#2: das sensações

J. Iulia
monologosdoapocalipse
2 min readJun 8, 2020

Às vezes replico frases na minha cabeça. Eu mesma respondendo pra mim. Eu mesma me questionando. É um exercício de diálogo que já colaborou para que eu me tornasse uma pessoa diferente várias vezes.

Essa tarde, após um longo cochilo e um almoço, eu lavava a louça pensando sobre certos acontecimentos.

Desde muito cedo, algumas coisas aconteceram na minha vida, coisas que deixaram minha garganta seca, a barriga tempestuosa e o corpo trêmulo. Coisas que prometem mudar o rumo de uma vida ou servem como uma demarcação no tempo. Se eu representasse o tempo como uma linha, o da minha vida seria dividido por várias: uma linha desde meu nascimento até a coisa 1, depois outra linha, desde a coisa 1 até a coisa 2, e assim, sucessivamente…

Nós que conhecemos as coisas, ao olharmos de longe, como observadores, narradores em terceira pessoa, olharíamos tais coisas de cima, a partir de uma posição externa.

Quando repito frases na minha cabeça, estou olhando pra minha vida de uma posição externa. A posição de narrador, como se eu mesma fosse um personagem:

“Julia cumpre sua rotina noturna, arruma sua cama, põe seus dois cobertores preferidos, conversa com uma energia onisciente a fim de buscar alento. Julia acorda, vai trabalhar, começa a sentir uma desconfortável agulha no peito que parece influenciar seus batimentos cardíacos. Julia não tem problemas no coração, apesar dos exames feitos no começo do ano, o cardiologista argentino não descobriu nada.”

A desconfortável agulha furando o peito, a garganta seca, a barriga tempestuosa, e o corpo trêmulo, eu acreditava que essas sensações sinalizavam as coisas que acontecem, mudam rumos e demarcam tempos.

Me lembro os dias em que eu estava chegando no colégio, sete da manhã, eu temia a hora de descer do carro, porque sentia o furo no peito, a dor na barriga, o enjoo, é quase como se meu organismo estivesse me alertando para algum perigo, algo que fosse acontecer. E nada diferente acontecia. Eu passava as horas no colégio e terminava meu dia com tranquilidade, como quem não sentiu nada no corpo quando viu o carro parado no semáforo que levava ao colégio. O colégio nunca me amedrontou. Eram todas as coisas, acontecimentos, e possibilidades de coisas acontecerem que me amedrontavam.

Eu ainda me sinto como essa menina do colégio, outros dias me sinto velha, como se estivesse atrasada, já deveria ter cumprido muitas coisas na vida, não depender mais tanto dos meus pais, nem da carona pro colégio, que não é mais a carona pro colégio mas o mesmo sentimento que se materializa em outras ocasiões.

Mas o que eu posso fazer? Sou apegada ao conforto, já que minha infância foi, sobretudo, confortável, apesar das “coisas” citadas acima que esclareço aqui agora que ao dizer “coisas” remeto aos “acontecimentos marcantes que foram dolorosos e são considerados por mim momentos destacáveis em minha narrativa”.

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J. Iulia
monologosdoapocalipse

22 anos, brasileira, com ideias e planos no papel. Nada muito concreto. Não escrevo sobre mim, escrevo sobre experiências, reais ou fantasiosas.