Resumo do mês

Fevereiro

Matheus Massias
52 min readMar 1, 2014

Fevereiro foi um mês que dediquei para filmes da Nouvelle Vague, a partir dessa lista de filmes, de um festival que eu gostaria muito de ter ido. Já tinha visto todos do Godard da lista, mas revi alguns, também já tinha assistido a maioria do Truffaut, com exceção de Jules et Jim (1962). Também já havia visto O Ano Passado em Marienbad (1961), de Alain Resnais; os demais foram inéditos para mim. Os outros filmes variaram entre os que eu tinha na minha watchlist do IMDb, alguns que vi por nenhum grande motivo, baixei mais dois filmes do Harmony Korine, a fim de conhecer um pouco mais sobre o diretor, além de rever o outros filmes da Trilogia da Depressão do Lars von Trier, e engatilhei em Dogville (2003); resolvi ver Antes Que o Diabo Saiba Que Você Está Morto (2007) após a triste e inesperada morte de Philip Seymour Hoffmann, um ator que eu admiro profundamente. Ademais, vi uma quantidade boa de filmes no cinema comercial, começando por Trapaça (2013), que achei incrível; depois vi Ela (2013), igualmente magnífico; Caçadores de Obras-Primas (2014), bem mais ou menos; o novo do José Padilha e dividido na crítica, RoboCop (2014), e o incrível Clube de Compras Dallas (2013). Vi Dentro de Casa e A Religiosa no cinema da Estação, duas escolhas muito boas. Para todos os filmes escrevi um pouco mais do que os do resumo do mês passado, então talvez o texto fique meio longo, mas se alguém se interessar em ler algum filme específico, é só pular, os filmes estão divididos por um quebra de espaço.

51. A Caça (Jagten, 2012, Dinamarca, Thomas Vinterberg) — ****

52. Ponto de Encontro (Trees Lounge, 1996, EUA, Steve Buscemi) — ***

53. Os Imperdoáveis (Unforgiven, 1992, EUA, Clint Eastwood) — ****

54. Antes Que o Diabo Saiba Que Você Está Morto (Before the Devil Knows You’re Dead, 2007, EUA, Sidney Lumet) — ****

55. Trinta Anos Esta Noite (Le feu follet, 1963, França, Louis Malle) — ***

56. Em Nome do Pai (In the Name of the Father, 1993, Irlanda/Reino Unido/EUA, Jim Sheridan) — ****

57. Minha Noite com Ela (Ma nuit chez Maud, 1969, França, Eric Rohmer) — ***

58. Killer Joe — Matador de Aluguel (Killer Joe, 2011, EUA, William Friedkin) — ***

59. Amor Bandido (Mud, 2012, EUA, Jeff Nichols) — ****

60. Paris Nos Pertence (Paris nos appartient, 1961, França, Jacques Rivette) — ***

61. Meu Pé Esquerdo (My Left Foot: The Story of Christy Brown, 1989, Irlando/Reino Unido, Jim Sheridan) — ****

62. O Desprezo (Le mépris, 1963, França/Itália, Jean-Luc Godard) — ****

63. Poltergeist — O Fenômeno (Poltergeist, 1982, EUA, Tobe Hooper) — ***

64. O Demônio das Onze Horas (Pierrot le fou, 1965, França/Itália, Jean-Luc Godard) — ****

65. Nas Garras do Vício (Le beau Serge, 1958, França, Claude Chabrol) — ***

66. Scarface — A Vergonha de Uma Nação (Scarface, 1932, EUA, Howard Hawks/Richard Rosson) — ***

67. O Último dos Moicanos (The Last of the Mohicans, 1992, EUA, Michael Mann) — ***

68. O Ano Passado em Marienbad (L’année dernière à Marienbad, 1961, França/Itália, Alain Resnais) — ****

69. O Mágico de Oz (The Wizard of Oz, 1939, EUA, Victor Fleming) — ****

70. Trapaça (American Hustle, 2013, EUA, David O. Russell) — *****

71. Hiroshima Meu Amor (Hiroshima, mon amour, 1959, França/Japão, Alain Resnais) — *****

72. Trash Humpers (Trash Humpers, 2009, EUA/Reino Unido/França, Harmony Korine) — *

73. Cléo das 5 às 7 (Cléo de 5 à 7, 1962, França/Itália, Agnès Varda) — *****

74. Mister Lonely (Mister Lonely, 2007, Reino Unido/França/Irlanda/EUA, Harmony Korine) — ***

75. A Colecionadora (La collectionneuse, 1967, França, Eric Rohmer) — **

76. Ela (Her, 2013, EUA, Spike Jonze) — ****

77. Alphaville (Alphaville, une étrange aventure de Lemmy Caution, 1965, França/Itália, Jean-Luc Godard) — ***

78. Jules e Jim — Uma Mulher para Dois (Jules et Jim, 1962, França, François Truffaut) — *****

79. Dentro da Casa (Dans la maison, 2012, França, François Ozon) — ****

80. Caçadores de Obras-Primas (The Monuments Men, 2014, EUA/Alemanha, George Clooney) — **

81. A Vida em Preto e Branco (Pleasantville, 1998, EUA, Gary Ross) — ****

82. O Estrangeiro (Lo Straniero, 1967, Itália/França/Algéria, Luchino Visconti) — ***

83. Filth (Filth, 2013, Reino Unido, Jon S. Baird) — ***

84. Sound City (Sound City, 2013, EUA, Dave Grohl) — ****

85. Veludo Azul (Blue Velvet, 1986, EUA,David Lynch) — ****

86. Godard, Truffaut e a Nouvelle Vague (Deux de la Vague, 2010, França, Emmanuel Laurent) — ***

87. Derrida (Derrida, 2002, EUA, Kirby Dick/Amy Ziering) — **

88. A Religiosa (La Religieuse, 2013, França/Alemanha/Bélgica, Guillaume Nicloux) — ***

89. O Gângster (American Gangster, 2007, EUA, Ridley Scott) — ****

90. Atirem no Pianista (Tirez sur le pianiste, 1960, França, François Truffaut) — ***

91. Fahrenheit 451 (Fahrenheit 451, 1966, Reino Unido, François Truffaut) — ****

92. Filhos da Esperança (Children of Men, 2006, EUA/Reino Unido, Alfonso Cuarón) — *****

93. Gravidade (Gravity, 2013, EUA/Reino Unido, Alfonso Cuarón) — *****

94. Melancolia (Melancholia, 2011, Dinamarca/Suécia/França/Alemanha, Lars von Trier) — ***

95. Anticristo (Antichrist, 2009, Dinamarca/Alemanha/França/Suécia/Itália/Polônia, Lars von Trier) — ****

96. RoboCop (RoboCop, 2014, EUA, José Padilha) — ***

97. Clube de Compras Dallas (Dallas Buyers Club, 2013, EUA, Jean-Marc Vallée) — ****

98. Dogville (Dogville, 2003, Dinamarca/Suécia/Reino Unido/França/Alemanha/Holanda/Noruega/Finlândia/Itália, Lars von Trier) — *****

99. Abril Despedaçado (Abril Despedaçado, 2001, Brasil/França/Suíça, Walter Salles) — ****

100. Diários de Motocicleta (Diarios de Motocicleta, 2004, Argentina/EUA/Chile/Peru/Brasil/Reino Unido/Alemanha/França, Walter Salles) — ****

Para cada filme escrevi uma pequena crítica (alguns nem chegam a isso), algumas contém spoilers.

A Caça (2012) é o primeiro filme do diretor dinamarquês Thomas Vinterberg que vejo, e durante o filme houve certos momentos em que achei que fosse um filme de Lars von Trier, e não era pra menos: von Trier e Vinterberg, além de amigos, foram os criadores de um dos últimos movimentos de cinema mais relevantes: o Dogma 95. Talvez tenha sido por causa das câmeras de mão, é, acho que sim. O filme aborda um dos temas mais polêmicos não só do cinema, mas da existência humana como um todo, pedofilia: Lucas (Mads Mikkelsen) é acusado de abusar sexualmente uma das crianças da creche que trabalha como professor. O filme se desenvolve através dessa problemática e mostra, sem piedade, as consequências de tais atos.

Trees Lounge (1996) é o début do ator Steve Buscemi em direção cinematográfica. Um bom filme que mostra os percalços de Tommy (Buscemi) no que se referem a mulheres, paixões, as noites (e os dias) passadas no bar (o Trees Lounge), etc.

Os Imperdoáveis (1992) é um filme do gênero western dirigido e atuado por Clint Eastwood. Começa belissimamente com um extreme long shot, onde se vê Eastwood no pé de uma árvore (sabe-se mais tarde que ele, na verdade, está no túmulo de sua esposa, a qual ele sempre se manteve fiel), no fundo uma espécie de pôr-do-sol, linda fotografia. Além do grande Clint Eastwood, figurinha carimbada em filmes de western, o elenco também comporta Morgan Freeman (escudeiro de Eastwood nos velhos tempos), mas é Gene Hackman que rouba a cena, interpretando uma espécie de xerife bem casca grossa. Um filme antiviolência, mas sobre vingança, mostra um velho Eastwood ainda novo quando o assunto é puxar o gatilho.

Antes Que o Diabo Saiba Que Você Está Morto (2007) é o último filme do infelizmente finado Sidney Lumet, diretor que criei imenso interesse depois de ver filmes incríveis como 12 Homens e Uma Sentença (1957) e Um Dia de Cão (1975). Antes Que o Diabo Saiba Que Você Está Morto é um grande exercício de narração, que mostra um viés da história, depois mostra outra perspectiva, através de suas personagens; primeiro ponto positivo vai para o roteiro, depois para Lumet, na direção. Retrocedendo a história a partir dos sentimentos e dificuldades de cada personagem, o filme se desenvolve em backwards, mas se encaixa perfeitamente até o final. Confesso ter visto o filme antes do tempo, não previa ter visto se não fosse por causa da prematura e triste morte de um ator que admiro imensamente: Philip Seymour Hoffman. Ator que conheci, não me recordo muito bem, em Missão Impossível 3, mas passei a apreciar com gosto a partir dos filmes do Paul Thomas Anderson, em que Seymour Hoffman é ativo; e o último dele, O Mestre (2012) foi o filme que dei respeito eterno a ele. Uma das atuações mais intensas do cinema, ao lado de outro grande ator, Joaquin Phoenix.

Trinta Anos Esta Noite (1963) é o segundo filme que vejo de Louis Malle; no entanto, dessa vez pude pegar um do movimento francês Nouvelle Vague (embora o diretor não seja estritamente ligado ao movimento). Com cenas variando entre tomadas internas e externas, nas ruas de Paris, e outras dentro ou em torno de veículos, o filme se estende no drama de Alain Leroy (Maurice Ronet) e sua (não) relação com o alcoolismo. Trabalho em diálogos, e com atuações cativantes, o filme é um bom exemplo da Nouvelle Vague.

Em Nome do Pai (1993) é um filme baseado em fatos reais, mas isso não torna sua narrativa cronológica, ela é intercalada algumas vezes pela advogada (Emma Thompson) de Gerry Conlon (Daniel Day-Lewis), cuja atuação é explosiva, mas não excepcional.

Minha Noite com Ela é um filme de 1969, do diretor Eric Rohmer, geralmente associado à Nouvelle Vague. O filme, decorrente de tal movimento, traz várias características dele como, por exemplo, a frequente alternância de cenas externas e internas, e talvez as internas se sobressaiam em Minha Noite com Ela, principalmente quando Jean-Louis (Jean-Louis Trintignant), o protagonista, passa a noite com ela, ela é Maud, não à toa que o título original é Ma nuit chez Maud (Minha noite com Maud). A noite com Maud, em seu apartamento, é quase infindável (por momentos lembrei-me da cena de Jean-Paul Belmondo e Jean Seberg no quarto, em Acossado, de Godard), e refutando voltar pra casa, Jean-Louis acaba dormindo com Maud, que insiste para ele ficar. O filme é desenvolvido massivamente no desenrolar dos diálogos, recheados com discussões sobre os escritos de Pascal, além de religião (catolicismo e ateísmo), e princípios morais. Outra coisa que chama atenção no filme são os atores fora do plano que falam enquanto outros ouvem e depois, consequentemente, falam, mantendo, de certa forma, essa alternância. Minha Noite com Ela faz parte dos Seis Contos Morais, sendo o terceiro da série.

Killer Joe (2011) é um filme de William Friedkin, diretor conhecido por O Exorcista e French Connection. Me animei pra ver Killer Joe para conferir se a fase tão próspera do Matthew McConaughey é realmente tudo isso — o ator faz o papel de Joe que, como já diz no título, é um matador. Contratado por uma família, com a ideia inicial de Chris (Emile Hirsch, ator da geração atual que admiro demais, não só por Into the Wild, mas desde lá atrás em Lords of Dogtown), que se junta ao seu pai (e sua atual esposa) e mais sua irmã, que concorda com a ideia que é matar a mãe a fim de receber sua apólice estimada em cinquenta mil. McConaughey está incisivo, com um sotaque condizente, ele parece nunca falhar, Friedkin deixa claro quando apresenta a personagem, com closes em partes do seu corpo, nas botas, nas luvas, etc.; Joe não permite falhas, e as últimas cenas do filme são as mais fortes e carregadas de violência, no entanto o filme deixou um vazio em mim, como se faltasse algo a mais, o mesmo que senti quando vi Killing Them Softly (2012).

Mud (2012), outro filme protagonizado por (não apenas) McConaughey é um que poderia ser divido por uma linha, que separa infância e a vida adulta, as esperanças e os desejos contra as lutas e as amarguras. McConaughey, Mud, divide o filme com Ellis (Tye Sheridan, ator mirim que desenvolve seu papel de forma esplêndida) e seu amigo, Neckbone (Jacob Lofland); eles encontram Mud numa ilha deserta, onde tem um barco pendurado numa árvore, que funciona como uma casa-barco da árvore. Ellis pressente que tem alguém ali quando percebe que dentro do barco tem alimentos, e no seu caminho de volta, avista marcas de sapato onde no solado há uma cruz (essa é só uma das superstições que envolvem o misterioso personagem). Os garotos acabam conhecendo Mud, que se diz ser uma pessoa não perigosa; os meninos acabam virando amigos dele. O paralelo entre Ellis e Mud vai ficando cada vez mais estreito: Ellis descobre que seus pais vão se separar, Mud nunca conheceu os pais; o menino se decepciona no amor, Mud não fica atrás; ambos ficam mais perto um do outro por uma picada de cobra. O filme tem uma narração que poderia se comparar literariamente com algo que Mark Twain escreveu, além da forte amizade criada entre um menino e um homem, e suas semelhanças mesmo com tanta diferença de idade.

Paris Nos Pertence (1961), filme do francês Jacques Rivette (um dos membros da Nouvelle Vague que está vivo até hoje), é uma série de ações que praticamente não se resolvem. Através de uma trama confusa, o expectador fica, por vezes, aflito com o que está vendo, e como aquilo terminará (apesar disso, o filme não chega a flertar necessariamente com o suspense). Movido à música e teatro, o filme é alimentado por um suicídio em que Anna (Betty Schneider) tenta desvendar e que as pessoas ao seu redor, que ela acaba de conhecer, podem ter algo a falar.

Meu Pé Esquerdo (1989), segundo filme de Jim Sheridan que vejo este mês, vem de uma lista de filmes que eu havia feito do ator Daniel Day-Lewis, por motivos óbvios. Para quem tinha visto o ator um ano antes em A Insustentável Leveza do Ser (1988), fazendo um Don Juan checo, que leva sua vida divido entre duas mulheres, pode se assustar vendo Daniel Day-Lewis na vida de Christy Brown, um irlandês que nasceu com paralisia, e a única parte do seu corpo que funciona é o pé esquerdo. Daniel Day-Lewis consegue capturar todo o sofrimento e todos os traços e trejeitos possíveis de Christy, que tem dificuldade para falar, e se contorce a todo instante. Narrado a partir dos capítulos do livro que Christy escreveu sobre sua vida, o filme volta lá atrás quando Christy nasceu e seus pais tiveram a notícia de sua natureza até o momento em que Christy já é adulto e um renomado pintor. Ótima atuação, explorada ao extremo, é um dos maiores method actors da atualidade, ao lado de atores como Christian Bale, por exemplo.

O Desprezo (1963), filme do francês Jean-Luc Godard, um dos expoentes da Nouvelle Vague, é mais um que Godard imprime suas marcas de forma claramente notável. O cinema de Godard e seu modo de fazer filmes, assim como sua visão de mundo, é bastante pessoal e particular, muitas vezes inconfundível. O Desprezo já começa de forma ortodoxa, os créditos, ao invés de escritos, são lidos por alguém, o que já torna o filme bem diferente e inovador, a partir de algo bem simples, e enquanto são falados, a equipe de cinema (já no filme) vem em direção à câmera, filmando a partir de uma dolly track, além da pessoa que está capturando o som, e a suposta atriz. A primeira cena traz Paul (Michel Piccoli) e sua esposa, Camille (Brigitte Bardot), que está deitada de bruços na cama e nua, algo que para a época deve ter sido um pouco polêmico, talvez, mas que para o deleite de muitos foi simplesmente belíssimo; pode, também, ter parecido bem gratuito, só para vender o filme (ora, era a Brigitte Bardot nua!), mas Godard consegue dar um tom quase artístico ao nu. O roteiro de O Desprezo não é original de Godard, mas baseado em um romance; o filme é sobre um filme, ou como ele está sendo feito, e partir daí é mostrada outra característica dos filmes da New Wave francesa: sua relação com a literatura. O Desprezo é desenvolvido ao redor da Odisseia de Homero, algo que não é novo para Godard, o diretor já pôs em seus filmes várias citações literárias, como Edgar Allan Poe em Viver a Vida; o filme mostra o mundo do cinema e suas funções, com diretores, roteiristas, produtores, atores, etc.; rodado na Itália, o filme é uma aquarela de línguas, onde coexistem aproximadamente quatro idiomas, Paul e Camille falam em francês, o produtor, Prokosch (Jack Palance), em inglês, Fritz Lang, em pessoa, é o diretor, ora fala em inglês, ora em francês, e até mesmo em sua língua-mãe, o alemão; a comunicação entre Prokosch e Paul, diretor e roteirista, respectivamente, é dada a partir de uma intérprete, que é italiana. Além dessa conotação cinematográfica, o filme se desenvolve mais por outro prisma, a relação de Camille e Paul, que vai se deteriorando, e ela passa a desprezá-lo, e descobrir o porquê disso é uma das motivações de Paul. Algo bem comum nos filmes de Godard é a execução de cenas em um determinado lugar, geralmente fechado, como um quarto, ou até mesmo um apartamento (vide Uma Mulher é uma Mulher, ou até mesmo Acossado, onde Belmondo e Seberg passam horas conversando no quarto) como acontece em O Desprezo, onde Camille e Paul ficam discutindo por um pouco mais de trinta minutos, sim, meia hora! A câmera de Godard, de mão, flui entre as paredes e as portas do apartamento, que sempre estão abertas e/ou não existem. Outro fator importante no filme são as cores, a presença do azul e do vermelho (ambos presentes nas bandeiras francesa e americana), primeiro notadas quando é passado um filme para os membros da produção, onde se tem as estátuas de heróis e deuses gregos, Ulisses tem os olhos pintados de vermelho, enquanto Poseidon tem os olhos e os lábios coloridos de azul. As cores se repetem também nas poltronas e sofás, e nas roupas usadas pelas personagens. Na cena do apartamento, Paul aparece, em certo momento, em volta de uma toalha branca, de modo que lembra estar vestido com uma túnica grega. Outro aspecto importante em O Desprezo é, como já foi dito, a relação de Paul e Camille, onde o fator feminino é sempre forte e representativo nos filmes de Godard, e geralmente apresenta algum problema e/ou dúvida, é só lembrar da personagem de Patrícia (Jean Seberg) em Acossado, as personagens de Anna Karina (que foi esposa de Godard) nos mais diversos filmes em que ela atuou para o diretor.

Poltergeist (1982) foi um filme produzido e escrito por Steven Spielberg, e dirigido por Tobe Hooper, conhecido pelo clássico O Massacre da Serra Elétrica (1974). É o típico filme dos anos 80, com família reunida, sempre junta, em que todos se protegem, tem um pai trabalhador, e com típicos filhos americanos também; o garoto, por exemplo, é um ávido fã de Star Wars (que vejo mais como um merchandising de Spielberg para seu amigo George Lucas). Não fica muito claro, até certa parte do filme, sobre do que se tratam os fatos que ocorrem na casa, houve momentos que até achei fossem sobre extraterrestres. Desenvolvido a partir de bastantes efeitos especiais, que parecem toscos atualmente, eles devem ter sido excepcionais para sua época. Lembro-me de ter gostado do uso de zoom-out em duas cenas do filme que não lembro exatamente agora, mas que deram um toque a mais nas cenas em questão.

Godard é o diretor que mais aprecio na Nouvelle Vague, por vários motivos; até por ter sido o diretor do movimento francês o qual mais vi filmes. Pierrot le Fou (1965), traduzido como O Demônio das Onze Horas (juro que até hoje não entendi esse título, e tenho certo medo de ser óbvio de alguma forma) pode ser considerado um dos filmes de sua fase de ouro, ou, a sua primeira fase da Nouvelle Vague, com Jean-Paul Belmondo e Anna Karina protagonizando a história (o filme, segundo Godard, foi feito sem roteiro) que se desenvolve de forma bem espontânea e improvisada, pelos interiores franceses. Ferdinand Griffon (Belmondo) acabara de ser despedido da empresa de televisão para a qual trabalha, é casado com uma moça de descendência italiana de bastante dinheiro; uma noite quando o casal sai, Griffon reencontra Marianne (Karina), moça com quem Griffon já havia tido um relacionamento antes. As cenas dessa espécie de festa que o casal vai, na casa de alguém, nos traz algo curioso: em planos médios, com Griffon passando por pessoas que conversam, Godard joga uma luz em cada plano, verde, amarelo, vermelho, azul; e em cenas mais tarde, quando Griffon foge com Marianne, e estão no carro conversando, Godard joga de novo as luzes, só que elas não colorem o ambiente como haviam feito anteriormente, mas passam pelas personagens de maneira estroboscópica. Algo curioso na festa é o cameo do diretor norte-americano Samuel Fuller, que se apresenta como um produtor de filmes. Pierrot le Fou já apresenta temas políticos, os quais Godard quase sempre aborda em seus filmes, Marianne ainda com Griffon, tem várias armas (armas de grande porte, metralhadoras, etc.) em seu apartamento, elas tinham sido usadas na guerra da Argélia. Depois da chegada de um homem, os dois fogem mais uma vez, e seus caminhos são marcados por vários roubos e violência (a violência em questão do filme não chega a ser gráfica, muito pelo contrário, às vezes é até meio pastelão e com momentos cômicos, uma vez que o casal precisa de dinheiro. Em uma das cenas no carro, Griffon se dirige para a câmera e fala para ela, Marianne pergunta com quem Pierrot (a personagem de Marianne sempre chama Griffon de Pierrot, e ele sempre refuta dizendo que seu nome é Griffon, e não Pierrot), e ele responde que está falando com os expectadores; essa cena é um clássico exemplo de quebra da quarta parede do cinema. O filme, até certa parte, mostra várias pinturas e recortes de quadrinhos entre suas cenas, de modo que elas devem se interconectar; as cores vermelha e azul também estão presentes de forma marcante, assim como em O Desprezo, tanto nos carros usados, como nas roupas dos protagonistas. Nota-se, também, em um dos lugares em que o casal passa, um rapaz chamado Lazlo Kovaks, o pseudônimo que Michel Poiccard (Belmondo) usa em Acossado. O filme traz citações também, Griffon fala de Pepe le Moko para Marianne, que não conhece o filme (de gangster).

Nas Garras do Vício (1958) é considerado o primeiro filme da Nouvelle Vague, fato curioso que discordo de certa forma. Primeiro, o filme é rodado num interior, algo que é contrário ao que é mostrado na maioria dos filmes do movimento, os quais são rodados geralmente em Paris, nas suas ruas, com carros e pessoas ao redor (Acossado, por exemplo, foi rodado sem nenhuma autorização). Assim como Trinta Anos Esta Noite, Nas Garras do Vício, o primeiro filme de Claude Chabrol, traz o problema do alcoolismo, na personagem de Serge, que leva o nome no título francês (Le Beau Serge). François, amigo de infância de Serge, volta para a cidade natal, a fim de se recuperar de uma tuberculose que havia pegado, embora já se sinta melhor. Seu plot é bem desenvolvido, provindo de um roteiro bem estruturado; o filme quase não tem ou praticamente não tem nenhuma cena com shot-reverse-shot, Chabrol, ao invés disso, usa planos em que as personagens estejam enquadradas em um só plano, ou em que só uma aparece.

The world is yours, frase que poderia muito bem ser o subtítulo de Scarface (1932), filme de Howard Hawks, que é menos conhecido da maioria devido à refilmagem de Brian De Palma, dos anos 80, que traz Al Pacino como Tony Montana. O Scarface de Hawks é Tony Camonte (Paul Muni), um homem tão ambicioso como o Tony vivido por Al Pacino, além disso, ambos nutrem um ciúme psicótico em relação à irmã. A diferença entre Camonte e Montana está no desenvolvimento de personagem, o Scarface de Howard Hawks tem uma hora e meia de duração, enquanto De Palma traz quase três horas, construindo bem mais a figura de Montana, de um mero empregado em uma lanchonete de rua a um dos maiores gangsteres que os Estados Unidos já viu, além de apresentar ao expectador o background de Montana. Ambos os Tonys são caricatos, mas o Tony de Paul Muni tem certos trejeitos, muitas vezes engraçados, e é menos violento também; é marcante o seu assoviar antes de matar alguém. Não querendo comparar os filmes em questão, mesmo já o tendo feito, o Scarface de Hawks é um bom filme, e na época foi adorado por Al Capone, cuja pessoa é retratada no filme, é também o primeiro filme que tem a presença da metralhadora Tommy Gun, embora esse nome não seja usado no filme, Camonte a chama, em certos momentos do filme, de typewriter (máquina de escrever), devido ao seu barulho. Hawks, de modo bem interessante, mostra certas cenas a partir de vários ângulos, dando certa dinâmica a ela, mesmo que ela não tenha nenhuma ação; no entanto, em outros momentos, cenas com até menos de dez segundos seguidas de um fade-out, que mostram passagens, são quase desnecessárias. É recorrente o uso da letra “X” no decorrer do filme, sempre a fim de avisar uma futura morte.

O Último dos Moicanos (1992), filme de Michael Mann, é outra filme que estava na minha lista por causa do ator Daniel Day-Lewis, que não tem uma atuação muito consistente, ou tão emblemática como em Meu Pé Esquerdo. Gravado todo em locação, creio eu, o filme adiciona algo a mais na fotografia por causa das paisagens, das florestas, rios e quedas d’água; o plot do filme se desenvolve basicamente ao redor de uma história de amor, entre Nathaniel (Day-Lewis) e Cora Munro (Madeleine Stowe).

O Ano Passado em Marienbad (1961) é um filme do diretor francês Alain Resnais, que também é geralmente associado ao grupo da Nouvelle Vague, só que com uma diferença: enquanto Chabrol, Godard, Rivette, Rohmer, e Truffaut eram críticos na aclamada revista de crítica cinematográfica Cahiers du Cinéma, e depois viraram grandes diretores, Resnais (ao lado de outros diretores) pertencia a outro grupo, conhecido como Rive Gauche, que se diferenciava por ter diretores mais velhos e menos cinéfilos, aficionados. Resnais, em O Ano Passado em Marienbad, atinge um grau de direção muito sofisticado e elegante, assim como o lugar onde se passa, com movimentos de câmera e ângulos impecáveis, sempre bem pensados, embora deixando o movimento livre entre as paredes e colunas do hotel em que o filme se desenvolve. É a segunda vez que vejo o filme, e ele me impressionou bem mais. Há momentos em que me lembrei de A Arca Russa (2002), de Sokurov, único filme gravado do início ao fim sem cortes. O enredo do filme não é muito claro, as personagens não têm nomes, mas seus diálogos tentam esclarecer algo já ocorrido ou algo sobre eles. Ronald Bergman, em seu livro The Film Book, afirma que Marienbad “muda o conceito de tempo subjetivo no cinema”, Bergman também aponta para o fato de o filme rejeitar “uma estrutura cronológica e realidade objetiva”, além de “misturar memória e imaginação, desejo e satisfação, com o passado, presente, e futuro”, assim Resnais cria “um dos mais enigmáticos, assombrosos, e eróticos dos cine-poemas”. No mais, Bergman destaca que “apesar do estio e a estrutura tenham intrigado na época, a visão do passado e do presente, e os instantâneos ‘flash-ins’, ao invés dos tradicionais flashbacks lentos, se tornaram hoje em dia parte do vocabulário contemporâneo do cinema”. O Ano Passado em Marienbad está na sessão Top 100 Movies, de Bergman, no mesmo livro supracitado. Uma coisa engraçada sobre o filme, que o IMDb informa, é que ele foi incluído na lista de “Os Cinquenta Piores Filmes de Todos os Tempos (e como eles chegaram lá)” por Harry Medved e Randy Lowell.

O Mágico de Oz (1939) além de um grande filme de fantasia, é acrescido por toques mágicos de musical. A primeira coisa que chama a atenção no filme é sua fotografia em sépia, que dá um ar de antigo, talvez até mais antigo que o tradicional e clássico preto e branco. Colorido em sépia, os primeiros minutos do filme mostram Dorothy e seu cachorro Toto, e como ela vive com sua família: tio Henry e tia Em, além dos trabalhadores/amigos da família Hunk, Zeke e Hickory. Primeiro a paz do lugar é invadida pela megera Miss Gulch, depois por um tornado, que leva Dorothy até Munchkinland. Lá ela conhece uma fada do bem, que a aconselha a ir pela estrada de tijolos amarelos, no caminho ela faz amizade com um Espantalho, um Homem de Lata, e um Leão, as três personagens, assim como Dorothy, sentem falta de algo, se sentem incompletos. A fotografia em sépia muda para colorida (em Technicolor) quando o mundo da fantasia é apresentado, sempre muito colorido e muito bem ornamentado. O uso de crane shots é importante no filme, dá uma visão quase panorâmica do lugar por onde Dorothy anda, mostrando os detalhes e criaturas de cima e sobrevoando por elas.

A crítica de Trapaça pode ser lida aqui.

Hiroshima, Meu Amor (1959) é o primeiro longa-metragem de Alain Resnais, e assim como os outros membros da Nouvelle Vague, Resnais acerta de mão cheia em sua estreia. Hiroshima, Meu Amor é, ou tenta ser um romance de guerra entre a francesa Elle (Emanuelle Riva, linda) e o japonês Lui (Eiji Okada); e assim como outros filmes do movimento francês, não que isso seja uma regra, o filme também começa/tem uma cena em que as personagens estão na cama, e entre ela há uma alternância de imagens de uma Hiroshima desolada pela guerra e suas mazelas, com a voz de Riva no fundo, narrando o que ela vê. A questão da memória é explorada no filme, principalmente pela personagem de Riva, que tivera um amante alemão no passado e não conseguiu superar a morte dele. O começo do filme, em que os amantes dividem a cama e temos a voz de Riva colorindo o que vemos, é quase uma espécie de documentário, com imagens de pessoas atingidas diretamente pela guerra e seu sofrimento; depois o filme se desenrola como ficção, focando no conflito das duas personagens principais.

Trash Humpers (2009) é literalmente um lixo. Filme de 2009, de Harmony Korine, gravado e editado inteiramente em VHS, e quando digo que o filme é ruim, não é por isso; Korine deve ter feito o filme por pura diversão, puro vandalismo e niilismo, aparentemente sem um roteiro (que também não é problema), o filme de um pouco mais de uma hora é uma sucessão de pequenos eventos onde três personagens mascaradas, sendo dois homens e uma mulher, saem pelas ruas e fornicam com depósitos de lixo, postes de luz, etc. Apesar de absurdo, a ideia parece até ser engraçada, mas o filme não é. Em nenhum momento.

Cléo das 5 à 7 (1962), de Agnès Varda, provavelmente a única mulher da Nouvelle Vague, movimento majoritariamente formado por homens, é considerada “a mãe da nouvelle vague”. O filme em questão se tornou, pra mim, um dos filmes mais legais do movimento; tem um jeito peculiar, apesar de trazer os elementos típicos do movimento, como cenas externas na rua e cenas realizadas por um bom tempo dentro de um lugar, como quando Cléo (Corinne Marchand) e Angèle (Dominique Davray) estão no apartamento da primeira. O filme é divido em capítulos, algo que me fez lembrar Viver a Vida (1962) de Godard, sendo que Cléo das 5 à 7 além de ser dividido em capítulos, cada capítulo demarca um determinado tempo, correndo das 5 às 7, sendo que só vai até às seis e meia. O filme começa de forma de incrível, quando Cléo está com uma cartomante lendo seu futuro, e confirma algo horrível, o plano também é bem legal, um misto de plongê e zenital (plongê absoluto), e detalhe: está colorido, dando destaque para as cartas e seus desenhos. O filme apresenta o olhar feminino de forma bem acentuada, tanto comportamental como em superstições, como a personagem Cléo enfrenta ao decorrer do filme. A cena do quarto, já citada, apresenta movimentos de câmera bem variados e dinâmicos, além de explorar o espaço com os atores, uma mise-en-scène bem elaborada.

Mister Lonely (2007), outro filme de Harmony Korine, puxa pro lado da comédia, mas está mais pra um drama leve. As personagens são vários imitadores, e seu protagonista é Michael, Michael Jackson, feito por Diego Luna; uma personagem por ora melancólica, por ora alegre. Ele trabalha imitando Michael Jackson nas ruas de Paris, até que um dia, numa animação em uma casa de idosos, ele encontra a Marilyn Monroe (Samantha Morton) e depois de sair do lugar ele a encontra despretensiosamente num café próximo, e senta com ela. Os dois conversam e se dão muito bem, ela conta que seu marido é o Charlie Chaplin e sua filha é a Shirley Temple (que morreu esse mês, por sinal), um dos maiores astros mirins do cinema; Marylin pergunta a Michael desde quando ele é Michael, e ele responde que desde criança — o filme funciona como um retrato sobre projeções artísticas, trazendo pessoas icônicas, como Jackson, Monroe e Chaplin, por exemplo — ainda em sua conversa, Marylin convida Michael para ele viajar junto com ela, para um lugar onde há uma casa e nela moram vários imitadores, todos com uma personagem diferente. Lá, Michael encontra o já citado Chaplin, Temple, o Papa, a rainha da Inglaterra, Chapeuzinho Vermelho, Madonna, James Dean, Abraham Lincoln, entre outros. Com essa conexão entre o ser e o não ser, o real e o imitado, a função e noção do kitsch e a importância (ou a falta dela) dada a ele. O filme divide-se em quatro partes, Man in the Mirror, Beat It, Thriller e You Are Not Alone, todas músicas de Michael Jackson, porém não são tocadas no filme. O mundo dos imitadores, no filme, tem um paralelo com um padre (participação de Herzog) e suas freiras, que descobrem serem santas depois que uma delas cai do avião em que eles trabalham, mas consegue se salvar, planando no ar. O filme parece dar bastante margem para o improviso, que é uma das marcas de Korine para com seu elenco.

A Colecionadora, filme de 67, de Eric Rohmer, traz nos seus créditos iniciais o nome de Barbet Schroeder como produtor, o que me fez logo lembrar de More (1969), e A Colecionadora traz um pouco de More, como a relação entre homem e mulher, o lugar praiano, menos as drogas. O filme começa com três prólogos, onde o primeiro apresenta Haydée, e o segundo apresenta a personagem de Adrien, que irá tentar uma relação com Haydée. O filme é um conflito entre os dois e mais o amigo de Adrien, Daniel; se passa numa casa grande de praia, faz parte também dos Seis Contos Morais de Rohmer, sendo este anterior a Minha Noite com Ela. Confesso que achei o filme chato, onde nem o improviso dos atores me ajudou.

Her (2013) foi um dos filmes mais bonitos que já vi esse ano, quiçá o mais bonito. Escrito e dirigido por Spike Jonze, é um filme bonito primeiro por causa da linda fotografia em que está banhado, sempre bem colorido (mas nunca excessivo), a variedade de cores nos enche os olhos quando vemos onde Theodore (Joaquin Phoenix) trabalha, além das camisas e jaquetas que ele usa, a constante jaqueta vermelha que acompanha a personagem praticamente desde o começo até o fim. As cores marcantes, vívidas, são contrastadas com o clima, ambiente de uma Los Angeles futurista onde a história se passa; uma vez que o apartamento onde Theodore mora ou até mesmo o prédio ou o departamento onde ele trabalha nos enche de conforto e segurança, o mundo exterior parece frio, cinza e triste, até mesmo vazio. A atuação de Joaquin Phoenix é uma das coisas mais importantes e mais marcantes do filme, Jonze usa majoritariamente closes no rosto de Phoenix, que quase sempre está deitado em sua cama. Theodore trabalha para uma empresa que escreve cartas feitas a mão, uma das coisas que achei irônicas no filme, já que se passa no futuro e a tecnologia impera, era de esperar que qualquer aplicativo fizesse isso; escrevendo cartas de pessoas para outras pessoas, ou familiares, ou amorosas, a personagem de Theodore é bem simpática e sensível, ele acaba de vir de um término de relacionamento com Catherine (Rooney Mara), que amara por toda a vida e a conhece desde jovem, uma pessoa com quem ele cresceu junto, tanto em questão de maturidade, como nos mais diversos âmbitos de um relacionamento. O filme retrata, basicamente, a relação dos seres humanos (no caso, de Theodore) com a tecnologia, e o binômio de entretenimento e solidão, de estar com alguém, mas estar só. Theodore compra e conhece o mais novo gadget lançando, o OS (simplesmente Sistema Operacional), onde uma voz emana através de um ponto, que se usa no ouvido, além de poder usar um dispositivo de tamanho relativamente pequeno, que lembra muito um celular, onde se pode interagir também com o OS. A voz em questão é uma voz feminina e que se denomina Samantha (Scarlett Johansson — nenhuma outra atriz poderia ocupar esse papel, uma vez que a voz de Johansson é uma das vozes femininas mais marcantes, um misto de rouco com grave, mas sempre charmosa), os dois vão interagindo de uma forma cada vez mais intensa, Samantha conhece Theodore através do computador dele, ela lê os e-mails para ele, toca músicas, etc.; os dois acabam se apaixonando, e saber disso parece no mínimo ridículo, mas por mais impressionante que isso pareça, não é o que o filme mostra ou dá entender. Todos ao redor de Theodore o entendem quando ele diz ter um relacionamento com um OS, sua amiga Amy (Amy Adams, que tem uma atuação espontânea, mas contida) e um de seus colegas de trabalho, por exemplo, que até marca um encontro de casais (a acompanhante dele é uma “pessoa de verdade”), menos sua ex-mulher, Catherine. Com essa relação entre homem e máquina, humanidade e tecnologia, o filme nos mostra outro viés de uma história que já está sendo contada, nos dias de hoje mesmo, mas que irá se agravar no futuro, além da forma como abordamos o amor; não sei se foi essa a ideia que Jonze quis nos passar, mas fica claro a esperança que nós encontramos no vazio, seja num jogo de video game, na internet, ou numa voz de alguém de quem não podemos ver nem tocar.

Alphaville, un Étrange Aventure de Lemmy Caution é um filme de Godard de 1965, que mistura ficção científica e noir. Lemmy Caution (Eddie Constantine) que não nos é apresentado como Lemmy Caution, mas Ivan Johnson (que se diz jornalista da Figaro-Pravda), é uma espécie de espião que vem das Terras Altas, outra galáxia. As galáxias entram em guerra, o que nos faz remeter a Segunda Guerra Mundial, onde a França esteve e perdeu, de certa forma. No filme, a personagem de Anna Karina, Natacha von Braun, diz que não conhece certas palavras, uma delas é “por que”, pois elas são extintas, provavelmente para não incitar revoluções ou indagações contrárias ao sistema vigente. Ora narrado em off por Lemmy, ora pelo Alpha 60, um sistema que controla toda a cidade de Alphaville e julga todos aqueles que se metem em algum problema, a voz do Alpha 60 é uma coisa bem bizarra, grave e falada como um arroto macabro. O filme se passa no futuro, mas não apresenta efeitos especiais, nem coisas além, pelo contrário, rodado na França, com carros e armas da época; Alphaville também aposta em muitas internas, ora em quartos de hotel, ou subindo e descendo escadas, e as cenas se passam geralmente pela parte da noite; há também mensagens visuais como as fórmulas E = mc² e E = hf. É um filme de Godard que eu não colocaria entre os essenciais, embora saiba que ele é bastante conceituado.

Jules et Jim (1962) recebe como subtítulo “uma mulher para dois”, um pequeno spoiler do que o filme trata. Dirigido por François Truffaut, Jules et Jim é um dos primeiros filmes do diretor francês, e mostra uma das peculiaridades de Truffaut que é poder misturar o clássico e moderno do cinema numa obra só; o uso de fade-out e ­fade-in é uma das coisas que remete o cinema clássico, com mais uso do primeiro do que do segundo, por estar cronologicamente na Nouvelle Vague, o filme é classificado perante tal movimento; a fotografia é de Raoul Coutard, que trabalhou com Godard em Acossado, e o trabalho de câmera de Truffaut é bem versátil e fluído, operando em guinadas de um rosto para o outro, há também o uso de freeze frames em expressões de Catherine, o uso dessa técnica já tinha sido usada antes por Truffaut, no final de Os Incompreendidos (1959), cena imortalizada entre Antoine Doinel, a praia e a liberdade. O tema central do filme é o amor, o amor entre três pessoas: Jules, Jim e Catherine; e a questão de triângulos (nem sempre amorosos) é algo meio recorrente na Nouvelle Vague, é só lembrar, por exemplo, de Bande à Part (1964), A Colecionadora (1967), Uma Mulher é uma Mulher (1961); uma cena de Jules et Jim que deixa evidente o relacionamento entre os três e é feita de forma genial é quando Truffaut pega de fora três janelas de uma casa, a primeira se abre e é Catherine chamando por Jules, perguntando se ele acordou, ele abre a janela ao lado e diz que sim, então ela pergunta se Jim acordou, e ele abre a janela de cima afirmando que sim também; outra cena de destaque é quando os três, logo no começo da amizade, apostam uma corrida, e Catherine vence. A trama se desenvolve com o relacionamento dos dois, de uma forma bem aberta; a princípio, Catherine se casa com Jules e eles têm uma filha, Sabine; o filme pode ser divido antes e depois da guerra (Primeira Guerra Mundial), quando os dois homens são levados até ela, Jules para a Áustria, sua pátria, e Jim fica na França mesmo; a guerra acaba e ambos voltam para casa, Jim passa a morar com o casal, mas descobre que o relacionamento entre os dois já não é mais o mesmo. A história fica no vai-e-vem entre Catherine e Jim, uma vez que Jules concede sua mulher para o amigo, e a amizade entre os dois homens nunca é posta a prova, mas a relação deles com a mulher é sempre um confronto do filme. Uma das coisas que me faz questionar se ele entra ou não como filme da New Wave francesa é o fato de ele ser ambientado no começo do século XX, e não na década de 60, momento “atual” do movimento e dos diretores, embora tenha pitadas literárias aqui e acolá, sempre recorrentes no movimento, mas isso é o de menos, Jules et Jim é um grande filme e essencial na filmografia de Truffaut.

Dentro da Casa (2012) é um filme sobre ver. Um filme sobre ser voyeur e contar. Tenho medo de afirmar que o filme parece bem mais um livro do que um filme. É muito bem contado, devido a um trabalho minucioso de roteiro, além de ser/conter uma história dentro uma história; vendo as informações do filme no site do IMDb, descobri que a história em si é uma peça, de Juan Mayorga, transformado em roteiro por François Ozon, o próprio diretor do filme. A trama gira em torno de Germain, professor do Liceu Gustave Flaubert (primeira referência literária a um escritor) e seu aluno Claude, cujos dotes literários despertam a atenção do professor. O foco do filme não fica apenas nos dois, mas o que Claude conta para Germain através de suas redações, e estas contam a vida dos Raphas. A visão de Claude para com o mundo é ao mesmo tempo ingênua e ambiciosa, de uma forma que a princípio não é nociva, mas que vai ficando perigosa. O título indica exatamente sobre o que é o filme, estar dentro da casa de Rapha, seu amigo de escola, o que é uma das maiores ambições de Claude, e como ele descreve as situações é como o filme nos mantém dentro da história, sempre querendo mais, e essa sensação também é compartilhada por Germain, que incentiva o garoto a continuar escrevendo; se envolvendo com a família, Claude nutre esperanças que beiram bem mais as necessidades pessoais, do que as literárias. O filme é pautado bem mais na construção da narrativa e como, no fim, todos as personagens podem se encaixar, além da dificuldade irônica de achar um fim para si. A direção é mediana, mas algo incrível acontece quando há uma quebra espacial da narrativa e as personagens interagem entre si mesmo não podendo estar onde estão; como é contado na maior parte, o filme tem em vários momentos narrações em off e um apelo subjetivo. Dentro da Casa é cheio de uso literário, tanto de escritores e livros como de como escrever uma história, talvez seja uma dica ou pista metalinguística do diretor de como escrever histórias também, ou como fazer filmes, de como manter o expectador sentado e querendo mais.

Os Caçadores de Obras-Primas (2014) é um filme fraco. Dirigido e co-escrito por George Clooney, é também atuado por ele, ao lado de grandes atores, como Matt Damon, John Goodman, e Bill Murray, ainda tem a Cate Blanchet, mas o grande elenco não promete muita coisa. Baseado em fatos reais e ambientado na Europa da Segunda Guerra Mundial, o filme pode ser adivinhado pelo seu título: um grupo de homens que tentam recuperar obras de arte roubadas pelo Führer. O filme tem cenas rápidas e seu ritmo é de certa forma acelerado, começa com a personagem de Clooney apresentando o problema do sumiço das obras de arte, e tendo que recrutar homens para ajuda-lo; ele vai atrás de cada um, cada um tem uma especialidade, e as cenas vão evoluindo com a apresentação de cada um. Eles se dividem pela Europa, passando pela França, Bélgica, Alemanha, e no rastro dos alemães para interceptar os quadros e estátuas roubadas; Stokes (Clooney) comanda o grupo, Granger (Damon) é seu braço direito e fica na França, onde conhece Claire Simone, interpretada por Blanchet, que faz uma francesa e fala um inglês com “sotaque”. O fim do filme é previsível, e ele se constrói a partir daqueles pequenos dramas que são feitos para tocar o coração, como quando Clooney discursa para os seus homens tomar cuidado, e que suas vidas são mais importantes que as obras roubadas, mas que elas são muito importantes para humanidade, pois preservam a cultura, etc.; além disso, há passagens cômicas, que são desnecessárias, e tiram maior parte da seriedade do assunto tratado. O filme, por tratar de arte, deveria no mínimo uma fotografia bem elaborada, mas se esconde por trás de cenários escuros, iluminados por velas, dando um tom alaranjado, mas que não surpreende.

Pleasantville (1998) é um grande filme que mostra como o cinema pode operar entre o preto e branco e o colorido. Eu vejo o filme como uma homenagem ao cinema, a essa transição do preto e branco para o colorido, a introdução do Technicolor e toda uma mudança estética de como ver e perceber, que é o que o filme tenta passar além dos limites cinematográficos. Outro fator que me faz acreditar que Pleasantville é uma homenagem ao cinema é quando Gary Ross introduz na história duas homages, uma quase sempre presente e bem delineada, quando ele faz alusão a Cidadão Kane, um dos maiores filmes da história do cinema, com a personagem de Big Bob, o prefeito da cidade, com direito até a um Dutch angle; aliás, falando em Dutch angle é magistral como Ross apresenta os planos do filme, sempre variados, funcionando de uma forma bem agradável e despretensiosa. A outra homage é quando as personagens de David (Tobey Maguire) e Bill Johnson (Jeff Daniels) vão ser julgadas na prefeitura, é direta a referência de O Sol é para Todos (1962), filme que retrata a questão racial nos Estados Unidos na década de 50, mais ou menos, as personagens que ficam coloridas ficam separadas daquelas que ainda estão em preto e branco, as primeiras ficam no compartimento de cima, assim como em O Sol é para Todos, e os demais ficam embaixo. A questão da cor, além desse viés cinematográfico, também funciona como conscientização racial, uma luta contra o preconceito, os coloreds na sociedade americana eram os negros, marginalizados na sociedade, e o filme (mesmo que seja da década de 90) tenta reverter isso, de uma forma bem amena, mas não menos ideológica. A história começa de forma bem pueril, quando David e sua irmã, Jennifer (Reese Witherspoon) são transportados para o programa de televisão Pleasantville, que também é o nome da cidade, que é perfeita e só há felicidade, e nada que perturbe o sentido perfeito das coisas acontece, até que David e Jennifer aparecem. É interessante como literatura, música e pintura são incorporadas no filme, como se fossem partes de como o cinema é estruturado, em roteiro, trilha sonora, e fotografia; no caso da literatura, a questão da proibição não é sem querer, um dos livros que David lê para as pessoas é As Aventuras de Huckleberry Finn e O Apanhador no Campo de Centeio, livros que são banidos nos Estados Unidos, e Jennifer se interessa por D. H. Lawrence, escritor modernista geralmente rotulado como polêmico por tratar de assuntos como sexo e desejo de uma forma bem aberta; a música também é transicional, do jazz ao rock’n’roll. Uma análise melhor do filme pode ser lida aqui.

O Estrangeiro (1967) é um filme adaptado do romance homônimo do escritor francês Albert Camus, o qual já li e devo admitir que, pessoalmente, acho o filme melhor como filme, do que o livro como livro. Dirigido pelo diretor italiano Luchino Visconti, o filme conta a história de Meursault, vivido por Marcello Mastroianni, que retrata exatamente aquilo que a personagem é: indiferente, apática, incrédula. O primeiro conflito do filme é a morte da mãe de Meursault, depois a personagem vai ao tribunal acusado e julgado pela morte de um árabe, consequentemente é preso e executado. História simples e rápida, assim como o livro, que tem um pouco mais de cem páginas. Camus é geralmente associado ao existencialismo, embora não faça ideologias diretas e pregue isso; a história de Meursault pode ser a história de qualquer homem, ele é descrente, não acredita em Deus, algo que para a sociedade da época era inadmissível, a personagem também não aspira a nada, não tem ambições, algo que seu chefe desaprova completamente. Também não tem amor, quando Marie (Anna Karina) pergunta se ele a ama, ele responde friamente que não sabe, que não, e que isso não tem importância, assim como o matrimônio também não tem. Se formos entrar no critério de fidelidade, o qual não gosto, o filme é uma adaptação fiel ao texto, retratando de forma sincera o que ele passa e descreve, achei apenas que os voice-over poderiam ser mais explorados para dar mais significado ao apelo subjetivo da personagem, elevando seu tom confessional.

Filth (2013) foi um filme que comprei como o novo Trainspotting (1996) pelo fato de saber que é originalmente uma romance do autor escocês IrvineWelsh. Bom, o filme divide semelhanças com Trainspotting como a questão do sexo, das drogas e das alucinações, sendo que essas não são causadas pelas drogas necessariamente, mas por um passado que o filme tenta apresentar ao longo de seu curso, através de sua personagem, Bruce Robertson, vulgo Robbo, que lida com os já citados problemas e mais sua herança familiar e matrimonial. Em alguns instantes, a direção de Jon S. Baid lembra a direção de Guy Ritchie, por causa do seu ritmo talvez, só que sem tantos vícios; a narrativa segue de forma acelerada, mostrando o dia-a-dia da profissão de Bruce (James McAvoy), que trabalha como um policial, mais especificamente como um Detective Sergeant; ele é quase carismático, pelo seu modo de lidar com as coisas e viver, embora esconda algo que o filme revela de forma quase surpreendente. Same rules apply.

Sound City (2013) é um filme que sou suspeito demais para comentar. Dirigido por Dave Grohl, um dos músicos da atualidade que mais admiro, o documentário conta a história do lendário estúdio de Van Nuys, Califórnia, Sound City, onde grandes bandas passaram, desde o Fleetwood Mac lá na década de 70, bandas alternativas da década de 80, a importância da passagem do Nirvana no lugar e o reflexo de tudo isso hoje em dia. Dave Grohl mostra de forma bem informativa e sentimental o que aconteceu no Sound City, com várias pessoas que trabalharam e trabalham nele dando depoimentos, assim como alguns músicos que passaram por ele e o respeitam bastante. O curioso console Neve, que faz toda a diferença do som do estúdio, o papel dos produtores, as idas e vindas, o combate contra a música digital, etc. Sound City é um belo recorte de um estúdio que contribuiu de forma significativa para o rock, além de aproveitar parte de sua duração para a performance de Grohl com ícones do rock, desde Stevie Nicks do Fleetwood Mac, passando por outros dois grandes gênios atuais como Josh Homme e Trent Reznor e finalizando com Grohl, Krist Novoselic, Pat Smear e o grande beatle Paul McCartney, compondo e gravando ao vivo.

Veludo Azul (1986) é o típico filme de David Lynch, em que ele consegue imprimir suas marcas como um auteur. Lumberton, a cidadezinha-cenário onde a história se passa, traz várias características de cidade americana, com as casas sempre bem cuidadas, jardins, cercas brancas, Lynch insere nas cenas iniciais um sorridente bombeiro no carro vermelho da profissão, crianças atravessando a rua na faixa de pedestres, auxiliadas por um guarda de trânsito, e outra marca de Lynch: um zoom excessivo na grama após a queda do senhor que estava molhando o jardim de sua casa. Veludo Azul é um filme de mistério, que segue as descobertas de Jeffrey Beaumont (Kyle MacLachlan, favorito de Lynch) a partir de uma orelha achada e o desdobramento dessa ação. Jeffrey decide procurar o detetive Williams, que tem uma filha, Sandy (Laura Dern, favorita de Lynch), que ajuda Jeffrey a ir mais fundo nesse grande mistério, mas tem medo por ambos. O filme se torna mais atraente quando somos apresentados a Dorothy Vallens (Isabella Rossellini), cuja personagem pode ter envolvimento com a orelha encontrada, e Frank Booth (Dennis Hopper), um homem tido como perigoso e um tanto sádico; Isabella Rossellini dá o tom melancólico e poético ao filme com sua personagem, que canta a música Blue Velvet e é quase uma femme fatale, seu envolvimento com Jeffrey é um catalisador no filme; já a atuação de Dennis Hopper é o lado macabro e psicótico do filme, sempre gritando e falando fuck em praticamente todas suas falas, Hopper é um antagonista bem diferenciado e amedrontador; Jack Nance (de Eraserhead) também dá uma ponta no filme. A trilha sonora do filme é executada em maestria, sempre admiro quando filmes têm um compositor, e nesse caso quem leva os créditos é Angelo Badalamenti; a direção de Lynch (que também escreveu o roteiro do filme) é sempre peculiar, além dos closes extremos, os que mais chamam a atenção às vezes são os nos rostos das personagens, é impressionante também como sempre vemos um bar/casa de show nos filmes de Lynch e aquela faixa amarela de separação em estradas de noite/madrugada. Esse mundo criado por Lynch é sombrio e absurdo (diria até mesmo exagerado), mas não chega a ser surreal, não no sentido estrito da definição, o diretor consegue desenvolver a história de forma explicativa e resolve o mistério quando há o confronto no filme; há passagens em que sonhos são recorrentes, como os das personagens de Jeffrey e Sandy; há também, em alguns momentos, um certo tom cômico no filme, como a preferência de Jeffrey por Heineken, dentre outros.

Godard e Truffaut e a Nouvelle Vague (2010) é um documentário muito bom para quem quer ficar a par do que aconteceu no cinema francês na década de 60. A amizade entre dois grandes cinéfilos, de um lado Truffaut, do outro Godard, vidas que divergem por causa de infâncias diferentes, mas que convergem pelo amor ao cinema. Tudo bem, o documentário foca especialmente em Godard e Truffaut, assim como o título nos avisa previamente, mas não vejo isso como um defeito, mas como um foco importante para abordar o tema da Nouvelle Vague: ambos os diretores eram amigos, escreviam para a Cahiers du Cinema, por mais que fossem amigos também de Chabrol, Rivette e Rohmer, e por mais que esses diretores também tivesse sido críticos de cinema na polêmica Cahiers. Godard e Truffaut seguiram um caminho de destaque, Truffaut premiado em Cannes por Os Incompreendidos, Jean-Pierre Léaud foi ovacionado, e é a partir desse instante que Godard se sente pra trás e procura loucamente alguém para produzir seu filme, que seria Acossado, que mais tarde é destaque no prêmio Jean Vigo. O documentário apresenta os diretores de forma bem convencional, desde a infância até o desmantelamento da amizade entre Godard e Truffaut, passando pelos filmes que fizeram e seu impacto ou a falta dele, o renascimento do cinema francês com o movimento da Nouvelle Vague e sua consequente crise, o compartilhamento de Jean-Pierre Léaud em seus filmes, etc. Bem narrado e com um material visual muito bem acurado, desde fotos a edições da revista da Cahiers du Cinema, o documentário é um bom passo para aqueles que querem conhecer um dos maiores movimentos e diretores de cinema.

Derrida é um dos filósofos que eu mais me interessei nos últimos anos, majoritariamente por causa de uma curiosidade advinda da desconstrução, que pode ser tachada, a grosso modo, como um método de Derrida. O documentário Derrida (2002) feito quando o filósofo ainda estava vivo, mostra seu dia-a-dia e entrevistas que clareiam seu posicionamento sobre certas coisas, como a autobiografia, o amor (que ele confunde na hora com morte, l’amour/la mort), o perdão, sua infância e o antissemitismo, mas muitas coisas pessoais Derrida não dá um posicionamento, até mesmo na questão do amor, ele afirma não poder falar de modo geral, ele precisaria de uma pergunta para poder discorrer sobre, assim como não pode falar de coisas íntimas, como o relacionamento com a sua mulher, etc. O comportamento de Derrida lembra muito o que ele falou sobre o que Heidegger disse sobre Aristóteles, que não importava as anedotas de vida do filósofo, os fatos, somente que ele havia “nascido, pensado, e morrido”, e isso é o que Derrida tenta nos passar de certa forma, falando malmente também sobre desconstrução, o que fez dele um autor conhecido e renomado no mundo inteiro. O documentário não faz um apanhado histórico profundo do autor, tanto que ele só desenvolve suas ideias e seus sentimentos sobre certas coisas de modo superficial, até porque ele não se sente a vontade em frente a uma câmera; o modo de dirigir é meio amador, o modo como a câmera opera às vezes é deselegante, com zoom-ins executados de forma apressada e tremida. O documentário poderia ser bem mais, uma vez que Derrida é um filósofo que tem bastantes coisas para se explorar, mas é significativo o modo como é capturado certos momentos na vida do autor, como em palestras e em sua casa, onde ele parece bem mais a vontade do que em entrevistas convencionais.

A Religiosa (2013) não é um filme sobre religião. É bem mais sobre ter fé na vida, perseverança, ter os sentimentos passados por cima. Também não é um filme contra a religião, que fique claro. Narrado a partir das memórias de Suzanne Simonin, sobre suas agruras no convento, o filme é um retrato de época, sempre muito alvo, devido ao ambiente dos conventos, também varia entre o azul e o preto, e o vermelho. Suzanne é mandada para o convento contra sua vontade, e lá, apesar de seu enfraquecimento físico, sua conduta religiosa nunca é amainada, talvez ela até aprenda a ser mais forte e mais crente. A atuação de Paulinne Ettiene é primordial, com seu olhar inocente, sua pele branca, e seus olhos sempre serenos, a sua personagem é de uma pureza indubitável, que é levada à prova até mesmo em atos libidinosos com uma Madre Superiora um tanto acolhedora, vivida por Isabelle Huppert. O filme é uma adaptação do romance de Denis Diderot, e uma versão do prévio A Religiosa (1966), de Jacques Rivette, onde Suzanne é vivida por Anna Karina.

Ridley Scott é um diretor de altos e baixos, e talvez American Gangster (2007) esteja no meio dessa dicotomia, tendendo para o lado dos altos. Apesar disso, Scott é um diretor que sempre vai me ganhar por causa de Gladiador e Alien. Essa é a segunda vez que vejo American Gangster, lembro que a primeira vez que vi foi na época em que o filme saiu mais ou menos, época em que eu costumava comprar DVDs piratas, e ironicamente eu revi o filme dessa vez através de uma cópia pirata também. Da primeira vez que o vi, a impressão inicial que tive foi “cara, que filme longo”, não lembro exatamente se foi a versão que foi pro cinema, de duas horas e meia, ou a versão estendida, mas vi a estendida dessa vez, que vai até três horas. American Gangster é baseado em fatos reais, e diferentemente da maior parte dos filmes de gangsteres, é um filme bem discreto, assim como Frank Lucas, a personagem de Denzel Washington, que controla o maior monopólio de drogas (heroína) da costa leste norte-americana; sua narrativa é desenvolvida desde a entrada de Frank como chefe no negócio até o seu fim, que ocorre de forma bem incomum, bem discreta, como eu já havia colocado. Aliás, o filme em si é discreto, com boas, mas brandas atuações de Denzel Washington e Russel Crowe, que faz o policial honesto, Richie Roberts, conhecido por não ter ficado com um milhão de dólares encontrados em uma de suas batidas quotidianas. As personagens de Frank e Ritchie operam de formas contrárias, o primeiro como bad guy, e o segundo como bom moço, no jeito mais clássico americano de ser, no entanto, ambos compartilham algo em que comum, tanto que viram amigos no final, Ritchie vira advogado de Frank. O filme apresenta um ambiente diferenciado da máfia, geralmente comum entre italianos, dessa vez quem comanda o negócio é um negro, sendo que um dos superiores de Ritchie acha que é uma piada quando descobre as circunstâncias da operação. Frank era o braço direito de Bumpy, assumindo que este o ensinou tudo que ele sabia, tanto como homem, tanto como businessman; e assim como os italianos, Frank assumiu para vida uma conduta de valores, incluindo a honra entre os familiares, o negócio, a lealdade, etc.; seguindo essa conduta, Frank recruta toda sua família para o negócio, seus irmãos e seus inúmeros primos, tira sua mãe da Carolina do Norte, e a traz para Nova York, lhe dando uma mansão. A personagem de Ritchie (Crowe) é tida como louca, seu comportamento é energético, não tanto como em Los Angeles — Cidade Proibida (1997), onde ele faz um policial bem mais ativo, que chega a ser truculento em sua maior parte; Ritchie comanda a investigação e chega a Frank de uma forma bem confiante. American Gangster se passa nos 70, e em vários momentos do filme vemos na TV reportagens sobre a guerra do Vietnam e como os soldados norte-americanos estão tendo problemas com drogas, a princípio maconha, depois ópio e heroína, e é em Bangkok que Frank começa seu negócio, importando heroína com cem por cento de pureza, droga que ele comercializa como blue magic; uma das reportagens, por exemplo, mostra o presidente Nixon, informando a população que um dos grandes problemas da América é o uso de drogas. Uma das cenas que me chamou atenção foi quando Ritchie estava em uma perseguição e tenta parar um taxista a fim de ter um carro para continuar o encalço, a cena acontece numa daquelas ruas que em cima têm metrô passando, sustentados por vigas de metal; essa cena, em especial, lembra bastante a perseguição de The French Connection (1971), só que menos frenética, e não tão fenomenal. No mais, o elenco traz Chiwetel Ejiofor, que fez recentemente 12 Anos de Escravidão (2013), como um dos irmãos de Frank; Josh Broslin como Trupo, um detetive corrupto que vive a extorquir Frank; Cuba Gooding Jr. também aparece, fazendo um dos mafiosos ao redor de Frank.

Atirem no Pianista (1960) é o segundo filme de François Truffaut, ironicamente adaptado do romance Down There de David Goodis; ironicamente pois Truffaut era um dos críticos que abordava a questão da literatura e do cinema, como no famoso ensaio Une certaine tendance du cinéma français (Uma certa tendência do cinema francês), lançado em 1954, onde ele apresenta a ideia e o conceito da política dos autores (la politique des Auteurs). O então crítico francês entra na área das adaptações, e acredita que existam “cenas filmáveis e cenas não filmáveis, e ao invés de omitir as segundas (como era feito há pouco tempo) é necessário inventar cenas equivalentes, ou seja, cenas que o autor do romance teria escrito para o cinema”. É importante notar também que Atirem no Pianista é um romance de um escritor norte-americano, carregado de tons do gênero noir, que também está presente no cinema, sendo um dos gêneros de mais destaque nos Estados Unidos nas décadas de 40 e 50. Truffaut, como um grande fã do cinema americano, presta, de certa forma, uma homenagem a ele e ao gênero. O filme mostra Charlie Kohler (cujo nome de verdade é Edouard Saroyan) e seu irmão Chico, acossados por uma dupla de bandidos; Chico pede ajuda a Edouard, que trabalha como pianista num bar, mas que fora muito bem sucedido tocando em concertos. Charlie/Edouard é vivido por Charles Aznavour, que é aclamado em Uma Mulher é uma Mulher (1962) quando a personagem de Anna Karina, Angela, diz para sua amiga Suzanne que viu o filme, e que “Aznavour está fabuloso”, as duas também fazem uma mímica indicando que o filme é Atirem no Pianista. Com várias cenas externas e gravadas de noite, o filme tem um tom escuro, consequentemente, geralmente dentro ou ao redor de carros.

Outra adaptação de Truffaut para o cinema é o romance Fahrenheit 451 (1966), do escritor norte-americano Ray Bradbury. O filme já começa de forma bem legal, com os créditos narrados, e não escritos, como é sempre de costume, ao final do filme o expectador vai perceber o porquê. Fahrenheit 451 é o primeiro e único filme inglês de Truffaut, o qual ele também contribuiu no roteiro; a história de Fahrenheit 451 se passa no futuro, e estranhamente a função dos bombeiros não é mais apagar incêndios, mas queimar livros, pois estes são responsáveis por coisas terríveis nas pessoas; vários clássicos literários são queimados no decorrer do filme, inclusive uma edição da Cahiers du Cinema que traz na capa Jean Serberg, representando Acossado, de Godard. Protagonizado por Oskar Werner, que viveu o Jules de Jules et Jim, a personagem de Montag vive um bombeiro que exerce sua profissão com convicção e sem questionamentos, até um dia ter uma breve conversa com Clarisse (Julie Christie, que também faz a personagem Linda, esposa de Montag), que é uma leitora fiel não-confessa; o filme segue um dilema moral de Montag entre ler e não ler livros e descobrir como eles atingem as pessoas. A fotografia, em Technicolor, é bem vívida e dá destaque para cor vermelha, cor da corporação de bombeiros, do carro e dos símbolos, que sempre representa ou uma ameaça ou algum perigo, já que sua função é sempre destruir. A trama apresenta um importante conflito entre a literatura e a TV, que estava em voga nas décadas de 50 e 60, e até mesmo nos dias de hoje, por que não? O começo do filme mostra, numa variação de cores, várias antenas de TV sobre os telhados das casas, já indicando um indício do quê o filme abordará; Linda é viciada em TV e nos programas que passam nela, enquanto Montag apenas lê um jornal com vários quadrinhos, contendo apenas desenhos e nada escrito. A trilha sonora é orquestrada magistralmente pelo consagrado Bernard Herrmann, conhecido por Psicose, sua música é forte e carregada de violinos, com altos e baixos, sempre dando um clima de tensão nas cenas.

Filhos da Esperança (2006) pode ser lido aqui.

Gravidade (2013) é um filme assustador. É um filme onde o silêncio e a improbabilidade tomam conta das coisas. Mas, apesar disso, é um filme onde as imagens predominam, através de um trabalho de fotografia primoroso de Emmanuel Lubezki. Por partes, do menor para o maior, Gravidade traz um roteiro simples, com um elenco minúsculo, ele conta a história da Dra. Ryan Stone (Sandra Bullock) numa missão espacial, onde é acompanhada por Matt Kowalski (George Clooney) e mais algumas pessoas que não tem grande relevância para a trama; assim, o filme gira em torno praticamente apenas das figuras de Bullock e Clooney, sendo que a primeira toma conta da ação e do drama a maior parte do filme, e o conflito é instalado nos primeiros minutos. As atuações de Bullock e Clooney são bem convincentes e amistosas, onde um tenta ajudar o outro a todo instante, desde conversas triviais para passar o tempo, até questões de vida e morte; a personagem de Bullock, Ryan Stone, passa por um verdadeiro momento de provação, de desafio, em que a superação parece improvável. Acostumada com a vida em laboratório, Stone passou seis meses em treinamento para a missão que viria realizar, e mais tarde ela descobriria detestar o espaço. A direção de Cuarón é mais uma vez espetacular, os planos-sequências parecem mais profundos e mais fluídos uma vez que são executados no espaço, quase parecem infinitos, como se a imensidão do universo sempre nos levasse para longe; a câmera de Cuarón nos mostra tudo, desde o desespero da personagem de Bullock por fora, como sua visão do espaço de dentro do capacete, e sua forte respiração sempre translúcida. Cuarón utiliza câmera de mão e várias guinadas de direção, além de também usar vários loops, que podem deixar o expectador mais apreensivo, num misto de ação e suspense que se passa no espaço; e falando em espaço, não poderiam faltar efeitos especiais, que em nenhum momento são exagerados ou absurdos, mas sempre condensando o que realmente venha a ser uma missão espacial, de forma sincera e verossímil. Quando as imagens predominam, ou seja, em praticamente todo o filme, é que vemos o potencial de Lubezki na cinematografia. O filme tem vários planos lindos, talvez o mais belo seja aquele em que a personagem de Bullock gira no ar em posição fetal.

Melancolia (2011) e Anticristo (2009) são dois dos três filmes da Trilogia da Depressão, do diretor dinamarquês Lars von Trier, sendo que Ninfomaníaca, lançado recentemente, completa a trilogia. Melancolia foi o primeiro filme de Lars von Trier que vi, e tive certeza de que aquele era um filme diferenciado, por causa do ritmo, por causa dos movimentos de câmera, ora indelicados, ora espontâneos, a história não-convencional sobre fim do mundo. Depois, procurei outros filmes do diretor para conhecer melhor, um deles foi Anticristo, e pude constatar a natureza e peculiaridade do diretor, que é sem dúvida um dos maiores auteurs do nosso tempo. Ambos os filmes, e até mesmo Ninfomaníaca, são filmes que exploram os atores ao extremo, talvez algo de von Trier comparado ao sadismo que ele deva ter: em Melancolia, que é o segundo da trilogia, o filme é divido em duas partes, a primeira se chama Justine (Kirsten Dunst), a segunda, Claire (Charlotte Gainsbourg), duas irmãs que se unem quando o cosmos parece querer separá-las. Em Anticristo, que apesar de ser o primeiro, não tem conexão direta, como história, nem com o segundo, nem com o terceiro, e vice-versa, von Trier explora bem mais as personagens de Gainsbourg e Willem Dafoe; Anticristo tem um prólogo incrivelmente belo e perturbador, com uma fotografia de fazer brilhar os olhos, e uma câmera lenta de acelerar e acalmar o coração, além da bela música que toca no fundo, o epílogo também retoma as características do prólogo, mas com um tom de final, obviamente, depois de uma história perturbadora, divida em quatro capítulos. Ambos os filmes foram escritos por Lars von Trier, deixando bem claro as marcas do diretor, que foram completadas pela sua direção indistinta, advinda do antigo manifesto do Dogma 95; Anticristo e Melancolia apresentam efeitos especiais, os quais quebram com uma das regras do movimento, no entanto, eles nunca são exagerados ou gratuitos, em Melancolia, eles são necessários, ou para mostrar o planeta que está se aproximando da Terra, ou para mostrar os momentos-chave da narrativa que o filme tem, principalmente no começo e no fim. Talvez Anticristo tenha menos efeitos especiais, mas explora bem mais suas personagens, tomadas pelo sofrimento, pelo luto, pelos impulsos sexuais e pela loucura.

O RoboCop (2014) de José Padilha é um bom filme, se as pessoas que o verem esquecerem do RoboCop de Verhoeven. A frase de merchandising poderia ser: RoboCop: o diretor agora é outro. A direção de Padilha é boa, a linguagem de câmera também é um destaque, o ângulo contra-plongée que Padilha usa para mostrar Murphy (que, diferentemente do RoboCop de 1987, é quase sempre chamado de Alex, seu primeiro nome), seu rosto e suas mãos, uma humana, e outra máquina.; e já quase no fim, um plongée absoluto para mostrar Murphy caído, sua mulher e seu filho o abraçando, e Sellars morto (Michael Keaton). Há também várias visões panorâmicas de cima, com o uso de helicóptero para tal, além de um uso massivo de tecnologia, os efeitos especiais dominam o filme, mas não de forma desproporcional, desde o novo “uniforme” do RoboCop (que agora é preto) às cenas de ação que demandam a tecnologia, até o apelo especial a personagem do Doutor Dennett Norton, feita pelo incrível Gary Oldman. Uma das coisas que incomodam no filme, para quem é fã da versão do diretor holandês, Paul Verhoeven, é o novo roteiro: a história contada é bem diferente daquela de 1987. A clássica cena de execução de Murphy onde ele perde a mão não existe mais, ao invés disso, Alex Murphy vira o RoboCop depois de uma explosão do seu carro, uma emboscada; há um contato maior de Murphy, ou melhor, Alex, com sua família, que é sua mulher e seu filho, e um dos conflitos do filme é a relação deles ou a falta dela. No mais, há a mudança de certas personagens, o chefe de Alex é uma mulher e seu parceiro é um parceiro, não uma parceira. Os inimigos também não são caçados daquela forma vingativa como é no primeiro, muito pelo contrário, Alex abate facilmente o inimigo número um, depois parte para algo mais complexo e mais geral, um inimigo mais articulado, vira mais algo político, e mais moral; a cidade de Detroit nesse novo filme parece menos violenta também, e é dado um destaque menor para ela. O conflito entre homem e máquina, escolha, livre arbítrio, consciência, é cada vez mais forte e leva o filme a outro patamar. Se o RoboCop de Verhoeven se tornou uma espécie de cult bem sucedido com várias tosquices, o de Padilha investe pesado em tecnologia e boas atuações, o que é aquela personagem de Samuel L. Jackson, por exemplo? O ator que faz o novo RoboCop é tão sem graça quanto Peter Weller, o primeiro Murphy; já José Padilha, diretor brasileiro, vem de dois grandes filmes, que são Tropa de Elite, espero que ele não se perca nos maneirismos e vícios de Hollywood.

Dallas Buyers Club é um filme incrível em atuações, em primeiro lugar. Ponto. Você pega o Matthew McConaughey em Killer Joe, Mud, e O Lobo de Wall Street, muito bom, mas agora ele se consagra em Dallas Buyers Club. Um filme que traz um grande drama a partir da AIDS parece algo bem fácil de dar certo e comover, é só lembrar de Filadélfia, não querendo desmerecê-lo, é um bom filme, mas aqui a carga emotiva e atuante está em McConaughey, que eu nem me dei o trabalho que pesquisar quantos quilos ele perdeu para entrar na vida de Ron Woodroof. O filme é um retrato de uma das infelicidades dos anos 80 e do mundo, em geral, a AIDS: Woodroof descobre ser soro positivo e é dado apenas 30 dias de vida pelos médicos. Bebidas, drogas, prostitutas, uma tosse desgraçada, doenças, homofobia, tráfico (ou negócio) e o lado humano à flor da pele: é o que faz Dallas Buyers Club. Pessoalmente, desconhecia o trabalho do diretor canadense Jean-Marc Vallée, mas achei incrível o modo como Vallée nos trouxe a história de Woodroof, a história de Rayon (Jared Leto, que também está excelente, não tem como não fazer conexão com a personagem que ele encarnou em Réquiem para um Sonho), e de muitos outros, que lutam contra a AIDS. Das atuações, o filme é impecável, do começo ao fim, mas duas cenas em particular chamam a atenção: quando Woodroof e Rayon, em momentos distintos do filme, oram e rogam pela vida, é um apelo seco e amargo. A perda de audição e o zumbido que Woodroof sente é perturbador, assim como vê-lo magro daquele jeito, esquelético, frágil, além da vida desregrada que ele leva.

Dogville (2003) é o primeiro filme de outra trilogia de Lars von Trier, Europa. De longe, deve ser um dos filmes mais interessantes e mais diferentes, em certa escala, do diretor dinamarquês. Dogville conta uma história bem simples: Grace (Nicole Kidman) é uma moça que está fugindo, e acaba entrando na cidade de Dogville, disparos são ouvidos por Tom (Paul Bettany), um dos moradores da cidade, e o porta-voz dela. Tom abriga a moça e com um plebiscito, decidindo se ela deva ficar ou não, já que é procurada pela polícia, Grace consegue estadia na cidadezinha. A história é simples, mas o filme se estende por quase três horas, divido em nove capítulos e um prólogo, von Trier consegue desenvolver e explorar a personagem de Kidman de uma forma surpreendente, com cada habitante da cidade. O ponto forte do filme é a sua mise en scène, como o diretor aborda o espaço, sem paredes, o cenário é transparente, assim como suas personagens parecem ser também, a princípio; o filme começa de forma extraordinária, com um ângulo zenital, que mostra todo o cenário, como se fosse um desenho no chão, que é como realmente é. O elenco também está ótimo, além de Kidman e Bettany, Lars von Trier, como de costume, escalou o ator sueco Stellan Skarsgård que faz o rude Chuck, a também sueca Harriet Anderson (Mônica e o Desejo) como Gloria, mulher de Chuck, além Philip Baker Hall como o pai de Tom, Chloë Sevigny, e John Hurt que, apesar de não ser uma personagem, narra a história.

Abril Despedaçado (2001), do brasileiro Walter Salles, é um filme poético sobre vingança, ambientado no sertão nordestino. Basicamente é sobre a família Breve, que tem seus filhos marcados por disputas de honra e costume da região; o primeiro a morrer é Inácio (Caio Junqueira), que é lembrado num sonho por Menino (Ravi Ramos Lacerda), ou Pacu, como é batizado mais tarde; o expectador é avisado que a partir desse momento, assim que o sangue vermelho da camisa ficar amarelo é hora do acerto de contas. O sangue fica amarelo, assim como a lua muda, e nesses espaços de tempo é que a narrativa evolui com uma mistura das já citadas questões de honra, costume, respeito, tradição, percalços do sertão, pobreza, o imaginário infantil, narrativa oral, circo, entre outras, são as coisas que colorem o filme, além do vermelho e do amarelo do sangue. O filme ainda conta com os atores Rodrigo Santoro, que faz Tonho, irmão de Pacu, e Wagner Moura, como um dos vingadores da família rival. Walter Salles nos conta essa história através de uma beleza paisagística e um uso incrível de planos e ângulos de câmera.

Diários de Motocicleta (2004), também sob a tutela de Walter Salles, conta a aventura de Ernesto Guevara de la Sena, vulgo Fuser, depois Che Guevara, e Alberto Granado, dois argentinos que saem de moto cruzando a América Latina. O filme às vezes se confunde com documentário, e isso só acresce na sua narrativa, que fica mais verossímil e mais tocante. Os dois amigos, um quase formado em medicina, o outro, um bioquímico, dividem vários gostos e ideias, e veem e sofrem na pele as agruras do povo latino americano. Fuser (Gael García Bernal) mais tarde se torna Che Guevara, influente líder político que lutou na Revolução Cubana, Diários de Motocicleta mostra a semente plantada e criada, no seu estado inicial, pronta para disseminar a luta e a esperança. O filme tem vários momentos descontraídos, quando os dois amigos brigam e caem da moto, ou quando (não) tem aventuras amorosas. Ambos são solidários, ou por exigência da profissão, ou por índole, é o que o filme nos mostra; Ernesto e Alberto mesmo seguindo a mesma trilha, descobrem e seguem suas vocações de forma diferente.

Belém, 28 de fevereiro de 2014

M. B. Massias

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