Hard, fast and beautiful

Texto crítico para Laços de Sangue (1952), de Ida Lupino

Por Grenda Costa*

Laços de Sangue (Hard, Fast and Beautiful, 1952)

Quando criança, via desenhos japoneses na Band à tardinha. Sentia que eu era especial como os protagonistas desses desenhos e que um dia escreveria e desenharia histórias como aquelas. Morava no interior do estado, sou mulher (mas ainda não tinha consciência do que isso significava), sou filha de mãe solo e, ainda assim, tinha certeza que podia tudo. A consciência do que é ser o que sou veio anos depois. Depois que vi Laços de Sangue (Hard, Fast and Beautiful, 1952), essas duas ideias ficaram martelando na minha cabeça: eu achava que podia tudo, mas descobri que a nós, mulheres, nada é possível.

O filme narra a trajetória de Florence, uma jovem de 20 e poucos anos, filha única, que é descoberta por um olheiro num campeonato amador de tênis e acaba por se tornar campeã nacional por dois anos consecutivos. Florence é uma garota comum, tem uma família de classe média, não trabalha, não tem grandes ambições. Conhece um rapaz chamado Gordon, por acaso, no começo do filme. Ele a leva para jogar no clube onde trabalha e assim ela é vista. Florence não parece querer nada de verdade. É uma garota sortuda para quem as portas se abrem, que está no lugar certo e na hora certa. Mesmo quando ela começa a jogar nos campeonatos, eu, como espectadora, não duvido em momento algum que ela vai vencer tudo, que ela está destinada àquilo. E assim o filme vai se fazer: como se seu destino tivesse sido escolhido por ela. Quem escolhe e faz esse destino acontecer, fora a sorte da personagem, é sua mãe, Millie.

“Desde que você nasceu, eu soube que você era diferente. Eu via coisas em você que ninguém mais via. E eu sabia que, de alguma forma, eu daria o melhor da vida para você. Escutar você bater aquela bola na garagem me deixava louca. Isso porque eu sempre quis algo melhor para você. E eu me convenci a conseguir sem importar o que tivesse que fazer”.

Nesse prólogo, a narração da mãe falando da filha é sobreposto de imagens de Florence jogando a tal bola na porta da garagem e de Millie ajoelhada aos pés de uma cliente cortando a barra de um vestido. A mãe, pura ambição, manipula a filha a seguir o caminho que ela própria teria seguido se tivesse tido a oportunidade/sorte de Florence.

Millie é colocada durante vários momentos no filme quase como uma antagonista, a megera que usa a filha para conseguir alcançar os próprios objetivos. Me pergunto, no entanto, se tenho essa impressão porque ela foge às regras do bom comportamento feminino (e do cinema clássico) na década de 50 (ou de hoje). Porque, na verdade, eu passo o filme inteiro me sentindo um pouco culpada, pois torço para que suas armações deem certo. Torço para que Florence ganhe os jogos, para que ela não case com Gordon e largue tudo o que conquistou. Fico feliz quando a oportunidade de Florence ir embora surge e percebo que Millie não quer que o casamento iminente se concretize, casamento esse que ela própria queria que acontecesse no começo, ela quer mais para a filha. E qual o problema nisso? Por que diabos ela não pode querer um monte de coisas para a filha? Por que ela não pode querer?

Porém, na última cena vem minha resposta: nós não podemos querer. E a roteirista e a diretora têm consciência e fazem um filme sobre isso em 1952. Elas fazem um filme em 1952.

A cena que anuncia o fim do filme mostra Florence, exausta, sendo “salva” por Gordon dos fotógrafos ao final de sua última partida. Millie rodeia os dois, querendo chegar perto da filha, lhe dar um abraço. Florence não vê a mãe, passa por ela, se dá conta de sua presença e se vira; entrega-lhe o troféu que acabou de ganhar: “Isso é seu, você mereceu”. Millie desfaz a expressão de alegria num átimo de segundo e me quebra. Revejo o filme todo na minha cabeça: Millie não é má, não é uma megera e nunca foi. Na verdade, ela só quer algo. É ela quem faz a história andar. É ela que age de verdade durante todo o filme. Ela não muda, não sofre transformação. Mas Florence também não. A garota começa e termina da mesma forma. Então, mesmo que sua figura não seja a maior no cartaz, que ela não seja o primeiro rosto que vemos no filme ou que não seja seu nome o primeiro a ser citado nas sinopses, não seria ela nossa verdadeira protagonista? A primeira voz que ouvimos no filme, o último rosto. A personagem que de fato quer algo com tudo isso.

Para mim, ela é. Ela se torna. Para mim, o filme é sobre fracassar. Sobre saber que você, uma mulher, não pode querer nada além de um bom casamento. Saber que a você, uma mulher, nada é permitido. E, ainda assim, querer algo.

*Nascida em Quixadá, interior do Ceará, Grenda Costa é formada em Cinema e Audiovisual pela Universidade Federal do Ceará (UFC). É roteirista desde 2014 e realizou os curtas Quem sabe um dia eu acordo meio você e Fortaleza, 30 de maio de 2014. Seu filme Mais uma história de amor sem título foi exibido no VIII Janela Internacional de Cinema do Recife. Seu TCC, Corpo Estranho, teve estreia na Mostra Olhar do Ceará do 26° Festival Cine Ceará. Atua como assistente de direção, continuísta e produtora. Fez parte da equipe de realização de O homem que virou armário, de Marcelo Ikeda, O clube dos canibais, de Guto Parente, Pedra, de Diego Hoefel, Inadequada, de Mylla Fox, e na série televisiva Lana & Carol. É interessada na pesquisa das formas de representação da mulher no cinema.

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