Vislumbrando uma nova economia em um copo de cerveja

Como o movimento da cerveja artesanal ao redor do mundo pode servir como exemplo de como iniciar um movimento para uma economia mais consciente, local, criativa e humana.

Raoni Henrique
Movimento Ímpar
9 min readMar 6, 2018

--

* Esse artigo é uma tradução livre e adaptada do artigo publicado em 2016 por Rob Hopkins no Transition Network, movimento de transição que o Movimento Ímpar faz parte.

A visão econômica tradicional baseada no aumento do consumo, investimentos, poupança e exportação baseia a decisão de governos e empresa, mas algo fascinante está acontecendo em todo o mundo e em várias cidades do Brasil. Está surgindo um movimento que evita o crescimento exponencial da produção, favorece os mercados locais, em detrimento dos negócios focados em exportação e que não busca a dominação do mercado, mas sim inspirar outros a seguir o seu exemplo e se tornar inovadores e empreendedores. Eu poderia estar falando sobre o movimento de transição mas o exemplo que vou dar aqui é o movimento da cerveja artesanal.

No mundo dos negócios convencionais, ser uma empresa que não é tão preocupado com o crescimento é uma posição radical e que vai contra o movimento comum de empreendedores e startups. No entanto, pequenos empreendedores que estão começando a produzir cerveja em casa ou microcervejarias não começam, geralmente, essa empreitada querendo ser a maior cervejaria do mercado. Se trata aqui de um movimento que resgata velhos hábitos de produção artesanal e criação de comunidade. Não seria muito preferível se houvesse muitas cervejarias relativamente pequenas ao redor de uma região do que ter uma grande empresa dominante de todo um mercado?

Bem-vindo ao mundo da cerveja artesanal

O que é uma cerveja artesanal? Para a Wikipédia, é basicamente qualquer cerveja produzida em uma pequena cervejaria. No entanto, muita coisa vista por aí não é cerveja artesanal, talvez seja bem provável que seja uma cerveja tradicional. Para mim, a cerveja artesanal representa uma explosão sem precedentes de sabores e gostos, de cervejarias que procuram não vender a maioria da produção nos supermercados, mas cujo motivador é produzir as melhores cervejas que possam imaginar, para apresentar as pessoas a sabores novos e deliciosos. Isso abre a possibilidade para que uma vasta variedade de cerveja seja oferecida de forma extraordinária e diversa assim como acontece com o vinho. Na verdade, eu imagino que o vinho já está olhando por cima do ombro. É um sopro de ar fresco, com um pouco de lúpulo.

Mas essa dificuldade na definição de cerveja artesanal é, para alguns, parte de sua força e charme. De acordo com o especialista inglês em gastronomia, Tony Naylor:

“A grande questão sobre o aumento da cerveja artesanal é que fez com que os fãs de cerveja questionassem tudo. Depois de anos de preguiça, o sabor tornou-se o problema primordial na cerveja. Esse é um objetivo orientador na produção artesanal: a maximização do sabor”.

O que é certo, é que os apreciadores de uma boa cerveja, uma vez transformados pelos novos sabores das cervejarias artesanais, abraçam a causa e o produto criado em baixa escala e máxima qualidade. Uma vez que você bebe uma cerveja artesanal, beber Heineken novamente se torna mais difícil.

A virada de jogo

Somente no Reino Unido, existiam em 2016 1.500 cervejarias pequenas com uma participação de mercado de cerca de 7% e uma tendência de crescimento. Nos EUA, a quota de mercado da cerveja artesanal é de cerca de 12% (No Brasil existem 610 cervejarias registradas no Ministério da Agricultura, excluindo desse número aqueles que fazem a cerveja para si próprio, amigos e comunidade, os chamados paneleiros). Em 2016 a Camden Town Brewery, uma cervejaria artesanal líder na Inglaterra, foi comprada pela AB InBev, a empresa que criou a Budweiser entre outras cervejas mundiais (a Budweiser perdeu 16 milhões de barris entre 2003 e 2013 devido, em parte, ao crescimento de cerveja artesanal), por 85 milhões de libras. Eles se juntam a uma crescente lista de cervejarias artesanais vendidas para as grandes cervejarias (assim como a Walls, cervejaria mineira, adquirida pea Ambev, braço latinoamericano da AB InBev).

A ideia de que agora você pode comprar ‘cerveja artesanal’ produzida por um grande conglomerado cervejeiro parece uma coisa interessante para se refletir, uma espécie de paradoxo fermentado. Essas aquisições levantam algumas questões fascinantes. Em um artigo apaixonado sobre isso, Tony Naylor escreveu:

“para mim, a ideia de que esta interferência corporativa é bem-vinda ou necessária, é ingênua. Mas por que? Porque Camden Town Brewery precisa ser onipresente na Grã-Bretanha, e muito menos internacionalmente? Em qualquer expansão séria da capacidade de uma cervejaria, o crescimento é discutido como se fosse necessário e autojustificado. Mas — e isso vai para o espectro da ética em torno da cerveja artesanal — além de um certo ponto, o crescimento é tudo sobre lucro, e não sobre fazer mais boa cerveja. Nenhum apreciador da cerveja artesanal quer ver o mesmo punhado de cervejas artesanais com apoio de grandes empresas em todos os lugares. Na verdade, ao invés de marcas internacionais de cerveja artesanal, eu argumentaria que o que a cerveja precisa é demais pequenas cervejarias locais, por razões práticas e ideológicas. A cerveja começa a se deteriorar assim que é enviada da cervejaria, então beber cerveja fresca e local é o ideal”.

Uma outra cervejaria artesanal inglesa, a BrewDog publicou logo após o anúncio da incorporação da Camden Town Brewery:

“Vamos ser honestos, as intenções dessas grandes empresas são completamente claras: eles reduzem os custos, cortam as pessoas, pressionam fornecedores e eles se orgulham de fazê-lo. O deus deles é o market share e o preço dos papéis no mercado de ações; Eles agem em de acordo com protocolos de administração tradicional … no entanto, é ao defender tudo que a cerveja grande não é que a cerveja artesanal se torne tão bem-sucedida”.

Crescimento para quem?

O crescimento, por si próprio, é sempre bom? É bom que construamos muitas milhares de casas se forem mal construídas, ineficientes em energia, nos tranquem nos estilos de vida de alto carbono, não são acessíveis, não criem lugares bonitos onde as comunidades se formam e bloqueiam as pessoas em uma nova bolha financeira imobiliária? Alimentos mais baratos sempre são bons quando você leva em consideração os impactos de criá-lo? Da mesma forma, por que ser capaz de comprar uma cerveja que era local em qualquer lugar do país pode ser bom?

Como David Heinemeier Hansson, fundador da plataforma Basecamp disse em um discurso que viralizou:

“Parte do problema parece ser que ninguém nos dias de hoje se contenta em simplesmente colocar sua marca no universo. Não, eles têm que possuir o universo. Não basta estar no mercado, eles têm que dominá-lo. Não é suficiente servir os clientes, eles precisam capturá- los”.

Sobre cervejas artesanais e “propriedades emergentes”

O mundo da cerveja artesanal oferece uma janela fascinante para muitos dos debates mais amplos que surgem neste mundo pós acordo de Paris, comprometido, ainda que de forma meio frouxa, a frear o aquecimento global.

Vivemos em um mundo altamente complexo. Não é apenas um mundo complicado, mas um mundo complexo. A mudança climática é um problema muito complexo. A grande questão sobre a complexidade é que ele possui “propriedades emergentes”. Coisas que ninguém poderia antecipar acontecem a todo momento. Podemos ver mudanças emergentes em diferentes lugares, e esses acontecimentos nos dão todo o espaço para pensar de forma diferente sobre o futuro.

Um dos lugares que vejo esse potencial, essas “propriedades emergentes”, está no movimento da cerveja artesanal. Aqui, temos uma mudança já em curso para uma maneira mais local, pequena, independente, de alta qualidade, mais saborosa, de baixo carbono, fazendo as coisas de forma mais deliciosa, impulsionada não por uma campanha política, mas simplesmente para melhorar algo que já é feito, e fazendo isso com muita paixão e criatividade.

Sim, é claro, os gigantes da indústria que começam a perder mercado tentarão retomá-lo, imitá-lo, co-optar, mas quando o fizerem, desmoronará o pó em suas mãos, assim como a história do Imperador que amava tanto um Rouxinol que cantava fora de sua janela, que o mandou prender em uma gaiola e em seguida ele parou de cantar.

O Manifesto da cerveja artesanal

Embora várias tentativas de criar um Manifesto pela cerveja artesanal tenham encontrado resultados variados, gostaria aqui de sugerir alguns pensamentos sobre o que poderia definir o terreno que o mundo da cerveja artesanal poderia criar para si. Isso aproxima o movimento da abordagem de Transição e pode ser uma das poderosas faíscas para uma mudança emocionante, uma mudança que você já pode ver acontecer em algumas cervejarias artesanais, mas apenas algumas.

Seria:

Comprometemo-nos a apoiar uma nova cultura empresarial emergente. Esta é a mais importante para mim. Uma cervejaria pode apoiar empresas locais emergentes, criando cervejas com e para elas. Ela pode apoiar um Fórum de Empreendedores Locais, fazer uma produção exclusiva, pode usar seu compromisso com uma nova economia local a seu favor, atuar como uma vitrine para novos empreendedores inovadores, executar eventos colaborativos, criar cervejarias colaborativas, e usar sua presença fora da cidade para contar essas histórias. Um bom exemplo é uma cervejaria criada com uma instituição de caridade de resíduos alimentares locais que é feita com o uso de pão residual da região.

O poder do local. De onde você é importa. Comemore o lugar, a sua cultura, a sua história, a nova economia emergente, a sua comunidade. Use-o a seu favor. A proximidade com a comunidade faz parte do romance, a conexão com a origem e a associação com a cidade, aldeia, estado, país: isso é parte da história.

Visando 80/20%. A aplicação do conceito de localização econômica a uma cervejaria é complexa. Encontrar equipamentos de fabricação de origem local, garrafas, sistemas de ventilação e outras coisas que você precisa quando você começa a produzir, pode ser muito difícil, senão impossível, ou proibitivamente caro. Muitos dos sabores que as pessoas associam à cerveja artesanal provêm da Nova Zelândia e dos lúpulos dos EUA. Alguns movimento de alimentos locais argumentam que 80% deve ser produzido localmente e no máximo 20% deve ser importado. Mas como isso se aplica à fabricação de cerveja? Quais sabores locais podem ser experimentados, e quais importados, visando novas experimentações?

Uma criação artística, não uma mercadoria A fabricação de cerveja artesanal é sobre clientes e os empresários que vêem seus cervejeiros não como químicos industriais, mas como artistas, cuja criatividade deve ser nutrida e encorajada. Não se trata da busca da maximização do lucro e produtividade, mas sim de algo menos tangível, mais focado na arte.

Uma educação. Eu sei muito pouco sobre cerveja. Eu sei o que eu gosto, mas eu me esforçarei para explicar o porquê. Tudo o que aprendi sobre a cerveja passou por estar interessado em cerveja artesanal. É um movimento que quer que você se importe, quer que você seja entusiasmado, quer que você seja mais experiente, para entender os maltes, o lúpulo, as leveduras no que você está bebendo. Não basta apenas que você compre …

Cerveja daqui. Se eu comprar uma cerveja que afirma ser de um lugar particular, quero saber por que foi fabricada lá, em vez de outros lugares. Mantenha o trabalho local.

Inovador e de risco. Quer fazer uma cerveja com goiaba? Ou lavanda? Ou pimentão? Sugerir essas coisas seria uma boa maneira de ser demitido na Heineken, mas no mundo da cervejaria artesanal, a diversidade é profundamente estimada, e a tomada de riscos é onde estão as recompensas. Dito isso, experimentei uma cerveja de lavanda uma vez e foi bastante horrível.

Dedicado a ampliar o apoio local em vez dos mercados de exportação. Embora as vendas para novos mercados possam ser importantes para o financiamento e para estabelecer uma reputação, o pensamento mais criativo aqui é como ampliar o suporte local, como construir uma comunidade em torno do negócio como vender direto para pessoas locais e criar comunidade.

Apenas contemplando vender para a sua comunidade local e a ninguém mais. Existem muitos modelos diferentes de vendas, cooperativas, clubes, um pequeno grupo de investidores e outros. Seria ótimo ter um princípio declarado de que, se o negócio sentir a necessidade de vender, ou trazer mais investimentos, que ofereça à comunidade primeiro, através de uma opção de compartilhamento e compra coletiva.

Considerações finais

Estamos caminhando para um processo de transição. Mas um movimento, uma indústria, que leva essas ideias de coração, é um catalisador tão poderoso. E vemos o mesmo potencial latente, mas vasto, com a produção de pães, com vegetais, com carne, com finanças e investimentos, com habitação, com geração de energia. As “propriedades emergentes” e o potencial de “tudo o que a cerveja grande não é” e um novo meio de se pensar, produção, intenção, vendam criatividade, é enorme.

Finalizo com as palavras de David Heinemeier:

“Examine e interrogue suas motivações, rejeite o dinheiro se você se atreve, e arranque algo útil. Um abalo no universo é abundante. Limpe sua ambição. Viva felizes para sempre”.

Confira aqui o texto original: https://transitionnetwork.org/news-and-blog/to-see-the-new-economy-through-a-glass-of-beer/

--

--

Raoni Henrique
Movimento Ímpar

Consumer Insights e especialista em Ux e Design no Grupo Consumoteca. Fundador do @movimento ímpar. Autoridade em memes e polêmicas.