Saindo da zona de desconforto: a transformação para o cabelo grisalho

Luciana Annunziata
a panaceia
Published in
9 min readJan 23, 2020

Sentiu-se ótima, sentiu-se outra, dormiu tranquila.

Não. Não foi assim que passei a noite depois de entrar num salão de beleza e assumir meus cabelos grisalhos de uma vez.

Quero ser honesta neste artigo, então começo abrindo meu caderninho de anotações (todo escritor tem um ao lado da cama). Naquele dia, entre lágrimas depois de olhar o estado do meu cabelo, e antes de uma longa meditação, anotei o seguinte:

  1. Machismo internalizado

2. Hipervalorização da própria auto-suficiência

3. Feminismo estabanado

4. Momento de se recolher

5. Lembrar! Eu fiz isso a partir da alegria da descoberta.

Vou explicando tudo (ou quase tudo) ao longo do texto. Segura e segue!

Saindo da zona de desconforto

Duraram pouco as encanações daquela noite. No dia seguinte, já com a tesoura na mão, dei aquele arremate no corte feito no Na Bahia e pensei. Tá feito, acabou a tortura.

Há mais de 20 anos eu tingia meus brancos e nos últimos 4 eu vinha cultivando cabelos longos, cachos, tinha feito luzes, californianas, enfim, eu tive o meu momento “mina do cabelão”. E fui feliz.

Eu no Slow Market Beauty 2018. Tá lindo seu cabelo, amiga!

Mas no início de 2019, já trabalhando com sustentabilidade há dois anos em tempo integral e tingindo a cada 15 dias, chegou na minha mão um dado alarmante. O mercado brasileiro de tinturas é um dos maiores do mundo, com R$ 4,62 bilhões movimentados em 2018 e é uma das maiores esperanças da indústria mundial desse segmento. Um estudo da Grand View Research, que orienta as ações de marketing nessa área, dá atenção especial somente a dois países: Brasil e Índia. O crescimento esperado é de 6,5% em 5 anos.

Agora… esses produtos contém as substâncias mais cabeludas do mundo (desculpe o trocadilho): chumbo, amônia e, em muitos casos, ainda vai o PPD (parafenilenodiamina), substância proibida em países como França, Alemanha e Suiça.

Então por que continuamos usando, amigues?

A fala despótica do ex e o machismo internalizado

Bom, você pode tingir o cabelo por diversão, pode se sentir melhor, pode fazer o que quiser. Esse post não foi escrito para gerar mal-estar, e sim para compartilhar como eu me sentia: uma idiota tingindo o cabelo duas vezes por mês.

Pausa, túnel do tempo volta 2 anos, cena romântica em close. Luciana está namorando. O namorado é pouco mais velho do que ela, um cara divertido e inteligente, quase gato. Luciana parece feliz. Luciana puxa o papo sobre tintura (sim, era um assunto recorrente). O ex dispara: olha, eu só te peço para não deixar o cabelo branco que isso eu não dou conta.

O namoro, é claro, não vingou. Acabou bem antes do último tubo de tinta. Mas essa fala representa um certo tipo de pensamento a respeito do grisalho: é desleixo, é coisa de velha, é coisa de bruxa.

E isso não está no ex, está dentro de cada mulher que tinge a contragosto. Então minas e mines do meu Brasil, vamos descolonizar nossas cabeças, literalmente!

Bruxa com orgulho

No livro O Calibã e a Bruxa (que recomento muitíssimo e me foi indicado pela escritora Lucila Mantovani), a escritora feminista Silvia Federici volta até a idade média para fazer uma análise do lugar da mulher nas origens do capitalismo. Entre os temas que ela aborda está, é claro, a colonização do corpo feminino. Federici mostra como a dominação da mulher era extremamente necessária para o nascimento do modelo econômico que prevalece até hoje. Afinal, quem tem o poder de gerar mais força de trabalho e mais consumidores?

O direito de controlar a natalidade, o direito à propriedade, o direito à liderança das comunidades, à poligamia ou ao homossexualismo foram progressivamente vetados às mulheres, inclusive de modo violento. As estratégias foram variando (o capitalismo é super flexível!), mas até hoje assistimos o marketing massivo na busca de “conquistar este segmento” (leia-se controlar o comportamento feminino).

São muitas as ideias sobre ser mulher e sobre beleza injetadas em cada uma de nós a partir de fora. Afinal, se você nunca se viu de cabelo branco, como sabe que não vai ficar bom? Afinal, quem disse que você é muito jovem para isso se o seu corpo diz que já é hora? Quem (fora e dentro de você) acredita na escuta dos padrões culturais antes da escuta do seu próprio corpo? E quem disse que você não tem a liberdade de volta atrás? (Nem isso, o grisalho, é um padrão que você precisa engolir).

Quase foi

A ideia vinha maturando. Na Semana Lixo Zero não deu tempo de tingir. O trabalho na Casa Causa (empresa da qual sou sócia) era uma loucura absoluta. Foram 146 eventos em 2019, rodando quase só com voluntários. Solução: lenço.

Ah, vc fica bonita de lenço Lu, disse o querido fotógrafo Gustavo Lourenção, autor desta foto.

Luciana na SLZ, por Gustavo Lourenção

É. Fico. O problema é o que tem por baixo.

I had a dream

Passada a ressaca da SLZ, adivinha? Tingi! Não aguentei. Mesmo me preparando para ir a um retiro de yoga, eu tingi!

Só que no retiro eu tive um sonho.

Um cabeleireiro desastrado raspava uma parte do meu cabelo bem na frente, perto da testa. Eu pegava a tesoura para atacar o fulano dizendo “eu devia te matar!”. Nesse momento, eu me olhava no espelho e via: no meu couro cabeludo estava impresso em relevo o desenho de uma flor. Por aquela brecha, eu enxergava só as pétalas. Só veria tudo se raspasse completamente a cabeça. Fiquei com aquilo.

Corta, passam-se 15 dias e, claro, hora de tingir. De novo.

Eu lembrava daquelas pétalas, pensava no que eu estava escondendo e de quem. Pensava na quantidade de mulheres de meia idade que estavam naquele mesmo momento fazendo o mesmo que eu: enfrentando as melecas da tintura e rezando para não manchar de novo os rejuntes do azulejo do banheiro.

Não tingi.

Em busca de comparsas

Já era dezembro, o trabalho minguava (e as reuniões também). Fui ao Na Bahia em busca de solução.

Conheci a Ruchelle, dona desse salão que é referência em sustentabilidade, através da Melissa do Slow Market Beauty, evento que disparou várias mudanças nos meus rituais de autocuidado. O santo bateu.

Então naquele dia 13, eu entrei no salão achando que iam me dar “a solução”.

Aí começou a polêmica.

Gradual ou radical, eis a questão

Um caminho, é ir mudando… mudando… fazendo luzes… indo ao salão… fazendo mechas, e enfim, a gente vai vendo.

Eu ouvi de novo e com paciência pristina o que eu já sabia da internet. Meu painel de grisalhos no Pinterest a essa altura já tinha mais de 50 fotos do mundo todo (parece que os grisalhos estão em alta!). Mas não tinha jeito de me enxergar naquele processo gradual. Meu cabelo é muito branco e eu tingia de castanho escuro. Ia ter que aguentar aquela “bunda de babuíno” branca crescendo no meio da minha cabeça por meses e meses.

O pior era a química. Eu não aguentava mais mexer com aquilo. Trabalhando com resíduos e sabendo do tamanho do problema do lixo, eu só pensava no Rio Pinheiros cada vez que via escorrer aquela tinta pelo ralo. E você pode me achar maluca, xiita, não importa. Eu realmente acredito na interdependência radical de todos os seres. Eu acredito que o Rio Pinheiros é um ser. Eu creio no que o pessoal do Design Regenerativo prega. Autores como Daniel Wahl e Joanna Macy certamente não falam de tintura, mas falam de mudanças que vêm da alma e podem contaminar positivamente o mundo todo.

(Parêntese yogue: cada fio de cabelo é uma nadi, ou seja de terminação energética. Agora, pensa nas minhas pobres nadis totalmente trabalhadas no tóxico!)

Mas vamos ao que interessa você quer ver as fotos, fala a verdade

Passo 1: fora madeixas!

Tive cabelo curto por anos a fio então, para ser sincera, esta foi a parte mais fácil.

Passo 2: respira fundo

No dia do “salto para o grisalho”, eu ainda cheguei no salão um pouco insegura. Mas o caminho já estava escolhido. Se tantas atrizes e modelos fazem, por que não eu?

Passo 3: descolorir, descarregar e rezar

Depois que você se olha no espelho e vê isso... tá feito, já era.

E foi dureza, para dizer o mínimo. Me agarrei aos mantras e fui. Só que… eu tinha feito várias experiências de tingimento, inclusive com hena, então não foi exatamente tranquila esta etapa. Nem para mim, nem para a Lenir, master tinturista que fez vaaaários testes antes de começar o processo.

Passo N (porque eu nunca saberia dizer tudo o que rolou na minha cabeça naquele dia):

Enquanto as duas tinturistas iam discutindo as estratégias e mexendo nos meus fios (e no meu eu), as horas iam passando. Respiração, mantra, escreve, redes, monitorar o filho que foi sozinho a um show. O mais importante era manter a calma e confiar, como a Lenir disse segurando minha mão quando cheguei, às 9:30 em ponto daquele dia 13.

Você vai fazer isso mesmo?

“ Por que não vai aos poucos…” Era a sensatez na voz da Mel Volk.

Conto só para lembrar que existem mesmo dois jeitos de fazer essa mudança, a transformação (radical, de uma vez) e a transição (gradual, mechas, etc). Nem sempre o que você escolheu é o que suas amigas, sua mãe ou até a cabeleireira acham o caminho mais correto. No meu caso, aos poucos ia doer mais e eu tinha medo de desistir então…

13 horas depois

O que vemos?

Local: andar superior do Na Bahia para tentar manter a calma da cliente.

Ao fundo, pasma diante do espelho, temos a referida com o cabelo grisalho (se é que se pode chamar de cabelo o que tínhamos no final daquele dia).

Logo atrás, vemos as tinturistas exaustas quase deitadas no sofá.

No mesmo plano da cliente, está a técnica em recuperação capilar (Elisa, maravilhosa) falando baixinho: “calma que vai dar tudo certo”.

O dia termina com uma sessão de fotos onde todo mundo aparece assim mesmo: com cara de 13 horas de salão.

Lenir, eu e as olheiras

Um alerta, um alento

Por ironia, um dos motivos dessa saga foi eu não gostar de salão. Prezo pela autonomia, resolvo quase tudo em casa. Mas minhas visitas ali estavam longe de acabar. Por que?

Amigues, esse processo detona MUITO o cabelo, por mais bem feito que seja. Se você é apegada, terminou um relacionamento, não está muito certa disso ou está tomando remédio para depressão, não recomendo. Mas tem jeito.

Depois do Dia D, vem provavelmente um novo corte e uma fase intensa de tratamentos, que aliás foram incríveis.

Day after, sem filtro nem make, já com meu arremate no corte.

Outra coisa a se pensar é grana. Investir em produtos, nas sessões de recuperação, bota tudo isso no papel. E ah! Pode ativar a disciplina, porque a lição de casa não é pequena (continuo nela).

Se ainda assim decidir fazer o que eu fiz, recolha-se por 20 dias, você e seu cabelo esquisito, e prepare uma coleção de turbantes. Eu fui pro mato e mesmo assim tive que aguentar a coitada da minha mãe olhando meu cabelo enquanto conversava comigo. Criei até uma resposta padrão: eu sei que tá estranho, mas o meu amor e a minha inteligência continuam intactos!

Pronto. Sem tensão ☺.

Mudando de imagem

Bom, mas aí a gente tem que mudar as fotos nas redes sociais, nas divulgações do trabalho… Estas a seguir foram tiradas pelo Murilo Medina, velho amigo (de muitos anos, não conto quantos) que já tinha fotografado o lançamento do meu romance Os Cadernos do Desencontro de Antônio Guerra. Por coincidência, ele estava começando um novo trabalho sobre pessoas em transição: gente que mudou de carreira, se recuperou de um câncer, teve filho, ou, como eu, só resolveu assumir os brancos. Então aí vão as fotos.

O cabelo teve jeito.

O cachorro se chama Juquinha.

E eu estou até achando que ficou bom.

Ce tá olhando o cabelo e pensando quanto demorou para ele ficar apresentável? No meu caso, 25 dias.

--

--

Luciana Annunziata
a panaceia

Escritora de ficção, eco-feminista, buscadora, mãe, estudante de yoga.