Bitnation

Um conceito de prova

Mosaico University
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6 min readJun 19, 2018

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Por Juan Meleiro

Talvez você já tenha ouvido falar da BitNation. São os criadores da plataforma Pangea, que de acordo com Tempelhof e Teissonniere (2018) é uma “jurisdição descentralizada com vista à criação […] de nações voluntárias e à celebração e arbitragem de contratos solenes” — o que no mínimo requer uma segunda leitura. Antes de mergulhar nos detalhes, voltemos aos princípios.

Os “porquês”

A BitNation é construída em cima de duas cisões conceituais: a desconstrução da ideia de que nação está ligada a território, e de que nacionalidade está ligada ao nascimento. De acordo com Susanne Tarkowski Tempelhof, fundadora da organização, “Bitnation está desenvolvendo um sistema de governança voluntário peer-to-peer para substituir a arbitrariedade do nascimento como o decisor da sua cidadania” (minha ênfase; (“Interview with Bitnation Founder: A Platform for Governance 2.0. Crypto Insider” 2018)). Não apenas isso, as Nações Voluntárias Descentralizadas Sem-Fronteira (DBVN, na sigla em inglês), de que Bitnation é o exemplo primário, “não limitam os seus serviços a uma área geográfica, etnia ou outras categorias de população específicas. […] Pode dizer-se que uma DBVN é ‘virtual’ pela sua própria concepção.” (Tempelhof e Teissonniere (2018)).

A alternativa, e também o princípio norteador das DBVNs, é o de que cidadãos possam “pagar por serviços e respeitar as leis aplicáveis baseados nas jurisdições de sua escolha”, e não aquelas determinadas por “nascimento ou residência” (Southurst (2015)). Essa ideia implica no conceito de “jurisdição-como-serviço” (JaaS, na sigla em inglês; Tempelhof e Teissonniere (2018)), pelo qual nações competiriam pela cidadania das pessoas, ao invés do status-quo “em que os Cidadãos são forçados a competir uns com os outros para obter os resultados governamentais desejados” (Tempelhof e Teissonniere (2018)).

Na realidade, BitNation propõe ser uma alternativa ao que é chamado de “Estado Westfaliano”, o modelo sobre o qual estão construídos os modernos estados-nação ((“Paz de Vestfália” 2018)). A opção seria pelos tais de DBVN, que, como explicam, “são definidas como:”

  • Descentralizada: A descentralização consiste no processo de redistribuição ou dispersão de funções, poderes, pessoas ou bens de um local ou autoridade central. […] Isto significa que cada utilizador pode tornar-se no seu próprio nó e transformar a plataforma de acordo com os seus próprios gostos. […] Na prática, isto significa que os vários núcleos, regionais ou outros, são totalmente autônomos.
  • Sem fronteiras: As DBVN não limitam os seus serviços a uma área geográfica, etnia ou outras categorias de população específicas. […] Pode dizer-se que uma DBVN é “virtual” pela sua própria conpceção.
  • Voluntária: As DBVN não utilizam a força, a fraude ou a coerção, não tratam os seus cidadãos como peões, nem os sujeitam à servidão involuntária, servidão por dívidas ou escravatura. Como as DBVN têm uma natureza voluntária estão, por inerência, livres de perseguição, intimidação, represálias e outras formas de violência sistemática. As DBVN competem num mercado livre em que os clientes, os “cidadãos” da plataforma, escolhem voluntariamente as DBVN que pretendem utilizar — incluindo a opção de utilizar várias DBVN, ou nenhuma, ou, se assim o desejarem, de criar a sua própria DBVN.
  • Nação: […] No caso das DBVN é provável que a ligação das pessoas [de uma nação] assente tanto em interesses e objetivos mútuos como elas estariam conectadas por pontos comuns mais tradicionais. Uma nação é uma criação voluntária mais do que uma entidade governativa (ou seja, um Estado).

Os “comos”

Mas o que tudo isso significa na prática? Para além dos princípios norteadores, a Bitnation oferece uma plataforma chamada Pangea, que promete possibilitar a criação de DBVNs. Funciona “como uma jurisdição descentralizada em que os cidadãos podem criar Nações Voluntárias, associar-se e viver nas mesmas” (Tempelhof e Teissonniere (2018)).

Pangea é um aplicativo. Como está em versão beta, só é possível baixá-lo usando o link no site.

O aplicativo te saúda com uma tela onde é possível criar uma nova conta, ou recuperar uma antiga. Depois de “criar uma identidade” você será recebido por um dashboard.

Dashboard

No menu “Nations”, há uma lista de DBVNs. Cada uma conta com uma descrição, uma “estrutura governamental”, e alguns “fatos divertidos”. É possível também criar uma nação própria (desde que se esteja disposto a gastar um pouco de Ether), da qual se pode escolher, entre outras coisas, o tipo de “código legal” e o “tipo de governo” (que surpreendentemente inclui “autocracia”).

No entanto, parece que por enquanto a única coisa que é possível fazer com uma nação é usar o seu chat no menu com esse nome. Na maioria dos chats há pessoas confusas e sucessões intermináveis de “oi”s. No chat da Bitnation, que é apenas mais uma DBVN, um “cidadão” identificado somente por “SL” colocou de forma sucinta:

O app Pangea ainda está em desenvolvimento. Afinal, ele será muito mais envolvido e você poderá usar o Pangea para criar contratos inteligentes e gerenciar suas nações.

E então?

A Bitnation é uma organização cheia de ideais ousados, como vemos no seu whitepaper. No entanto, ainda não há nada de concreto. O aplicativo, por enquanto, é apenas um Whatsapp anônimo com menos funcionalidade, e uma porção de “times” sem utilidade nos quais é preciso pagar para entrar.

Por outro lado, é uma experiência que nos provoca a reconsiderar nossas noções rigidamente estabelecidas sobre o que são nações, o que é nacionalidade, e o que é cidadania. É possível que no futuro vejamos um mundo anárquico onde cada indivíduo é livre para se associar com quem bem entender? Em que se tenha superado o “oligopólio do Estado-nação” (Tempelhof e Teissonniere (2018))? Talvez, mas certamente estamos muito longe disso.

Dito isso, Vinay Gupta, citado por Souli (2016), diz que “coisas que mudarão o mundo sempre parecem estúpidas até você olhar para trás”. Então se você ficou interessado no projeto, o melhor a fazer é acompanhá-lo. Talvez daqui a alguns anos, vejamos o crescimento da primeira nação virtual do planeta, completa com embaixadas e serviços jurídicos. Mas por enquanto, Bitnation não chega nem mesmo a ser uma prova-de-conceito; é apenas um “conceito-de-prova”.

Leituras

Caso você tenha se interessado no assunto, recomendo algumas leituras.

  • Souli (2016) (inglês) traz uma visão geral do assunto.
  • Tempelhof e Teissonniere (2018) (versões em inglês, português e outras línguas) é o whitepaper da Bitnation. Um tanto longo, com em torno de 40 páginas, mas é uma fonte primária.
  • Southurst (2015) (inglês) também trata de outros assuntos, mas é outro artigo que trata do tema em geral.
  • ICOs (2018) (inglês).
  • Todos os textos citados tem relevância para o assunto.
  • Claro, sempre vale a pena entrar no aplicativo e fuçar por si mesmo.

¹Há um artigo na Wikipedia sobre o conceito de Soberania de Vestfália, mas é incompleto. Recomendo também o verbete sobre os tratados da Paz de Vestfália, que seria a origem do modelo de estado-nação em que hoje nos baseamos. Também indico a leitura de (Osório 2013)(https://jus.com.br/artigos/24058/o-direito-ao-refugio-no-direito-westfaliano-de-estados), §2.

² Em nome do supercontinente que existiu na era paleozóica, o que, como o resto do whitepaper fundacional (Tempelhof e Teissonniere (2018)), tem um tom épico de um manifesto.

³ De lá, é possível pedir um “convite” para ser um testador (que na verdade é só um cadastro). Você receberá um link, do qual conseguirá um código que pode entrar no aplicativo da Apple TestFlight, do qual conseguirá baixar Pangea. O processo todo leva menos de dois minutos.

Referências

ICOs, 100X. 2018. “BitNation Review — Part 1: The Wonderful Holacratic World. Medium”. 12º de abril de 2018. https://medium.com/@100xicos/bitnation-review-part-1-the-wonderful-holacratic-world-943875cb7df7.

“Interview with Bitnation Founder: A Platform for Governance 2.0. Crypto Insider”. 2018. 25º de abril de 2018. https://cryptoinsider.21mil.com/interview-bitnation-founder-platform-governance-2-0/.

Osório, Luiz Felipe Brandão. 2013. “Refugiados, soberania e Paz de Westfália. Jus.com.br”. fevereiro de 2013. https://jus.com.br/artigos/24058/o-direito-ao-refugio-no-direito-westfaliano-de-estados.

“Paz de Vestfália”. 2018. Wikipédia, a enciclopédia livre. https://pt.wikipedia.org/w/index.php?title=Paz_de_Vestf%C3%A1lia&oldid=51701374.

Souli, Sarah. 2016. “I Became a Citizen of Bitnation, a Blockchain-Powered Virtual Nation. Now What? Motherboard”. 12º de setembro de 2016. https://motherboard.vice.com/en_us/article/xyg5x7/bitnation-or-bust.

Southurst, Jon. 2015. “Estonian e-Residency, BitNation, and the Jurisdictional Buffet. Medium”. 5º de dezembro de 2015. https://medium.com/@southtopia/estonian-e-residency-bitnation-and-the-jurisdictional-buffet-d3c66748c996.

Tempelhof, Susanne Tarkowski, e Eliott Teissonniere. 2018. “Pangea Jurisdiction and Pangea Arbitration Token (PAT)”, 46.

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