As imagens do feminino

Texto crítico para Not Wanted (1949), de Ida Lupino

Por Camilla Osório*

Cena de “Not Wanted” (1949), de Ida Lupino

“A mulher desta forma, só existe na cultura patriarcal como significante do outro masculino, presa por uma ordem simbólica na qual o homem pode exprimir suas fantasias e obsessões através do comando linguístico, impondo-as sobre a imagem silenciosa da mulher, ainda presa a seu lugar como portadora do significado e não produtora do significado” (in: Prazer Visual e Cinema Narrativo, Laura Mulvey, 1975).

A primeira coisa que é preciso pontuar a respeito de Not Wanted é que não se trata de um filme óbvio. No processo de assisti-lo, nos deparamos com uma constante quebra das expectativas que criamos ao tentar colocá-lo na caixa de um conceito.

O filme flerta com o melodrama e, ao longo do primeiro ato, Sally Kelton assemelha-se a uma heroína de conto de fadas a espera de seu príncipe encantado, mas este vem na forma de Steve, um arrogante pianista. Steve decide mudar-se para Capital City e Sally, que neste primeiro ato tem como único objetivo ser amada por Steve, foge de casa para encontrá-lo. Ocorre que Steve não é um príncipe encantado e acaba por rejeitar o amor de Sally.

Temos aqui um exemplo muito claro das relações entre feminino e masculino no cinema apontadas por Laura Mulvey: apesar de Sally ser a protagonista, ela só existe como significante do possível desejo de Steve e suas ações pautam as dela. Há uma cena em que Steve está tocando piano e ela observa encantada. Sua única ação é retirar e colocar os cigarros na boca de Steve para que ele possa fumar sem usar as mãos.

É importante lembrar que estas estruturas identificadas por Mulvey e reproduzidas no primeiro ato de Not Wanted não aparecem no cinema por acaso; elas estão ligadas a conceitos sociais muito arraigados. As definições tanto psicanalíticas (Freud e Winnicot) quanto filosóficas (Hegel) apontam para uma separação entre masculino e feminino que é construída e ajuda a construir a ideia da mulher como objeto, sendo o feminino ligado ao ser e o masculino ao agir.

E o filme poderia permanecer nesta camada. Atuação e trilha sonora extremamente marcadas, uma donzela em perigo com o coração partido. Sally começa a envolver-se com Drew Bexter, seu chefe. Tudo aponta para que ele assuma o lugar de príncipe em sua vida e passe a ser um novo sujeito para ela (objeto). Drew convida Sally para sair; estão romanticamente sentados no banco do parque de diversões; declarações são trocadas, mas Sally desmaia. Na próxima cena, descobrimos que ela está grávida.

Enquanto assistia, eu estava esperando um casamento com Drew, mas me surpreendo com um plano geral de Sally saindo da pensão em que está hospedada, malas em punho como quem segura uma arma. Ela vai pedir ajuda numa instituição de apoio a “mães solteiras”; são ditas frases como “estamos aqui para apoiar e não para julgar”. Esta é a primeira ação de Sally como sujeito de sua própria história.

A partir de então, passamos a ver uma problematização, não apenas da situação individual de Sally, mas de toda uma coletividade de mulheres que vivem, dentro e fora do filme, o mesmo drama. Essa problematização prenuncia-se já na cartela inicial quando o filme faz um agradecimento às instituições de acolhimento a “mães solteiras” e diz que “essa é uma história contada cem milhões de vezes a cada ano”.

No segundo ato, temos uma protagonista que age e deseja. Sally deseja poder criar seu filho e, a partir deste desejo e sua frustração, o restante da história se move.

A dimensão política que passamos a perceber nos fatos presentes na narrativa está presente também em cada uma das imagens. Not Wanted é marcado por uma decupagem meticulosa e inteligente, que ganha camadas a medida que nos revela não apenas a complexidade da situação, mas a postura do filme em favor de todas as mulheres que a vivenciam.

O feminino pode então encontrar seu lugar de luta e resistência em um espaço de coletividade e apoio para uma situação de marginalização social. Estão aí a sororidade contra a maternidade compulsória e também o compartilhamento da dor desta mesma maternidade ser também compulsoriamente negada: “Nós podemos dar um jeito, não é? Você pode se cuidar sozinho, enquanto eu trabalho para nos sustentar, se alimentar sozinho, trocar as suas próprias fraldas”, diz Sally, irônica, a seu bebê ao se dar conta que dá-lo para adoção não é exatamente uma escolha, mas a única saída que ela vê.

No fim, ficamos com um plano fechado, fiel ao melodrama, no rosto de Sally que, abraçada a Drew, chora. Não há saída, apenas a ação de correr, voltar-se para trás, abraçar e chorar.

*Natural de Brasília, Camilla Osório é formada em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal do Ceará (UFC). Realizou a curadoria da Mostra Percursos em 2016, do cineclube do Teatro Carlos Câmara com a temática de filmes de estudantes, em 2017, e do 16º Noia — Festival do Audiovisual Universitário. Foi jurada da Mostra Olhar do Ceará, no 27º Cine Ceará. Realizou os filmes Ninguém inventou isso, fui eu que inventei (2013), Vermelho (2015), Todas as vezes que te vi (2015) e Eu falo de nós (2017).

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