Nota sobre a unidade da Igreja em tempos de polarização política

Movimento Mosaico
Movimento Mosaico

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O Mosaico é um movimento relacional de unidade evangélica. Não somos uma aliança de igrejas nem uma fraternidade de teólogos. Pelo empenho da unidade, através do vínculo da paz, congregamos um conjunto de amigos de todo o Brasil. Cada um desses amigos entendeu não ser possível andar na vocação que recebeu de Deus sem procurar guardar a unidade do Espírito (Ef 4.1–16).

Nesse empenho em guardar as relações e trabalhar no invisível dos encontros pessoais, o Mosaico esforça-se em não fugir de sua vocação específica. Isso significa afastar-se das discussões que não tangenciam o tema da unidade. Temos convicção de um chamado específico: o ministério da reconciliação de irmãos que deixaram de ter prazer na comunhão uns dos outros. Tudo o que fazemos — dos livros que publicamos aos eventos que apoiamos — visa trazer a consciência da unidade em Cristo pelo vínculo relacional. Justamente por isso, notas públicas como esta são raras por parte do movimento.

Dessa maneira, a razão de nos manifestarmos publicamente hoje é a preocupação pela unidade da Igreja. Estamos presenciando nossos amigos angustiados tanto pela situação quanto pelas reações pontuais de alas da igreja evangélica ante a atual conjuntura sociopolítica. Por essa razão, resolvemos nos manifestar publicamente apenas para lembrar aquelas que são nossas convicções orientadoras. Fazemos isso sem nenhuma pretensão ou orgulho em querer corrigir algum irmão em particular. Não temos gosto de sangue na boca, estamos cheios de lágrimas nos olhos. Frente ao exposto, pontuamos o seguinte:

1. Em primeiro lugar, fora de Cristo não existe unidade. Nosso esforço pela unidade da Igreja não é sinônimo de uniformidade. Em nossas reuniões de iguais, temos irmãos de várias tradições teológicas, organizações denominacionais e orientações políticas e culturais. Cremos que as tradições teológicas, litúrgicas e denominacionais dos evangélicos no Brasil podem ser encaradas como ênfases em uma das três perspectivas que nos dão acesso ao conhecimento da Trindade. São as clássicas ortodoxia (a tradição doutrinária que descobriu a vida na proclamação da Palavra e nos sacramentos), ortopraxia (a tradição de justiça social que descobriu a vida na missão compassiva) e ortopatia (a tradição carismática que descobriu a vida na oração, na devoção, na virtude e nos dons do Espírito). Essa convicção, no entanto, está radicada em algo anterior e mais fundamental que não abrimos mão: é porque todos nós temos consciência de que estamos unidos a Cristo pela fé, que nos esforçamos em nos manter unidos entre irmãos. Estar “em Cristo” é condição de possibilidade para todo e qualquer empenho pela unidade genuinamente cristã. Nenhuma ênfase ministerial, política ou pessoal pode prescindir de nossa condição cristológica — que não é apenas um detalhe teológico, mas o critério último de julgamento de toda realidade (ontológico). Ao abrir mão da exclusividade de Cristo e do Evangelho qualquer iniciativa da igreja estará fadada ao fracasso.

2. Em segundo lugar, fora de Cristo não existe comunhão. Nossa condição ontológica “em Cristo” não apenas fornece a principal marca de nossa nova identidade, como também o único vínculo indissolúvel de nossa comunhão. Justamente porque o Corpo de Cristo pode se manifestar em ênfases doutrinárias específicas e posturas políticas particulares, nossa comunhão e unidade cristã não podem ser comprometidas por tais opções periféricas. O esforço relacional de unidade, quando alicerçado unicamente na consciência cristológica exclusiva, nos permite não suspeitar da sinceridade da fé de nossos irmãos só porque adotam uma posição sociopolítica em particular. Com isso, temos em mente o esforço pela convivência crítica entre irmãos de opções política diferentes. Essa consciência cristológica nos permite tecer alguma eventual crítica, defesa ou análise a aspectos de um determinado viés ideológico, quando este é incompatível com a ortodoxia cristã e a noção do senhorio de Jesus Cristo. Ao fazê-lo, não deveríamos ser interpretados como inimigos de pessoas, mas simplesmente estaríamos cumprindo o papel profético e apologético em favor da fé evangélica, justamente para mantermos a unidade, a verdade e o amor “em Cristo”. Essa é uma forma de tradução do esforço pela unidade no que diz respeito às discussões políticas. Ao invés de afastar o irmão pela diferença partidária, abraçá-lo ainda mais forte pela consciência teológica.

3. Em terceiro lugar, fora de Cristo não existe soberania. Nós respeitamos autoridades que Deus instituiu em suas respectivas esferas, mas nós não cultuamos nenhuma autoridade. Os cristãos não têm devoções políticas, por exemplo. Cristãos obedecem às autoridades, mas são devotos de Jesus. Não podemos dividir nosso compromisso com Cristo por nenhuma urgência contextual. Isso significa que nós precisamos, simultaneamente, reconhecer as autoridades, mas afirmando sempre sua legitimidade relativa à soberania de Jesus. Corremos o risco de idolatria todas as vezes que deixamos de ver as características divinas em algo da criação para passar a enxergar apenas aquelas características como divinas. Ou seja, confunde-se a beleza divina que transparece em alguns aspectos da realidade criada, com as próprias coisas criadas. Essa tentação pode ocorrer em todas as esferas da realidade, mas no campo político ela acontece quando alguém escolhe uma posição política e diz “essa é a orientação exclusiva e permanente de Deus para a nação”. A onipresença de Deus exclui a legitimação incondicional de qualquer política em particular. Somente essa convicção nos dá base para duas coisas: primeiro a resistência ativa ao poder quando este se torna totalitário e ilegítimo; mas, acima de tudo, ela também nos dá apoio para nos livrarmos da idolatria através do culto verdadeiro. Somente assim, teremos equilíbrio verdadeiro na política. Pois quando um governo foi belo e justo, ele não o será pela sua plataforma político-partidária, mas por causa de seu alinhamento aos mandatos divinos. Esse é o antídoto cristão à tentação de querer encontrar em uma postura política particular, seja ela qual for, a redenção social.

4. Em quarto lugar, fora de Cristo não existe resistência. Reconhecemos que a tomada de posicionamento político é um dever da Igreja, mas que não deve ser feita de qualquer maneira, nem a qualquer custo. Sabemos que a onipresença de Deus na esfera política não legitima a apatia pública. Somos responsáveis pelas decisões políticas que orientam nossa história. No entanto, a Igreja de Cristo não foi chamada para seguir a verdade de qualquer jeito. Ao invés disso, a orientação é: “seguindo a verdade em amor, cresçamos em tudo naquele que é a cabeça, Cristo”. Isso porque, somente assim, o Corpo de Cristo, “bem ajustado, e ligado pelo auxílio de todas as juntas, segundo a justa operação de cada parte, faz o aumento do corpo, para sua edificação em amor” (Ef 4.15–16). Unidade, verdade e amor caminham juntos. Nenhuma urgência política ou social nos dá base para escolhermos uma em detrimento da outra. Da mesma forma, nenhuma iniciativa de engajamento histórico será bem sucedida se desconsiderar a necessidade de uma “justa operação de cada parte da igreja”. Não existe verdade e amor fora do “auxílio de todas as juntas” — todas, e não de algumas. Portanto, a resistência sociopolítica da Igreja em tempos de instabilidade política não pode ser empreendida através da rivalidade polarizada, mas da operação de todas as partes da Igreja em unidade. Tão somente assim o Corpo de Cristo será um testemunho histórico de resistência à corrupção sociopolítica, ao invés de ser carregado pelas polarizações que caracterizam o espírito de nosso tempo.

Sabemos que a vivência prática e pontual de cada uma dessas considerações não é algo simples — muito menos romântica. Mesmo assim, conclamamos a Igreja que está no Brasil ao desgaste que é próprio de um Corpo que está em movimento, esforçando-se para viver de modo digno de sua vocação.

No amor de Cristo,

Movimento Mosaico.

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