Autobiografia de Seikichi Uehara 1

Motobu Naoki
Motobu-ryu Blog
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11 min readDec 3, 2023

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Seikichi Uehara

Traduzido por Lucas Barboza

Do livro “Bu no Mai” (Dança Marcial) por Seikichi Uehara, 1992.

Um menino que poderia estar em qualquer lugar

Nasci na vila de Oroku, no condado de Shimajiri, província de Okinawa (agora absorvida pela cidade de Naha) em 24 de março de 1904, sendo o quinto entre sete filhos. Meu pai, Kamado Uehara, era um fazendeiro e gerenciava os negócios da família na produção e venda de Shōyu e Miso (molho e pasta de soja). Ambos os negócios eram relativamente bem-sucedidos e minha família provavelmente pertencia à classe média alta de Okinawa naquela época. Quando ainda um menino, eu era um pouco travesso, mas era como qualquer outra criança.

Uma grande reviravolta se deu em minha vida quando eu estava na 6ª série do ensino fundamental. Até então, eu planejava estudar no ensino médio depois de me formar no ensino fundamental. Naquela época, o ensino médio ainda não era uma escolaridade obrigatória, então minha família precisava ter recursos para pagá-la. Como meus irmãos mais velhos também haviam se formado na Escola Agrícola e Florestal de Okinawa, estávamos financeiramente seguros e meus pais eram a favor de eu ingressar no ensino médio. No entanto, pouco antes de eu iniciar o ensino médio, o negócio de meu irmão faliu e a família quebrou financeiramente.

Para pagar as dívidas vendemos todos os nossos campos, como também a casa em que vivíamos. (Nossa casa era tão grande que nenhum comprador individual foi encontrado para ela, por isso ela foi comprada como uma “casa de aldeia” ou “estabelecimento público da aldeia.” A propósito, a casa permaneceu lá até após a 2ª Guerra Mundial). Como resultado, nossa família teve que morar em um depósito de molho de soja. Conseguimos evitar a venda das ferramentas que utilizávamos para produzir Shōyu e Miso, mas a família repentinamente caiu em pobreza e então precisei começar a trabalhar assim que terminei o ensino fundamental.

Desejo de Força

O meu trabalho era vender Shōyu e Miso (molho e pasta de soja). Eu ia passando de casa em casa, anotando pedidos e realizando entregas. Certo dia, enquanto corria de volta para casa após o trabalho, arrastando meu corpo já cansado, encontrei na rua um homem que parecia estar esfregando algum objeto sólido. Ele se virou de costas para mim e cobriu o objeto com seu corpo. Enquanto eu casualmente olhava para a cena, tive um vislumbre de um balde de madeira. Imediatamente o reconheci como sendo um balde para armazenar Shōyu e Miso. O balde tinha as iniciais do meu irmão escritas a lápis vermelho, “K.U. (Kantarō Uehara).” Em sua outra mão que parecia estar esfregando o balde, em verdade ela segurava uma pequena faca. O homem estava tentando furtar o balde raspando as iniciais do meu irmão. “Tornei-me tão pobre que não posso deixá-lo levar mais nada!” Este pensamento me veio à tona em fúria.

Essa fúria foi seguida pelas palavras: — “O que você está fazendo? Esse é o meu balde!” que saíram de minha boca como um grito. Mas o homem me ignorou. Gritei novamente, desta vez ainda mais alto. O homem então se virou e levantou-se, como se quisesse confirmar minhas palavras. Eu vagamente reconheci seu rosto. Ele era um homem da mesma ocupação que a minha, um homem de 17 ou 18 anos chamado N.M. Ele era famoso por saber “Karate (Tōdī)” e ser um homem grande e violento.

Eu estava prestes a gritar novamente. Mas antes que pudesse dizer uma ou duas palavras, senti um tremendo impacto em meu corpo. Não tenho ideia de quantas vezes fui arremessado ou quantas vezes fui atingido, mas quando eu acordei, estava deitado no chão. Tentei me levantar, mas todo o meu corpo doía e não pude fazer nada. Finalmente depois de algum tempo, levantei-me e fui para casa chorando. Lágrimas escorriam de meus olhos e não pude contê-las.

Olhando agora pro passado, penso que essas lágrimas não foram apenas sobre ele ter me espancando. Eu desejava ingressar no ensino médio mas de repente não pude ir. Eu repentinamente fui lançado nas profundezas da pobreza. Tive meu balde tomado à força e ainda fui espancado. Tudo o que eu fazia na minha vida havia mudado.

Em outras palavras, provavelmente eram lágrimas de remorso pelo meu destino. E por meio dessas lágrimas, comecei a ansiar por forças. Meu balde havia sido tomado e fui espancado. Eu me sentia miserável. Então acho que o significado dessas lágrimas era que eu desejava ser forte e mudar o meu destino. Esse desejo crescia cada vez mais forte a cada dia que se passava.

Encontrando um Mestre

Como me tornar mais forte? Eu realmente ponderei sobre isso. Fiquei então levemente interessado nas artes marciais e gradualmente comecei a desejar seriamente aprender artes marciais.

Naquele tempo, não existiam escolas de Karate e as pessoas chamavam as artes marciais de “Tī” ou “Tōdī”. Naquela época haviam muitos mestres e especialistas em Okinawa que mais tarde se tornariam famosos no continente japonês, o mundo do Karate em Okinawa era como uma coletânea de mestres de Karate. Além de mestres como Chōjun Miyagi, Gichin Funakoshi, Chōtoku Kiyan, Kenwa Mabuni e Chōyū Motobu, haviam muitos outros praticantes de Karate famosos e outros desconhecidos.

Decidi que aprenderia Karate, mas na realidade não foi assim tão simples. Naquela época, os mestres de Karate não ensinavam você a menos que você possuísse uma introdução de confiança. Aprender Karate, em poucas palavras, era muito mais difícil do que parece ser hoje.

Eu pensei e pensei, e então tive uma idéia. Descobri uma maneira de me tornar um discípulo, contudo agora precisava descobrir com quem aprenderia. Os professores de Karate eram todos mestres em seu ofício, então imediatamente pensei no Sr. M. (nota 1). Ele morava na área onde eu trabalhava como vendedor ambulante e suas habilidades eram bem conhecidas como uma das melhores em Okinawa.

Chegou então o dia de colocar minha idéia em prática. Naquela época havia um cinema chamado “Teikoku-kan” (Cinema Imperial) perto da Rua Higashimachi em Naha. Naquele dia, o Sr. M. havia parado em frente ao Teikoku-kan e reparava uma placa de cinema. Era agora ou nunca! Eu me joguei em suas costas, mas o Sr. M. pareceu ser pego completamente desprevenido, caindo e arranhando muito seus joelhos com isso.

Teikoku-kan

Quando o Sr. M. levantou-se, ele me repreendeu severamente, mas eu o implorei desesperadamente para que ele usasse isso como uma oportunidade para me ensinar as artes marciais. No final, o Sr. M. prometeu me ensinar artes marciais. Finalmente pude ser capaz de aprender as artes marciais que sempre almejei.

Nota 1: Kenwa Mabuni.

Encontro com Chōyū Motobu Sensei

Embora eu tenha sido aceito como discípulo do Sr. M, os resultados foram verdadeiramente desastrosos. Naquela época, os artistas marciais não possuíam um Dōjō e com isso a maioria praticava em seus próprios jardins, terrenos baldios, praias, etc. O local de treinamento do Sr. M. era o seu jardim. Despendi vários e vários dias limpando seu jardim esperando que ele me ensinasse as artes marciais, contudo mesmo após três meses de esforço não consegui que ele me ensinasse. Olhando agora de volta para o passado, penso que o Sr. M. talvez estivesse testando a minha motivação, mas visto que eu irrefreavelmente desejava ficar mais forte o mais rápido possível, comecei a me sentir um tanto quanto impaciente durante aqueles dias. Houve variadas vezes em que fui repreendido por copiar meus veteranos, ouvindo sermões como: — “Você é apenas uma criança, o que pensa que está reproduzindo?” Então quando eu estava prestes a completar o 4º mês nessa situação, decidi por fim deixar a casa do Sr. M. e começar a buscar por um mestre novamente.

Tive um fatídico encontro com Chōyū Motobu sensei em julho de 1916. As pessoas comumente o chamavam de “Motobu Umē” (Príncipe Motobu). Na ocasião, Chōyū Motobu sensei morava na cidade de Tsuji e eu estava vendendo minhas mercadorias como de costume pela região, procurando assim uma oportunidade de pedí-lo por mentoria. Naquela época existia um grande teatro conhecido como “Teatro Taishō” na cidade de Nishishin em Naha, ao qual me deparei com Chōyū Motobu sensei contemplando um letreiro ao longe. Minha abordagem fora a mesma que empreguei com o Sr. M. anteriormente, aguardei atenciosamente o momento em que o tráfego parou e me lancei rapidamente contra ele. No momento em que pensei que havia o acometido totalmente, senti uma dor inexplicável. Meu pulso havia sido contorcido por Chōyū Motobu sensei.

Teatro Taishō

“Não sei qual o motivo, mas não aprecio esse tipo de pegadinha” — disse ele finalmente soltando minha mão. Eu olhei para cima horrorizado, completamente perplexo com a torção empregada no meu pulso. Mas não havia raiva nos olhos de Chōyū Motobu sensei, ao invés disso, vi bondade. Motobu sensei então perguntou-me novamente: -”Por que você fez isso?”

Então o respondi da mesma maneira que me dirigi ao Sr. M. previamente. — “Ouvi dizer que Vossa Alteza é o artista marcial (Bushi) mais forte em toda Okinawa, então quis averiguar com meus próprios olhos.” Chōyū Motobu sensei pareceu surpreso com minha resposta e então disse: — “Você me testou?” Virando-se num ar bastante confiante. Eu imediatamente entendi o que ele queria dizer com aquele gesto: — “Venha e me ataque”. Ele deveria pensar que eu era completamente indigno de sua atenção. Para ser honesto, naquele momento eu imaginei que ele estava me subestimando. Creio que adquiri uma estranha confiança após ter conseguido empurrar o Sr. M. no chão na outra ocasião, então avancei contra as costas de Chōyū Motobu sensei o mais forte que eu pude, apenas para poder me vingar por ter torcido meu pulso.

Entretanto ele não se mexeu nem um centímetro se quer do chão. Em verdade, comecei a imaginar se ele tinha raízes crescendo à partir de seus pés. Chōyū Motobu sensei riu-se alegremente dizendo: — “O quê? Essa é a sua força?” Ele parecia não conseguir parar de rir. Mas estranhamente havia algo em sua risada que me fazia sentir-me à vontade. Foi o tipo de risada que me cativou.

Eu devo ter feito isso por uns cinco minutos. Eu já estava tão exausto que me sentei e, do fundo do meu coração, comecei a me sentir tão envergonhado que finalmente me prostei a chorar. Mas não eram lágrimas de frustração, mas sim de vergonha. Então, envolto em lágrimas, apelei a ele: — “Eu desejo ser tão forte quanto vossa alteza. Por favor, me ensine Tī.”

Chōyū Motobu sensei deve ter realmente notado algo incomum em meu comportamento. Ele me conduziu à sua residência na cidade de Tsuji e então me permitiu tornar-me seu discípulo.

Tornando-me discípulo de Chōyū Motobu Sensei

Olhando agora de volta para o passado, creio que Chōyū Motobu sensei deveria ter a impressão de que eu era um menino um tanto malcriado e atrevido, mas ao mesmo tempo, deve ter sentido que minha personalidade, físico e idade eram apropriados para que eu florescesse nas artes marciais sob sua orientação. Bom, em quaisquer dos casos, fui felizmente capaz de tornar-me um discípulo de Chōyū Motobu sensei.

Praticávamos artes marciais durante a manhã, tarde e noite, entre os intervalos das minhas vendas. Na parte da manhã praticávamos pelas proximidades da praia Wakasa e à tarde pelo cemitério Tsujibaru. Durante à noite eu observava meu mestre instruindo outros alunos, no entanto, o conteúdo do treinamento era resumido apenas em repetir socos e chutes, e eu apenas os fazia assim como meu mestre me solicitava.

Cemitério Tsujibaru

Devo ter praticado dessa maneira durante meio ano. Até que certo dia, enquanto praticava como de costume, meu mestre indagou-me se eu realmente desejava me tornar mais forte. Achei a súbita pergunta um tanto quanto estranha, mas respondi que sim. Então ele ficou um pouco pensativo por um momento e após algum instante, perguntou-me novamente: — “Então você está disposto à ouvir tudo o que eu disser?”

Foi nesse instante que finalmente compreendi o que meu mestre estava tentando me dizer. Ele estava me avaliando todo esse tempo para ver o quão forte era minha determinação. Em outras palavras, estava finalmente reconhecendo meu valor, por menor que fosse. Então respondi em voz alta. Meu mestre acenou com a cabeça em resposta. Aquele aceno foi um sinal de que meu treinamento em artes marciais estava prestes a começar pra valer.

Sobre Chōyū Motobu Sensei

Eu havia ouvido falar que Chōyū Motobu sensei pertencia à família real referida como Udun e que ele possuía também uma mansão em Shuri. No entanto ele estava morando na cidade de Tsuji quando me tornei seu discípulo. Ele possuía cerca de 60 anos de idade (Nota 1), media aproximadamente 1,58 m de altura e emanava uma apresentação respeitável. Ele sempre carregava um sorriso estampado em seu rosto e caminhava com uma postura ereta cheia de dignidade. As pessoas admiravam sua nobre presença e caráter e o chamavam de “Príncipe Motobu, o mais belo de todos os príncipes” (Umē-kata no Churasa Motobu Umē).

Chōyū Motobu

Ele se vestia com os mesmos trajes Ryūkyūanos dos samurai da Dinastia de Ryūkyū e prendia seu coque (Katakashira) da mesma forma que os samurai o faziam, com um grampo de cabelo. Eu me recordo de que além de um grande mestre das artes marciais, ele era também um homem extremamente educado e que amava a elegância, frequentemente compondo poemas e tocando o Sanshin (instrumento de 3 cordas de Okinawa). Além disso, ele possuía um relacionamento bastante próximo com o Sr. Seijū Tamagusuku, o último mestre de dança Ukanshin. Enquanto ele tocava o Sanshin, discutia técnicas de dança com o Sr. Tamagusuku e também cantava o clássico Ryūkyūano chamado “Ufubushi “.

Seijū Tamagusuku (1868–1945)

Chōyū Motobu sensei era muito rigoroso quanto às regras de etiqueta, visto que nasceu no berço nobre da Udun (família real), e nunca o reverenciavam de pé (Nota 2). Até mesmo seu irmão mais novo, o Sr. Chōki Motobu ao dirigir-se a Chōyū Motobu sensei, reclinava-se sobre o assento inferior da sala como se fosse um vassalo dirigindo-se à um soberano. Chōyū Motobu sensei possuía a graça e dignidade de um membro da família real e poderia ser descrito como um grande homem. No entanto, ele nunca foi um homem opressor e nem sequer discriminava os outros baseado no seu status. Ele estava sempre sorrindo para todos e mantinha sua postura ereta ao lidar com qualquer pessoa. Isso era inimaginável em Okinawa naquela época, onde o sistema de status social ainda permanecia forte, mesmo durante o Período Taishō (1912–1926).

Chōyū Motobu sensei era também um homem de grande virtude e humanidade. Quando o domínio feudal foi abolido, a família Motobu recebeu uma grande quantidade de propriedades, mas ele doou tudo para as pessoas de sua vizinhança. Além disso, muitas pessoas pegavam dinheiro emprestado com ele, mas ele jamais cobrava das famílias pobres que não possuíam lenha empilhada em suas cozinhas (Nota 3). Ele os dizia: — “Apenas pague quando você puder.” Por essa razão, ele era muito querido por muitas pessoas. Certa vez, quando fui para a vila de Yomitan para praticar equitação com Chōyū Motobu sensei, a população local nos deu boas vindas abatendo algumas cabras.

Nota 1: O ano de nascimento de Chōyū Motobu foi 1865, então ele possuía em verdade 51 anos.
Nota 2: A saudação de pé não existia durante a era do Reino de Ryūkyū e era considerada uma falta de educação na época. Todas as reverências eram feitas em Seiza (posição sentada / ajoelhada).
Nota 3: Lenha para cozinhar era uma necessidade naquela época, mas as famílias pobres não possuíam dinheiro para comprá-la.

A tradução original em português foi publicada no blog da Ameba em 30 de agosto, 1º de setembro, 13 de setembro, 5 de outubro, 7 de outubro e 13 de outubro de 2021.

Obrigado por ler minha história. Se quiser, siga-me.

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Shihan, Motobu Kenpō 7th dan, Motobu Udundī 7th dan. Discusses the history of karate and martial arts, and introduces Japanese culture and history.