caleidoscópio
Tudo é falso, reflexo do que as próprias mentes viventes desejavam que o mundo fosse composto na época. Se olhamos para o passado, não vemos o que aconteceu, nem as pessoas que ali viveram, mas sim o mundo mental que ali fora gerado, mais imersos nas idealizações ou sensações do que poderia ter sido do que no que realmente fora.
Se o vejo discursar sobre a solidão do mundo na contemplação do ambiente, não vejo nem a solidão do mundo nem a contemplação do ambiente. Vejo, ao contrário, minha mente a ler a sua, pois nem mesmo a segunda opção me é possível. Acesso seu mundo ao passo que seu mundo aceita adentrar o meu. Entendo o que sentira ou o que desejava ter sentido ao passo que esses são seus desejos, mas não o vejo descrever a época, apenas as lentes pelas quais escolheu viver. E esse caleidoscópio é tudo que temos. As milhares de lentes, os milhares de microcosmos que formarão o macro, sendo também este apenas o reflexo de uma lente maior.
Quando torno conhecida a história daquele que já morreu, é apenas isso que torno conhecida: sua história, nunca ele mesmo. Admiro aquilo que hoje concebemos como você, mas não posso admirá-lo uma vez que nunca o conheci. Sei o que deixou, mas isso também são apenas mentiras ou fragmentos escolhidos pelo dedo que aponta para a própria carne. Nenhum vestígio que deixamos para trás poderia se ligar completamente a nós, uma vez que não somos nós mesmos que deixamos esse vestígio, mas sim uma parte filtrada, uma parte inventada, uma parte tão história quanto a própria história contada.
E não somos história somente lá atrás, somos também agora. Invento quem sou em meu modo de comer, de andar, de falar. E se escolho contar uma mentira, então sou tão escrava de seu filtro como sou de meu próprio. E somos escravos do passado que escolhemos contar, do passado que inventamos e agora tornamos palpável em nossos desejos. Somos escravos do futuro que criamos para nós e nos obrigamos e forçamos a percorrer. Somos escravos do presente, que por mais que se encontre aqui e agora, ainda se vê preenchido de minhas palavras, linhas e mais linhas que criarão, daqui a vinte ou quarenta anos, o panorama do que eu queria ou via o que era o agora, uma vez que eu estava ocupada demais para vivenciar o nada.
