Arribação

Douglas Ferreira
Revista Mormaço
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3 min readJun 16, 2022

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(Rogério Rodrigues)

A época é de reprodução dos peixes. Acordo para mais um dia comum, vou ao banheiro, me olho no espelho, não há tempo para nenhum questionamento: ouço um ruído vindo do encanamento. Me encurvo diante do ralo e vejo alguns corpos brilharem. Numa coreografia desordenada, lâminas gelatinosas se movimentam, úmidas, grudadas pela boca ao cano da pia. Seres frágeis, pequenos, recém-nascidos. Piabas. Me olho novamente no espelho, constato: uma desova aconteceu em minha casa.

Com o objetivo de desovarem, peixes fêmeas precisam nadar contra a correnteza, avançando sobre corredeiras, saltando mais alto do que cachoeiras, em busca de um lugar tranquilo. Passo um dia inteiro tentando, um dia esquisito, desses que já começam talhados, volto para casa às pressas, com medo de que algo mais dê errado, me escondo do mundo, entro em minha vida privada (os problemas me perseguem dentro da minha cabeça), corro para o banheiro, fecho a porta, ligo a torneira: invento uma queda d’água. Os peixes, já crescidinhos, brincam para mim, reluzem sem saber de nada.

São muitos ovos em uma só ninhada. A fartura me falta. Sempre fui um homem comedido, de comprar pouco, de não gostar dos itens repetidos, do desperdício. Nem o desperdício de palavras? Nem o desperdício de palavras. Algumas me faltam, mas quando as encontro, lhes dou abrigo. Conservar o que já tenho, me orgulhar do que foi feito, do caminho percorrido, olhar para trás a todo tempo, me certificar de que é isso, nenhum predador está vindo, contar quantos livros, ser feliz com os meus dez dedos. Espero que fique tudo intacto. Vocês ainda estão aí? — grito do quarto. Tenho um aquário no banheiro.

Alguns ovos desaparecem quando ninguém está olhando. Contemplo o ralo da pia, tento imaginar sua extensão, a profundidade deste cano. Quantos peixes cabem, uns duzentos? Estão grandes, são todos peixes irmãos. Escamas prateadas, barbatanas amarelas que evoluem para o vermelho. Nunca param, como se estivessem numa batalha suada. Querem muito sobreviver, é o que sinto, nadam, nadam. Não desligo mais a torneira, a água passa, diverte-os, às vezes a água os mata. Alguns não conseguem, desistem, soltam seus lábios, saltam. Para onde? Aonde chegam os que não aguentam? Encontrarão um rio, algum sossego? Aqui não é lugar para vocês, digo em segredo.

Em um dia comum, os ovos eclodem, o peixe fêmea fica contente: começa o passeio. Quando a água faltar de vez, não sei como escapo. Acordo com uma grande sede. Salto da cama, corro para a cozinha, sorvo dois copos, piso numa poça — pressinto. Tento ficar calmo, depois me dirijo lentamente para o banheiro, a passos contados. Os peixes não estão mais comigo. Tento gritar, mas o som fica preso. A torneira insiste, sozinha. O encanamento, todo furado, vaza água pela casa inteira.

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Douglas Ferreira
Revista Mormaço

Douglas Ferreira, 1993, nasceu em Pirapora (MG) e hoje reside em Belo Horizonte (MG). É autor de “Artur verde” (Alecrim, 2020) e editor da Revista Cupim.