Tábua

Cecília Garcia
a panaceia
Published in
2 min readNov 1, 2017
Deniz Hotamisligil

Baltazar assobia.

Baltazar assobia. Esmurra bromélias, copos quebrados de leite, brincos de princesa rasgam lóbulos e o sangue escorre pela luva do jardineiro.

Baltazar assobia. Ana dobra o lençol endurecido e senta na cadeira. Come o pão seu de cada dia e escolhe um vestido sem estampa. As roupas não precisam ser matas amorosas. O corpo é realmente um templo e o sacrifício é uma Ana com artérias regenerativas para morrer um pouco sempre que esquecer que é casada.

Baltazar assobia.

Ana não tem absorvente e a menstruação avança pedaço por pedaço de tecido, adubo magro de sonhos vaginais. Lava a saia suja na água sempre justa dos maridos e não espera o amolecimento do homem feito de ferro.

Na vácuo entre as últimas tábuas que Baltazar martelou assobiando entra uma redonda abelha. Tropeça na escuridão e avião listrado aterrissa na pista de pouso da calcinha manchada. Ana não gosta do silêncio da abelha. A põe entre os dedos e aproxima a concha das orelhas. O zumbido viaja pela acústica imprecisa das palmas, parece uma conversa, e Ana precisa conversar.

Baltazar cortou árvores. Do terreno baldio onde cometeu botânicos homicídios até a casa ele conseguiu arrastar nas toras de braços quatro troncos. Transformou-os em tábuas. Com alguns cobriu as janelas da sala, fazendo uma sombra desagradável para as plantas. Enquanto assobiava selou os vitrôs da cozinha e banheiro e o resto das tábuas no quarto de casal.

No breu Ana ingere toneladas de bichos trazidos no ombro de Baltazar sem saber fazendo-se forte com o tutano enclausurado, seu sangue engrossado dos chifres moídos e as tripas bovinas as únicas cordas que impedem seu útero de se espatifar no chão. Com essa musculatura silenciosa, Ana poderia quebrar tábuas túmulos de árvores e ossos do rosto anguloso de Baltazar.

Dentro da mão por cinco minutos e Ana não suporta ver a abelha presa. Abre cada um dos dedos mas é só quando o último o mindinho se abaixa que o inseto alça voo, bêbado de um suor triste, não querendo deixar seu ferrão numa carne onde não bate luz.

A abelha escapa. Ana não.

Baltazar assobia.

--

--