Quatro mães

Mormaço Editorial
Revista Mormaço
Published in
3 min readMay 9, 2022

mãe I

embora quieta, o peito sísmico e a boca seca.
ouviu o marido e um tamanquear alcoólico
chegarem às 06:30 da manhã sem luz.

dito e feito:
murro na porta, na porta do quarto
no quarto, a mulher quis correr
para o quarto da criança, fingir que ninava,
não queria pênis à força, bafo quente goela adentro,
não havia tempo: a mão do marido, sóbria de punho teso,
tomou-a pelo cabelo, agarrou
a materna cabeça

e ao pé do ouvido: “tá correndo pra onde, desgraçada?”.

dito e feito:
com a perícia que só a rotina dá, arremessou
a mulher no chão e a quina da cama
engoliu num poente
a sua fronte a oeste.

um estertor seco, um mar ido de sangue e sol
às 06:33 da manhã.

mãe II

esse menino tá assim por sua culpa
proteção demais, demais.
vai virar viado, nunca vi tanta frescura.
filho meu não vai ser mulherzinha não
vem cá menino agora você vai aprender.

SOCO SOCO SOCO SOCO NA CARA SOCO
ENGOLE ESSE CHORO — SOCO — ENGOLE — SOCO
UM DIA VOCÊ VAI ME AGRADECER SOCO SOCO

tá vendo? é assim que a gente
educa um homem.

— outra vez o menino respira no útero.

mãe III

os meus olhos merejavam o cansaço.
os meus seios, postos de lado, se arregalaram
no cálice das mãos repentinas.

perna em cima da perna sozinha
fez abrir os olhos a vagina
a vontade dele mas não a minha.

à força saiu a calcinha
a mão pesada
a dor vinha e vinha
e vinha e vinha e fuzilava a minha dor vinha
e vinha
canhão com cano e tudo
entrava e saía suado e faminto e vinha
e vinha e vinha e vinha e baleava e vinha.

[mal acordo e o meu corpo
já está invadido], pensei
enquanto à porta do quarto vinha
e vinha e vinha
o olhar matinal da minha filha.

mãe IV

toma, são para você!

os seus braços
ficam lindos com flores mas prefiro
esse seu olhar tramontina
que corta, organiza e ilumina;
o seu rosto, sol de serpentes, olhar meia dúzia;
menos a voz e mais os dentes, apenas ternura;
do útero, as sementes — nem sei quantas luas.

— agora vou ali comprar um cigarro.

no vaso
águas choram rosas.

morrerá antes dele.

Paulo Silva (ou paulo tassa) nasceu em 1985, na cidade de Manhuaçu (Minas Gerais). É escritor, editor, crítico literário e professor. Doutorando em literaturas africanas de língua portuguesa pela Universidade de Coimbra. Em 2018 estreou na poesia com “caída” (2018, Editora Letramento) e em 2021 lançou “o homem à espera de si mesmo” (poesia, Editora Mosaico). Escreve esporadicamente para o Le Monde Diplomatique Brasil e quinzenalmente para o LiteraturaBr. Radicou-se em Madrid e, atualmente, edita a Revista Ponte.

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Editora e revista independente de Literatura Brasileira Contemporânea.