O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006)

ou: 2014, o ano em que o Brasil sairá de férias

Matheus Massias
7 min readMar 16, 2014

O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias (2006), segundo filme do diretor paulista Cao Hamburger (cujo primeiro longa-metragem é Castelo Rá-Tim-Bum, O Filme), é uma obra marcada pela discrição e pela diferença, por trás de detalhes importantes em sua narrativa. A história começa em Belo Horizonte, 1970, com um garoto de dez, doze anos, chamado Mauro. Mauro é fascinado por futebol, e somos apresentados a ele meio que de esguelha, mas de forma observadora; ele está jogando futebol de botão, quando escutamos sua voz em off, contando-nos que seu pai havia lhe dito que no futebol todos podem falhar, menos o goleiro, por ser um jogador diferente. Goleiros passam a vida ali, no gol, sozinhos, esperando o pior. Essa recordação de Mauro já é o primeiro indício velado de sua futura desfortuna, onde será julgado por ser diferente, assim como seus pais, só que por motivos diferentes. A cena, na casa, mostra Mauro e sua mãe, que avisa que o pai dele está chegando; vivida por Simone Spoladore, a mãe de Mauro se mostra inquieta e um tanto aflita, através de um plano fechado, temos a interposição do rosto dela e do Fusca azul do pai de Mauro que acabara de chegar. A interposição de imagens, por vidros/espelhos, é frequente no filme, e dá um aspecto de equilíbrio e união.

Mauro e seus pais vão para São Paulo, onde ele ficará na casa de seu avô. No caminho para lá, temos dois exemplos da discrição e detalhes importantes que não revelam a natureza de seus pais, mas que se lembrarmos mais tarde quando o filme se desenrolar, farão todo sentido: na estrada, Mauro avista um caminhão, do Exército provavelmente, com vários soldados dentro, e isso o anima bastante, é interessante o movimento de câmera que mostra o garoto e sua mãe, depois expandindo para ela olhando para o marido, que parece tenso com a situação, o conflito da cena é querer ultrapassar o caminhão, algo que infere bastante significado; ainda na estrada, embora de noite, a câmera observa o carro vindo, e quando ele passa, desfoca a estrada e deixa na cara do expectador o arame farpado que estava à sua frente, isto também desfere bastante significado para o que está por vir.

Em São Paulo, o garoto admira, pela janela do carro, a cidade, e é através de outro reflexo que vemos os prédios e o rosto do garoto no mesmo plano, sua expressão parece ser tanto de maravilhamento quanto de estranhamento. O lugar? Bairro do Bom Retiro, habitado peculiarmente por judeus, e de grande comércio têxtil; a paisagem já havia mudado, agora estava mais diferente ainda. É o primeiro contato com o diferente, para Mauro. Deixado, às pressas, na porta do prédio onde seu avô mora, os pais de Mauro prometem a ele que voltarão em breve, mas que agora iriam “tirar férias”, e essa espécie de código retumba no filme de forma bem discreta. O carro vai embora, e a câmera, dentro do carro, vai observando Mauro de longe, num plano geral que vai ficando cada vez mais distanciado, como se alguém tivesse vendo um goleiro lá do meio-campo.

O garoto decide não pegar o elevador, ou por não saber como aquela coisa funciona, ou por um estranhamento súbito, mas antes disso vê uma garota sair acompanhada por uma mulher, e os dois se encaram. Mauro sobe, de escadas, e bate na porta do apartamento do avô, ninguém responde. Naquele mesmo dia, antes de chegar no lugar, seu avô havia morrido, e isso muda completamente a vida do garoto, que se sente abandonado pelo pais e sozinho como um goleiro. O pior parecia ter chegado. Schlomo, seu vizinho, que é judeu, acaba virando uma espécie de tutor para o menino, que o acolhe em sua casa, e o contato dos dois nos mostra num âmbito mais aberto a questão da diferença. O avô de Mauro, Mótel, (Paulo Autran) era judeu, mas o menino é gói, uma palavra hebraica usada para designar aqueles que não são judeus, e a cena em que Scholomo descobre isso é bem engraçada, pois o menino não é circuncidado. A questão da diferença começa a pairar no filme, uma vez que o ambiente é composto por uma maioria judia, e não ser judeu pesa tanto quanto ser judeu num lugar de não-judeus.

O filme traz bastantes aspectos da cultura judaica (algumas personagens falam em hebraico inclusive), e sob a tutela de Schlomo, Mauro passa a frequentar a sinagoga, assim como também passa a usar o quipá para tal. No café da manhã, o garoto torce o nariz para a comida servida, e reclama do leito frio. Os dois se desentendem, e Mauro foge para o apartamento do avô, ficando lá por dias, esperando a ligação dos pais. Há duas cenas em que é importante dar destaque para maior entendimento da diferença (mas talvez tentativa de aproximação) entre os dois; uma delas é quando Schlomo bate na porta, e Mauro levanta e põe o ouvido contra a porta para escutar se ainda tem alguém ali, do outro lado Schlomo faz o mesmo, e os dois ficam ali, separados por um porta, mas ligados de uma forma em que tentam se comunicar; outrossim, os dois são vistos de fora, num ângulo exterior aos apartamentos, onde a cozinha de cada um também é dividida, de novo, por uma parede, e os dois são vistos realizando uma refeição.

O mundo das diferenças é uma explicação lógica para a cidade de São Paulo, a qual Mauro foi apresentado; num dos jogos de futebol do bairro, a partida é de italianos contra judeus, e numa narração em off Mauro apresenta as pessoas ali presentes: Schlomo era judeu polonês; Ítalo (Caio Blat) era descendente de italianos; Irene (Liliana de Castro), a moça que sempre tira suspiro dos meninos, filha de gregos; e o namorado dela, que até então aparecia meio que secretamente, numa moto e sempre de capacete, chega por último no campo, e ao tirar o capacete, descobrimos que o rapaz é negro, então Mauro deduz que ele seja neto de africano. A diversidade é uma das coisas que faz do Brasil um país tão rico culturalmente, isso é claro no filme.

O ano é de 1970, ano de Copa, no México, e o futebol é um dos temas que apazíguam o principal conflito do filme, o contexto da ditadura. Aos poucos, o expectador é apresentado a ele, começando pelas súbitas “férias” dos pais de Mauro, passando pela pichação de “ABAIXO A DITADURA”, feita pela personagem de Ítalo, que mais tarde no filme se torna uma espécie de intermediário para Mauro e Schlomo, uma vez que o rapaz conhece Daniel Stein, pai do garoto. Perto do fim do filme, há uma celebração judaica, o bar mitzvah de algum garoto da região, nele estão Mauro, a menina que havia o encarado ao sair do elevador é Hanna, que acaba virando amiga do menino, e também está na festa, alguém coloca Roberto Carlos para tocar, e a garotada vai a loucura com Eu Sou Terrível, uma transição de cena espetacular é quando os pés dançando são fundidos, através da edição, com a ferradura de cavalos no asfalto: é uma tropa da cavalaria se aproximando dali para prender supostos comunistas. Talvez seja o primeiro instante em que o expectador cai no real contexto do filme, os anos de ditadura e opressão, de coerção da polícia, das batidas e dos aprisionamentos. Ítalo, jovem engajado, isso o filme deixa claro, é uma das vítimas da truculência da polícia, e Schlomo, por ter envolvimento com o rapaz, é preso por uns dias.

Todo esse clima de tensão é mascarado pelo ar de alegria e descontração da Copa, do futebol, na época, e até mesmo hoje, muitos conhecem e sabem cantar o hino futebolístico que era propagado naquele tempo, o Pra Frente Brasil, além de um dos slogans mais sugestivos do país, o Brasil: ame-o ou deixo-o!. O filme, mesmo contando algo de trinta anos atrás e sendo de 2006, nunca foi tão atual, em ano de Copa, 2014 vai ser ou, na verdade, já é, um ano de críticas e protestos, contra esse ar de está tudo bem. Decerto não vivemos mais numa ditadura militar, mas ainda sim estamos atolados em problemas e ainda temos uma polícia truculenta que está a postos para combater qualquer tipo de efervescência social. 2014 é o ano em que o país sai de férias, sai mais cedo do trabalho, não tem mais aula, faculta os dias, ou seja, tudo é uma beleza.

O Brasil foi campeão em 1970, detentor do título pela terceira vez, e a mãe de Mauro voltou para buscá-lo, o garoto conta que se tornara um exilado, e mesmo não entendendo muito bem o que é ser aquilo, acha que é ter um pai que está tão atrasado que nunca mais vai voltar para casa. A vitória do Brasil não melhorou a vida de Mauro, muito pelo contrário e, assim, esse ano a mídia e o calor do brasileiro torcedor, que adora ser patriota em ano de Copa, vão nos fazer esquecer do que está (não) acontecendo de sério e importante no país. A luta, como sempre, será de poucos, assim como a natureza do goleiro que Mauro havia nos contado, que é e está sozinho, esperando o pior chegar, mas a verdade mesmo é que ninguém pode falhar. O Ano em Que Meus Pais Saíram de Férias é um filme essencial na história do cinema brasileiro, tanto por tratar de um assunto importante, como pela sua forma rica de abordá-lo.

Antes de partir, Mauro deixa sua bola de presente para Hanna.

Algo a se pensar.

Florianópolis, 15 de março de 2014

M. B. Massias

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