Tentativas de pegar de volta o que é meu
Sei pouco de minha história. Do pouco que sei, muito catei nas minhas buscas espirituais e de cura, por modos holísticos. Sei que tenho um avô, que tirou uma flecha das minhas costas. Desde que ele me fez esse cuidado, não sinto mais dor no ombro direito… dor que sempre me acompanhou. Esse avô fala comigo toda vez que aspiro rapé. Ele é bem caboclo, me contou quem o viu me cuidando do machucado. Ele apontou para a flecha anel que carrego nos dedos.
Sei que esse avô é tupinambá. Sei porque ele falou comigo numa das vezes. Sei porque minha avó, ainda menina, perdeu os sentidos e encontrou a cura dos seus males, numa casa espiritualista. E lá trabalhou até o fim dos seus dias, deixando seu corpo entrar em transe e seus antepassados atravessarem seu corpo e fazerem curas.
Minha mãe da última vez que nesta casa esteve - aqui, neste Rio Vermelho, terra que sei que leva esse nome porque os homens que nela viveram por séculos, e tupinambás eram — entrou em transe. Falou em línguas que não conheço. Fez sinal de flecha. Perdeu os sentidos.
O rapé me faz escrever. E nessa escrita, soube que preciso pegar de volta o que é meu. As memórias que a história não deixou escrever. As memórias que os homens que tomaram posse de tudo apagaram com afinco. Uso o rapé tentando ouvir as vozes e catar essas memórias. Saber também de uma avó, que já senti no corpo, gritando porque levaram-na embora. Ouço os latidos dos cães. Sinto as feridas sob a pele.
O rapé me fala do conhecimento que não pude acessar. Nasci na cidade, nas pedras de outra história. No território chamado Pelourinho. Meus cabelos, meu nariz e boca larga me reconhecem de outra identidade — essa cuja história mais facilmente reconheço entre os escombros.
Não há meios de conhecer essa história sem ser pelo corpo nesse estado alterado. Não há meios de ouvir essas vozes que andam comigo e me acompanham sem ser pelos sonhos e permissão para me abrir para outro tempo. Ouço as vozes quando canto e danço no escuro no quarto.
Neste 19 de abril, nesta sala fechada, há dias em casa, fecho os olhos e sei que há uma dimensão outra aqui comigo. Não estou só nessa sala. Se tudo aqui é concreto, nessa dimensão sei que há terra, palha, movimento para além dos carros. Há reverência ao sangue, ao saber que cada um carrega, ao voo dos pássaros no céu. Respeito às águas sufocadas de esgoto e canais. Esse outro tempo coexiste com esse amanhã aparentemente tristonho. Esses que já sucumbiram a outra pandemia chamada colonização dançam e me dizem sobre força, coragem. Nessa espiral do tempo, são esses avós distantes que me curam corpo e alma. Sou grata.
…
“Pegue de volta o que é seu. o que foi retirado. Toda memória que não permitiram ser contada do nosso jeito. Todo nome português que apagou da nossa terra os nossos nomes. Toda avenida com nome de assassinos de uma gente que vivie em harmonia com rio, com pássaros, árvores.
Esse chão que pisam hoje é meu. Ou vocês acham que deixamos de existir por que nos mataram com bala, veneno e doença?
Nós existimos tanto no sangue, quanto nos ouvidos de vocês. E só se concentrar, deixar ouvir e nossa voz vai falar junto com a sua. Falamos no corpo, nas danças.
Com muitas balas podem nos matar. Com muitas guerras podem nos extinguir.
Mas nós aqui seguimos.
Sem perdão.
Por que perdão só há, quando há arrependimento.
E os descendentes dos ladrões ainda mandam nessa terra e escravizam nosso s descendentes. minha pele vermelha de urucum e sangue quer mais guerra na sua voz, que paz, minha filha.”