[o inimigo mora ao lado]

monica march
a panaceia
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3 min readAug 7, 2018
foto: cristian newman

Eu adoro viajar de avião. Normalmente é uma experiência cansativa, pois nunca consigo descansar, mas — principalmente em deslocamentos mais longos — assisto a filmes, leio, presto atenção nas pessoas (quem nunca?).

Dia desses voltando de férias, chego à minha poltrona e me deparo com um casal em discussão fervorosa. Visivelmente contrariados, os dois levantaram para me deixar passar, já que eu (infelizmente) sentaria na janela, espremida e presa pelas próximas 11 horas.

Pensei que a chegada de uma pessoa desconhecida provavelmente acalmaria os ânimos e seguiríamos viagem sem maiores problemas. “Não tão rápido, Monica”. Depois de várias bufadas francesas do lado dele e olhares raivosos do lado dela, minha existência (e a de todos os outros vizinhos) foi ignorada para a retomada da discussão.

O que se seguiu me deixou surpresa e indignada. Mesmo que eu soubesse que, infelizmente, aquele tipo de situação acontece sem parar em todos os cantos do mundo. A mulher tentava se justificar por ter postado uma foto em uma rede social vestida de uma maneira que o companheiro achava inapropriada. Mais: ela era questionada por conta da maneira como se comportou, das pessoas com quem falou, sobre o local do evento, o horário que voltou pra casa.

De forma educada e tentando se desculpar por tudo, a mulher se justificava falando que aquela era uma discussão sem cabimento, pois a roupa que ela estava vestindo, seja qual fosse, não mudava a essência da mulher que ela era.

Fiquei ali lembrando de mim quando tinha a idade dela. Com um pouco mais de 20 anos, quando minha personalidade, minha forma de viver e me expressar, precisava da aprovação geral para me garantir felicidade.

O resultado mais relevante para minha vida foi uma relação abusiva que me tirou mais de uma década de possibilidades que nunca experimentei, que nunca tiveram chance de se concretizarem. O lado bom é que aprendi e nunca mais cometi o mesmo erro. O lado ruim é que precisei respirar, ir fundo dentro de mim e admitir que fui eu, somente eu, quem permitiu que acontecesse.

Eu sei que relacionamentos abusivos muitas vezes vêm disfarçados de amor. “Mas eu amo essa pessoa”, “o amor vai fazer tudo mudar em algum momento”. Não vai. É uma constatação triste, mas as chances de alguém mudar por amor pelo outro são praticamente nulas. As pessoas só mudam de verdade quando elas decidem por elas.

Se você está se perguntando como terminou a história do avião, eu conto. Depois de muitas desculpas e choro desesperado da parte da mulher, com posts apagados das redes e declarações de que não voltaria a acontecer, que ela não queria continuar aquela briga, que ela o amava, etc, tudo ficou bem. Dormiram tranquilos e sem intervalo por quase nove horas (tempo em que fiquei impedida de levantar nem mesmo para ir ao banheiro com medo de receber retaliações, nunca mais vou viajar na janela), acordaram aos beijos e saíram do voo de mãos dadas.

Talvez você ache que o amor venceu. Talvez ela também ache. Eu não. Acho que a força da repressão masculina venceu. Que a força feminina daquela moça bonita e articulada foi massacrada. Mas, mais do que tudo, acho que ela permitiu isso.

Tome as rédeas de sua vida. Por mais difícil que seja. Por mais que demore. Mesmo que a sua força venha apenas de você mesma. O feminismo é essencial para fazer com que as mulheres possam retomar o seu lugar de protagonismo ao lado dos homens — é verdade. Mas precisamos parar de jogar a responsabilidade pelo que nos acontece no outro.

Comece a prestar mais atenção. Não permita que aconteça. Nenhum “amor” do mundo, nenhuma “amizade”, nenhum tipo de relacionamento, vale isso. É a sua vida. Pegue ela pela mão e mostre que quem manda é você.

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monica march
a panaceia

ando descalça pela vida • editora do a panaceia ••• i walk barefoot through life • editor of her view