mim, um sonho poder acompanhar aquilo de uma forma mais real, mais presencial. Neste ponto do texto você já deve ter percebido ou a minha burrice, ou a minha ingenuidade, e vai de cada pessoa a preferência pelos eufemismos que adjetivam este meu pensamento juvenil (veja aí, mais um adjetivo para ser escolhido).

Maria Bathânia, Caetano Veloso, Gal Costa e Gilberto Gil (heróis).

Daí que eu cresço, viro “gente grande”, me torno psicóloga e pesquisadora, artista, educadora, feminista, militante e, principalmente, procrastinadora profissional. O tempo passa, a gente olha pra trás e percebe que as meninices de outrora eram delírios — e como eram e como ainda são para algumas pessoas (eleitoras do atual presidente do Brasil). No Brasil da oligarquia Bolsonaro, a tortura virou “legalidade” (legalidade no sentido normativo, pois é visível o conforto de muitas pessoas em exultar figuras protagonistas de torturas violentíssimas nos porões do DOI-CODI), desde que se esteja afim de maltratar alguém. Isso se intensifica numa corrente de decretos absurdos encanetados por um presidente assíduo em matéria de vexames internacionais. Mas, enfim, lá está ele e, na verdade, ele mesmo nem é todo o problema da coisa. A questão é mais discursiva e bem mais complexa do que a derrubada de um elemento pró-milícia-homofobia-misoginia-tortura-etc. (observação: tenho certeza que ele também deve ser a favor de azeitonas em pizzas, só pode).

O retrato materializado em nefasta notícia de jornal só tende a piorar. Vocês já viram as fotos? Não vejam. E os vídeos? É, porque ele gravou vídeos e tirou fotos das torturas e — vejam só a ferramenta moderníssima de violência psicológica que ele usou — mandou para a família dela, pelo Whatsapp. Mas também não vejam os vídeos; não vejam nada que receberem com conteúdo audiovisual relacionado a esta moça. Aliás, não vejam e nem repassem nada pelo Whatsapp, apenas a notícia, se for possível (e, se também não for, tudo bem, eu mesma não queria ter visto, acabou com as minhas férias e eu vou ter que transformar a notícia em pauta na minha terapia que acontece hoje à tarde — queria falar de outros assuntos, mas agora não vou poder, graças a toda essa corrente discursiva rizomática e impossível de se desenrolar que é a ascensão fascista no Brasil).

Performance artística no centro do Rio de Janeiro sobre tortura na ditadura militar, feita pelo coletivo És Uma Maluca.

A violência ditatorial nos moldes do DOI-CODI nunca deixou de existir para as mulheres e acontece, até hoje, em vários lugares do mundo. Vamos um pouquinho longe? Que tal o Paquistão? Muito exótico? Rússia, que tal? Não? EUA, que é aqui em cima. Mais perto? Caramba… O caso do Goleiro Bruno! Mais perto ainda? Se você mora em Belém, agora tem Icoaraci, tem Ananindeua (pior lugar do Brasil para ser mulher, segundo estatísticas), tem a sua vizinhança, na casa do vizinho, talvez. Quem sabe, a sua própria casa, dentro do seu quarto, né?

A violência contra a mulher é uma tortura, é isto que eu quero dizer e que eu espero que, algum dia, ninguém mais precise dizer. Dar tapa, empurrar, quebrar alguma coisa no corpo de uma mulher, cortar com instrumentos pontiagudos, puxar o cabelo, engasgar e asfixiar, escalpelar, gritar, mandar, humilhar verbalmente, trair, mentir e dizer que a mulher está louca, rir quando ela chora, tocar em partes do corpo dela sem que ela tenha dito “sim”, assassinar com um tiro porque ela terminou com você, chama-la de burra na frente de todo mundo porque você não aceita que ela seja melhor que você, colocá-la na prisão que é se relacionar com você; tudo isso é tortura e olha que eu nem pensei em outras formas de nós sermos torturadas, pois estou com a minha criatividade podada devido a algumas torturas que eu sofri no trabalho, desde 2017.

Tem uma música do Caetano chamada “Podres Poderes” e ele se questiona, reclamando, se ele ainda vai ter que falar de todo aquele chorume violento da ditadura, da política brasileira, por mais de 1000 anos. Por quantos anos mais teremos que chorar um acontecimento desse? Por quantos milênios sobreviverão as lutas contra a violência de gênero que, hoje, tentamos engajar, e sem muito sucesso? Quando é que as pessoas vão parar de cantar o pau fora de casa, por não saberem e não quererem resolver os próprios problemas? A ditadura militar é física, é psicológica, é generificada e é eterna. Os Trapalhões da presidência estão aí para nos dar essa certeza.

Caetano vai ter que ser imortal para continuar a cantar e denunciar os podres poderes que hão de vir das mãos cheirando a pólvora, couro e sangue brasileiro.

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