Negros em coro cantaram seu drama: a passagem de Mano Brown no Carnaval de Salvador
O Carnaval de Salvador, como qualquer festa de uma sociedade, expressa as tensões dessa cultura e as estratégias de subversão e transgressão dessa ordem. Se na década passada, os blocos carnavalescos que ocupavam a amplitude das ruas, deixando os foliões sem abadá apenas com as margens da festa; no presente, as cordas baixaram, mas as opressões não desvaneceram e parecem longe disso. Hordas de ambulantes habitam as ruas dos circuitos do carnaval, com suas famílias, barracas improvisadas, num acampamento que se antecipa uma semana a festa. E é preciso desenhar bem essa paisagem para poder falar dessa cena de carnaval que descreverei a seguir.
Diante de tempos duros, também mais combativa se torna a música. Não que tenha havido tempos fáceis, sem dúvidas a própria paisagem expressa as divisões e tensões deste momento, onde as marcas de raça, classe, gênero parecem mais delimitadas. É num cenário assim, de disputa e acirramento, que parece tão oportuna a presença do rap no trio elétrico. Na noite de sábado, dia 22, o trio do Afropunk veio puxado pelo Afrocidade, com sua eficiente combinação de pagode e eletrônico, com letras que são brincadeiras, mas também denúncias sociais. Passaram nomes como Russo Passapusso e o rapper baiano Vandal. Mas sem dúvidas, a presença de Mano Brown causava expectativa. Como seria seu som nas ruas de Salvador?
Foram seis músicas. Longas o suficiente para mostrar seu poder e força naquela madrugada na Avenida Oceânica: Mil Faces de Um Homem (Marighella), Vida Loka Parte 1 e 2, Eu sou 157, Diário de Um Detento e Negro Drama. Letras fortes o suficiente para instalarem um clima único naquele território. Fortes o suficiente para romper as fronteiras entre aqueles que ganhavam algum dinheiro, naqueles isopores da marca de cerveja patrocinadora oficial do carnaval. Eles sabiam verso a verso. Cantavam com a força, a dor, a indignação necessária para entoar Negro Drama. Eles são a presença desse drama cuja escrita não deixa de se repetir.
Entre os foliões, jovens dos mais distintos, mas sem dúvidas, uma imensa maioria de jovens negros. Outras versões do negro drama. Tanto os das margens com latas nas mãos, penduricalhos do carnaval à venda, quanto os do desfile, com seus glitters e marra, cantavam os raps dos Racionais a plenos pulmões. E aquela espécie de uníssono, seguindo a tal nave pirata, por instantes comandadas pela expressão dura e seca de Mano Brown, instalou um tempo de constrangimento aos instalados nos camarotes — mesmo que seja nessa percepção de quem no chão estava, entre as rimas e a visão das grandes estruturas. Mesmo que lá das varandas, mais se perguntassem quem estava vindo do que efetivamente ouvissem o sentido das palavras.
Toda paisagem parecia ser afetada pela batida, pelas rimas, pela atitude, pela poesia. Então, seria possível sentir que o rap pode ter mais afinidade com o carnaval que o pensado. Não simplesmente aquele que meramente ostenta carros e armas, mas aquele um pouco mais antigo, que resenha a vida, as dores, as vozes silenciadas por tanta coisa e tanto tempo. Se em outros tempos a fantasia e o jogo de posições sociais implicava no espaço de transgressão, talvez no presente haja urgência em cantar a vida como ela é, sem muitas metáforas. Não que seja preciso excluir o sonho, o jogo, a brincadeira, mas talvez reconhecer que numa sociedade estruturalmente tão violenta, na qual a desumanidade é incorporada a festa como oportunidade de trabalho. Há espaço para outros modos de transgressão pelo corpo e pela música nessa tal folia — romper inclusive com os limites de quais gêneros musicais são pertinentes a esse espaço e a percepção do que o tão falado e pouco ouvido “povão” quer escutar. De cá, pelo que vi, senti, percebi atrás e nas margens do trio, vi uma juventude negra foliã e trabalhadora, bonita e doída, que quer ser escutada. E que Mano Brown volte mais vezes.