Onde Dogville e Ninfomaníaca se encontram

Uma leitura da maldade humana presente nas duas obras do cineasta Lars Von Trier

Aline Valek
13 min readApr 4, 2014

Em primeiro lugar, é necessário explicar que este texto parte da perspectiva não de alguém escolada nas obras do dinarmaquês Lars Von Trier, mas sim de uma espectadora que foi recentemente apresentada a dois de seus trabalhos, sendo um deles o último lançamento.

Obviamente, o texto contém spoilers. Como já escreveu Alex Castro:

“qualquer texto de valor sobre uma obra narrativa vai necessariamente conter vários exemplares daquilo que as pessoas hoje chamam de spoiler. um texto sobre uma obra narrativa que não contenha spoilers é o seu press-release. é um texto vazio, promocional, de divulgação. é um texto que não se propõe a dizer nada novo sobre a obra. sempre que me proponho escrever sobre uma obra narrativa é porque acredito que tenho algo novo a acrescentar à discussão dessa obra. e é impossível fazer isso sem spoilers. o fetiche da surpresa é uma maneira muito simplista de consumir arte. existem mil maneiras de desfrutar uma obra de arte e nem todas passam pelo enredo, e muito menos pela surpresa em relação ao enredo.”

A não ser que não se importe com revelações sobre o enredo dos filmes de que falo no título, sugiro não continuar a leitura.

Dogville, filme lançado em 2003 e protagonizado por Nicole Kidman, traz a história de uma pequena cidade de interior, perto das montanhas, que um dia tem a sua tranquilidade afetada pela presença de uma fugitiva procurada pela máfia. Tom, um filósofo e escritor que reside no vilarejo, é o primeiro a conhecer Grace e resolve ajudá-la a se esconder, despistando os mafiosos que entram na cidade procurando pela moça. Ele oferece refúgio para Grace em Dogville, mas antes precisa convencer os outros moradores a aceitá-la na cidade. Eles relutam em aceitar a presença da estranha, mas acabam concordando em deixar que Grace more ali por duas semanas, como um prazo de experiência; depois das duas semanas, eles decidiriam se ela poderia ou não ficar definitivamente.

Para conquistar a afeição dos moradores, Grace — uma moça aparentemente de família rica, que apesar de seu passado misterioso, é muito bondosa e simpática — trata de se oferecer para ajudá-los em suas tarefas cotidianas. Ela se sente terrivelmente deslocada pois, mesmo mostrando boa vontade, os moradores não aceitam sua ajuda e fazem questão de manter a moça distante da comunidade. Com seu jeito doce, Grace vai conquistando a confiança daquelas pessoas até que elas passam a vê-la como uma amiga e acabam aceitando sua residência em Dogville, que é onde a verdadeira tragédia começa.

Dogville (2003)

Já Ninfomaníaca, dividido em dois filmes, conta a história de como Joe, uma mulher viciada em sexo, chega ao ponto que vemos no início do filme, jogada no chão de um beco com o rosto todo machucado. Seligman, um homem que mora nas redondezas, ajuda Joe (assim como Tom, no início de Dogville) e a leva para casa, onde lhe oferece comida, cama e roupas limpas, além da sua paciência como ouvinte da história que Joe tem para contar.

Dogville e Ninfomaníaca são, sem dúvidas, histórias muito diferentes, mas possuem algumas semelhanças óbvias. Ambos são protagonizados por mulheres e a trajetória das duas é permeada por muito sofrimento, embora não possam ser consideradas nem passivas nem as típicas heroínas com boas intenções. A divisão das duas histórias em capítulos bem definidos também é um aspecto marcante nas duas produções.

Há ainda dois detalhes curiosos sobre a forma que o diretor escolheu para contar as duas histórias. Em Dogville, o que primeiro chama a atenção é a ausência do cenário, da construção do próprio ambiente que dá nome ao filme. Paredes, ruas e espaços têm que ficar por conta da imaginação de quem assiste, já que a cidade consiste basicamente em traços feitos no chão de um galpão com fundo infinito, onde os personagens interagem em cenas que mais lembram teatro do que cinema.

Se em Dogville há essa chamativa ausência, Ninfomaníaca primeiro choca pelos excessos. Só o título sugere ao espectador que será um filme baseado em sexo sem limites, o que talvez leve muita gente a querer assistir para buscar algumas cenas excitantes. De fato, o filme está cheio de cenas explícitas de sexo, mas sequer faz suspense para tornar essas cenas um tipo de ápice na história. Talvez tenha frustrado aqueles que foram assistir o filme com o objetivo de se excitar, já que mostra tantas cenas de sexo que, ao final do primeiro filme, senti que já foram naturalizadas. Já não chocavam ou incomodavam ou excitavam mais. Talvez tenha sido justamente essa a intenção: sermos tão expostos ao sexo durante a jornada da protagonista para que, ao final do filme, estivéssemos com ela (e sentíssemos o mesmo que ela) quando Joe, no meio de uma transa, percebesse em desespero: “eu não sinto mais nada”.

Ninfomaníaca (2013)

Parece que Lars quis que olhassem para além da cidade que ele não colocou em um filme e para além das cenas de sexo que fez questão de colocar no outro. Talvez com isso pretendesse mostrar que Dogville não é sobre um lugar e Ninfomaníaca não é sobre sexo. Que apesar de ser algo sugerido no próprio título do filme, não é isso que importa.

Então o que há para se ver nessas duas histórias?

É claro que tanto Dogville quanto Ninfomaníaca estão abertas a inúmeras interpretações e análises. O recorte que proponho nesse texto não é uma tentativa de invalidar outras interpretações, ou de alcançar todas elas. Poderia ser abordada a condição da mulher nas duas obras, sobre a repressão sofrida por Grace ou a liberdade experimentada por Joe; os filmes podem ser interpretados sob uma perspectiva sexual, onde em um há uma protagonista forçada a fazer sexo, enquanto no outro há uma protagonista que busca sexo por iniciativa própria; ou ainda discutir se os filmes podem ser considerados uma representação misógina. Mas nenhuma dessas perspectivas é a que me chamou a atenção. Porque, ao olhar para o que havia além do sexo e da cidade, vi as pessoas retratadas por Lars Von Trier e suas relações. Então o que mais me chamou a atenção, especialmente por ter notado isso tanto em Dogville quanto em Ninfomaníaca, foi uma perturbadora representação da maldade e do quanto esse aspecto presente nos seres humanos é mais forte do que se pensa.

Em Dogville a manifestação dessa maldade é mais evidente, já que conduz a história a partir do momento em que Grace é aceita na comunidade e começa a ser uma faz-tudo dos outros moradores. Ao verem o quanto Grace é prestativa e que só tinham a ganhar tendo ela por perto, apesar do risco que representava, o povo de Dogville passou a ajudá-la a se esconder da polícia e da máfia, mantendo sua presença em segredo, pagando um modesto salário, oferecendo moradia e a amizade das pessoas dali. Parecia que a história se encaminhava para mostrar o quanto Grace mudaria a vida de pessoas que se mostravam tão desconfiadas e fechadas, mas logo essa expectativa se reverteu. O que vemos a partir dali são pessoas tomando consciência de que podiam se aproveitar da bondade da moça pelo simples motivo de ela estar em uma situação vulnerável e dependente deles. Assim, Grace começa a ser explorada e maltratada por aqueles que até então ela acreditava que eram seus amigos.

Tom e Grace, em Dogville (2003)

Ela leva broncas por bobagens, é forçada a trabalhar mais, começa a ser tratada com desprezo — mas tolera tudo. Até que Chuck, um homem rude que trabalha na colheita de maçãs (interpretado, inclusive, pelo mesmo ator que em Ninfomaníaca dá vida a Seligman), deixa Grace acuada dentro de sua casa enquanto policiais fazem uma busca em Dogville. Ele aproveita esse momento para estuprar a moça que já havia recusado suas investidas. Na figura da violência sexual, Lars Von Trier parece querer mostrar a máxima expressão dessa maldade que já estava ganhando forma entre os moradores de Dogville. O mal, portanto, estaria caracterizado como o uso consciente de determinado poder para prejudicar outro ser humano em uma situação desprivilegiada — e nesses termos repete-se na história.

Quando Vera, a mulher de Chuck, descobre sobre o abuso — que para ela não foi um abuso, mas sim Grace seduzindo seu marido — vai até a casa da moça para ameaçá-la. Vera quebra uma a uma as bonecas de porcelana que Grace comprou com o pouco dinheiro do seu salário. “Vou quebrar duas e você vai assistir. Se você chorar, quebro todas”. Aquela espécie de tortura deixa Grace devastada, mas era apenas o início da longa sequência de violência psicológica e física que sofreria naquela vila.

Ela tenta escapar e faz um acordo com o motorista da cidade, seu amigo Ben. Em troca de alguns dólares, ele a levaria escondida entre as caixas de maçã para longe de Dogville. Aquele homem, que até então fomos levados a acreditar que era virtuoso e bem intencionado, interrompe a viagem para dizer que, diante da dificuldade e do risco de levar uma fugitiva procurada, precisaria cobrar mais — e exigiu que Grace pagasse com seu corpo. Assim, estuprou a moça na parte de trás de sua caminhonete. Não bastasse isso, ele a engana e a leva de volta para a cidade, de volta para os algozes dos quais tanto queria fugir. É como se só estivesse faltando uma oportunidade que um tranquilo e inofensivo Ben se transformasse em um carrasco insensível.

É brutal assistir Grace sendo acorrentada e com uma sineta presa ao pescoço, como um animal, para que as pessoas de Dogville tivessem a garantia de que ela não fosse escapar novamente. E por que não queriam que ela fugisse, se a odiavam tanto e se a presença dela representava para a cidade tantos riscos? Porque podiam explorar o trabalho dela, abusar de seu corpo. Em Grace, podiam abdicar da civilidade que tornava possível viver em sociedade, a civilidade que reprimia a brutalidade dentro de cada um deles e que passaram a achar aceitável direcionar àquela mulher. Se fossem o tempo todo e uns com os outros o que eram com Grace, a vida em comunidade seria impossível. Já teriam se matado uns aos outros há muito tempo.

Assim como no clássico da literatura “O Estranho caso de Dr. Jekyll e Mr. Hyde” (ou “O Médico e o Monstro”), de Robert Louis Stevenson, a população de Dogville é um ser imoral e violento que foge de controle e sufoca em seu interior a sua contraparte pacífica, ética e bondosa. Ou talvez nunca existisse nela parte boa ou parte má; e sim uma sempre presente inclinação para praticar o mal.

Nem Tom, que foi pintado na maior parte do filme como um herói, como o par romântico e como aquele que salvaria Grace, escapa da expressão dessa maldade. Inconformado com o fato de que todos os homens da cidade podiam usufruir do corpo de Grace, mas ele, que era seu “namorado”, recebe um “não” da moça várias vezes, Tom também decide prejudicá-la. Ele procura o contato dos mafiosos, que sempre manteve guardado (o bom moço tinha premeditado causar o mal?), e liga para eles virem a Dogville. Ele decide entregar Grace aos homens que a perseguiram durante todo esse tempo.

Os mafiosos chegam na cidade como o zepelim prateado da música de Chico Buarque. Mas a Geni de Dogville revela-se, na verdade, ser a filha do chefe da máfia, em fuga por não aceitar as responsabilidades sobre uma organização criminosa que o pai queria lhe impor. Mas o chefão não fica nada satisfeito com o que vê ao chegar no vilarejo: a filha acorrentada como bicho, mantida prisioneira, explorada, arrasada. E então, aquela que era feita para apanhar e boa de cuspir torna-se a única chance de redimir a cidade e de salvar seus habitantes da fúria daqueles homens.

Geni e o Zepelim, na voz de Letícia Sabatella

O fechamento do filme não poderia ser mais coerente com a mensagem que se construiu durante a história. Grace ainda reluta em permitir que o pai e seus capangas punam aquelas pessoas, mas enfim ela cede à sua própria maldade. Os papéis se invertem. Agora, era Grace quem tinha poder para dispor daquelas pessoas como bem entendesse. E o mínimo de poder é tudo o que alguém precisa para ferir outra pessoa. Grace pede para que os capangas destruam a cidade e matem todos, não sem antes dedicar um toque de crueldade à exigência de como ela queria que Vera e seus sete filhos fossem executados. Dois filhos deveriam ser mortos na frente de Vera, com a ameaça de que, se ela chorasse, matariam todos. É a própria Grace que puxa o gatilho contra seu amado Tom.

Enfim entendemos que não havia naquela história nenhuma pessoa boa.

Ninfomaníaca já começa com Joe confessando a Seligman que ela é uma pessoa horrível. Ora, até o momento a informação que o espectador tem é o que sugere o título: que Joe seja uma viciada em sexo. Talvez ela esteja exagerando, pensei, não acredito que ela possa ser uma pessoa má só por ter uma compulsão por sexo. Sexo não é ruim, não é mau, não é errado, e sugerir que ela fosse uma pessoa horrível por fazer sexo começou a me soar moralista. Mas, como já dito acima, o sexo é um pano de fundo e não o protagonista. Quando Joe começa a contar a sua história e a narrar os pontos que sustentam a sua afirmação do início, entendi isso melhor. É claro que Joe só conseguiu me convencer de que ela não é uma pessoa boa no segundo filme, mas a maldade deu as caras em sua história gradativamente.

Seligman e Joe, em Ninfomaníaca (2013)

Ela pratica pequenos atos de egoísmo, baseados na sua busca compulsiva por prazer, que não são necessariamente maus, mas que causa dor a outras pessoas e faz com que ela, depois, se sinta responsável. Um exemplo disso é quando ela se envolve com um homem casado que abandona a família para ficar com ela, e sua mulher, Sra. H, descobre onde ela mora. Sra. H leva seus filhos para conhecer a nova casa do papai e a cama onde ele se diverte com a “meretriz”, numa cena tão constrangedora quanto ridícula, onde o casal briga na frente das crianças, de uma indiferente Joe e de outro amante que estava em seu apartamento na hora.

Seu egoísmo e seu comportamento inconsequente pavimentam o caminho para a maldade que a Joe adulta estaria apta a praticar, que se manifesta quando ela conscientemente abandona o filho pequeno sozinho mais de uma vez para frequentar as sessões de espancamento do Sr. K, colocando a criança em risco; quando ela aceita um trabalho do Sr. L para torturar pessoas a fim de que pagassem dívidas; e, finalmente, quando tenta matar Jerôme, por ciúmes, no mesmo beco onde ela é encontrada no início do filme.

Assim como em Dogville, não há ninguém virtuoso em Ninfomaníaca e não cabe só a Joe o papel de “má”. Jerôme, seu então marido, quando estabelece que se Joe sair para se encontrar com o Sr. K novamente não verá mais nem ele nem o seu filho, não está querendo proteger o pequeno Marcel da negligência da mãe, mas apenas querendo privá-la da criança, puni-la; já que, depois de ir embora com Marcel, ele não fica com o filho, mas também o abandona, já que a criança atrapalharia a sua carreira. Anos mais tarde, ao reencontrar Joe empunhando uma arma contra ele, Jerôme a espanca violentamente, menos para se defender e mais para ensinar uma lição, exercer poder sobre a mulher que passou a odiar.

Até P, a garota que se envolve com Joe e se torna tanto sua amante quanto sua aprendiz na carreira criminosa, não desperdiça a oportunidade de agredir a mulher que até então achávamos que respeitava, admirava ou amava. Quando vê Jerôme espancando Joe, P parece se esquecer de qualquer coisa que sentia por ela e enxerga que naquele momento tinha poder sobre Joe, uma oportunidade para ajudá-la ou para rebaixá-la; ela escolhe tirar a calcinha e mijar em cima dela.

P, em Ninfomaníaca (2013)

Oportunidade de poder. Aparentemente, é tudo o que os personagens de Lars Von Trier precisam para serem perversos.

Novamente, o desfecho do filme reforça a ideia de que a maldade exerce domínio no comportamento humano. Seligman tinha tudo para ser diferente de todas as pessoas que passaram pela história de Joe. Ele a acolheu, ofereceu ajuda, ouviu sua história, até explicou que não se excitava com os relatos dela sobre sexo porque se considerava assexual. Mas na primeira oportunidade que teve, quando Joe estava dormindo, ele quis tirar proveito dela. Tentou estuprá-la.

Como em Dogville, surge o argumento “você transou com tantos homens, por que não transar comigo?”. Negar o poder de Joe dizer “não” foi uma forma de dominá-la, e a dominação sobre outro ser humano, como nos outros exemplos dados por Lars nesses dois filmes, foi o requisito básico para exercer o mal.

Joe, assim como Grace, usa do poder que tinha disponível no momento para punir seu agressor. Da mesma forma que Grace usa os capangas da máfia para matar os moradores de Dogville, Joe usa a arma que tinha consigo para matar Seligman. Dois finais que se interligam e convergem para a mesma mensagem: não há heróis, nem heroínas; as pessoas são potencialmente más e basta ter uma oportunidade de fazer o mal para que a pessoa faça algo ruim para outro ser humano.

Não conheço suficientemente bem o diretor para dizer que ele se apoia nesta ideia, mas vejo nesta interpretação um pessimismo em relação à humanidade. Uma ideia perfeitamente discutível, ou, de outra forma, acredito que Lars não teria a fama de polêmico.

Ou talvez, com essa abordagem, Lars abandona o maniqueísmo de herói/heroína e vilão/vilã para mostrar que a perversão não é nem má, nem boa, mas inerentemente humana. Nesse caso, o que há de perturbador nos seus filmes seja encarar, com perplexidade, a facilidade de sucumbir a uma maldade que parece atraente e muitas vezes necessária; e com isso refletir sobre qual é, afinal, esta linha tênue que separa um Dr. Jekyll da perversidade de um Mr. Hyde.

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Aline Valek

Escritora e ilustradora. Autora do romance "As águas-vivas não sabem de si"