71 entrevistas

A história de um desemprego, com direito a uma pandemia para estragar meus planos.

Cíntia Ribeiro
Mulheres de Produto
9 min readMay 9, 2021

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No dia 3 de outubro de 2019, eu fui demitida. Não vou entrar em detalhes, mas aquele foi o momento em que minha vida virou de cabeça para baixo — alguns meses antes do mundo inteiro virar de cabeça para baixo com a descoberta do “novo” coronavírus. Eu já trabalhava na área de tecnologia desde 2004 e atuava como Analista de Negócios Sênior em uma grande empresa de consultoria. Uma coisa importante sobre as demissões é que, não importa quanta experiência você tenha, elas sempre te farão questionar tudo. Mas no início, não foi assim. Eu sofri, chorei, desabafei na terapia, mas o mercado estava aquecido, eu tinha muita experiência, logo conseguiria algo melhor.

No meu primeiro processo seletivo pós-demissão, eu estava muito confiante. Estava curtindo minhas férias havia muito planejadas no Uruguai quando recebi meu primeiro contato, sem querer me lembrar dos problemas que me esperavam em casa. Era uma vaga também para Analista de Negócios Sênior, com uma imensa lista de requisitos, e eu atendia a todos.

  • Graduação na área: Ok
  • Pós-graduação na área: Ok
  • Pelo menos 5 anos de experiência na função: Ok
  • Experiência técnica: Ok
  • Experiência de gestão: Ok
  • Experiência com agilidade: Ok
  • Certificação de agilidade: Ok
  • Inglês: Ok
  • Espanhol: Ok

O resultado: “Gostamos muito do seu perfil, mas precisamos de alguém com mais experiência.”

Esse foi o empurrão que eu precisava para mergulhar de cabeça na síndrome do impostor e, entre crises de depressão e ansiedade, duvidar de tudo o que aprendera e fizera em mais de 15 anos de profissão.

Os processos seguintes foram desastrosos. Embora meu acerto e reserva financeira me deixassem financeiramente segura por mais alguns meses, meu emocional não estava bem, havia dias em que eu mal conseguia me levantar da cama para comer. Assim, no desespero de logo voltar a trabalhar, aproveitei minha experiência anterior em diversas funções para me candidatar a todas as vagas que apareciam, sem pensar se realmente eram adequadas para mim.

Foi um desastre.

Felizmente, terapia e amigos me trouxeram de volta à racionalidade. Em janeiro de 2020, eu fiz um plano.

O plano

Primeiro passo: Definir um objetivo

O primeiro passo foi definir meu objetivo. Eu queria continuar trabalhando como Analista de Negócios em consultorias de desenvolvimento? Estava nessa posição já havia bastante tempo, será que não era hora de tentar algo como Gerente de Projetos? Ou, quem sabe, Agile Master? Nisso, percebi que eu não estava plenamente satisfeita com nenhuma das funções que havia exercido antes. Foi quando me lembrei de um termo que já vira algumas vezes e, quanto mais eu pesquisava, mais a descrição fazia meus olhos brilharem: Gestão de Produtos.

Essa função, ainda pouco conhecida nos meus círculos em Belo Horizonte, tinha um pouco de tudo o que eu já havia feito antes e tudo o que me empolgava na criação de software.

Segundo passo: Entender meus pontos fortes

Antes de começar a procurar novas oportunidades ou de estudar para chegar aonde queria, eu precisei entender o que já sabia. A função de Product Manager é muito abrangente e eu já havia praticado várias daquelas atividades. Essa etapa foi sobre descobrir a quais tipos de vagas eu poderia me candidatar e o que deveria destacar nos processos seletivos.

Terceiro passo: Priorizar o que estudar e me desenvolver

Após entender meus pontos fortes, passei a olhar para aqueles pontos em que deveria melhorar. Busquei livros, cursos gratuitos, artigos, conversas com pessoas que já haviam passado pelo que eu estava passando.

Foi mais ou menos nessa época que comecei a participar da comunidade Mulheres de Produto, onde hoje sou uma das embaixadoras responsáveis pelas redes sociais. Lá, conheci histórias inspiradoras de mulheres que haviam passado pela transição ou que ainda estavam lutando para conseguir uma oportunidade. Também fiquei mais ativa no Linkedin, buscando ser mais vista pelos recrutadores.

Começou a dar certo. Entre algumas dezenas de entrevistas, no dia 17 de março de 2020, eu era a única finalista em dois processos seletivos e faltava pouco para fecharem a proposta. Foi quando a pandemia chegou a Belo Horizonte.

No meio do caminho, tinha uma pandemia

Tinha uma pandemia no meio do caminho.

Nunca me esquecerei daquele 17 de março de 2020, na vida de minhas retinas tão fatigadas. Nunca me esquecerei que no meio do caminho tinha uma pandemia. Tinha uma pandemia no meio do caminho.

Aquele 17 de março foi meu último dia normal. Acordei tarde, aproveitando o que eu esperava ser uma das minhas últimas semanas em casa. Irônico, eu sei. Por volta do meio-dia, recebi a mensagem da pessoa que estava conduzindo um dos processos seletivos, cancelando uma conversa que teríamos no dia seguinte, pois era uma empresa da área de saúde e eles precisavam se preparar para responder ao caos que estava para se instaurar. Mesmo assim, tentei não me abalar. Almocei, fui ao banco, passei no supermercado, fui à academia, vi séries, dormi. No meio disso tudo, liguei para a minha mãe. Pedi a ela para não se desesperar e informei que aumentaria o limite do cartão de crédito dela (que não sabia, não sabe e nunca saberá que eu estava desempregada), para ela poder parar de trabalhar passando roupa em casas de estranhos. Disse que seria só por duas semanas, depois a gente voltaria a conversar.

Como todos sabem, muito mais que duas semanas se passaram sem que as coisas voltassem ao normal. O que voltou foi a minha ansiedade. Morando sozinha, longe da minha família, longe da maioria dos meus amigos, havia perdido também as coisas que estavam me impedindo de surtar. Senti falta das senhorinhas da hidroginástica, da dor de levantar peso na musculação, de pegar um ônibus a caminho da terapia e descer dois pontos antes pra tirar fotos de florzinha na Praça da Liberdade toda quinta-feira. A semana se arrastou, com os dias se resumindo a acompanhar as péssimas notícias, sentir raiva de um governo que parece querer matar a todos nós e me candidatar a dezenas de vagas, só para receber um e-mail automático dizendo que os processos seriam congelados.

A semana demorou a passar até que no sábado, dia 20 de março, nasceu o Brasil Contra o Vírus. Enquanto fazia nada no Twitter, vi a chamada de uma moça que eu nem conhecia por voluntários de diversas áreas para ajudar em uma iniciativa de apoio aos hospitais no combate ao vírus. Foi um início confuso, com centenas de pessoas tentando se organizar em grupos do Telegram. De alguma forma, eu saí como uma das lideranças da área de tecnologia. Vi ali a oportunidade de testar minhas habilidades de liderança e gestão de produtos. Durante alguns meses, aquele foi meu trabalho de tempo integral. Enquanto a equipe principal se concentrava em produzir EPIs para os hospitais de São Paulo, eu cuidava das iniciativas digitais, sendo PO do site, fazendo discovery de outros possíveis produtos e também gerenciava a comunicação, com uma equipe focada nas redes sociais e outra escrevendo artigos para o Medium.

Logo, as empresas de tecnologia, que costumam se recuperar mais facilmente das crises, voltaram a abrir vagas, mas agora a concorrência era maior, com várias pessoas tendo sido demitidas nas primeiras semanas de pandemia. Voltei a fazer processos seletivos e, depois de 30 entrevistas, no início de Junho, consegui uma oportunidade como Product Manager no squad do SOS Me Poupe, pela Bossabox.

“Que legal, Cíntia, foi aí que você concluiu a transição?”

Não, leia novamente. Eu disse no título que eram 71 entrevistas, lembra?

Um longo teste

Os nove meses que passei como prolancer foram uma grande escola — ou um longo teste. Eu gostei muito de trabalhar com a Bossabox, mas sempre soube que não ficaria ali por muito tempo. O formato de trabalho é muito parecido com o de uma consultoria e, embora essa característica ofereça um pouco mais de segurança para quem está em transição, eu trabalhei em consultorias ou fábricas de software durante toda a minha vida profissional, e queria algo diferente. Mesmo assim, aproveitei cada dia e me dediquei ao máximo nos três squads de que participei. Conheci pessoas incríveis, troquei experiências, aprendi com eles, com o processo, com o produto, com os problemas, comigo mesma.

Meu plano inicial era ficar ali por um a dois anos, trabalhando em dois produtos paralelos para ter um pouco mais de segurança financeira, antes de partir para algum desafio novo. Porém, acabei não conseguindo ficar em dois produtos por muito tempo, então, no final de Outubro, voltei a participar de entrevistas. Mais segura das minhas habilidades e sem a pressão do desemprego, pude escolher melhor as vagas a que queria me candidatar e cheguei à etapa final em vários processos.

Foi cansativo conciliar tantas entrevistas, testes e desafios técnicos com um trabalho que exigia cada vez mais da minha dedicação, sem falar na tensão constante de ser brasileira durante uma pandemia. Tendo passado a maior parte de 2020 trancada sozinha no meu apartamento, vendo apenas os entregadores das compras que eu fazia por aplicativo, a aproximação do fim do ano me deixou, novamente, mais ansiosa do que o normal, e participar de tantos processos seletivos contribuía para minhas noites mal dormidas.

Apesar de tudo, entrei Janeiro levemente otimista de que conseguiria uma nova oportunidade como Product Manager em uma empresa de produto e não precisaria mais trabalhar com consultoria. Até que chegou a resposta que eu esperava e, mais uma vez, essa resposta era um “não”. Desisti de tentar e voltei ao meu plano anterior, de conseguir um novo contrato como prolancer e ficar assim até o final do ano. No dia seguinte, o produto em que eu trabalhava foi cancelado e precisei voltar à procura.

E agora?

De novo, bateu o desespero. Eu tinha um mês até o fim do contrato e muito mais experiência do que quando comecei nessa jornada, mas ainda estava começando a refazer minha reserva financeira, não poderia me dar ao luxo de passar vários meses desempregada como da primeira vez. Voltei à procura.

Em algum momento de Fevereiro, a COO de uma Proptech chamada AoCubo postou uma mensagem no slack do Mulheres de Produto dizendo que tinha uma vaga para Product Manager. Respondi à mensagem dela, que pediu meu contato para passar ao RH. A coordenadora do RH me ligou, fiz a primeira entrevista, mas duas semanas se passaram sem retorno e eu já dava aquela vaga como perdida. Havia outros processos que me pareciam mais promissores, e concentrei minha energia neles.

Até que a reposta veio, com mais três entrevistas e, no dia 17 de março de 2021 — exatamente um ano depois do coronavírus cancelar duas vagas que eu contava como certas — eu recebi uma proposta.

O começo é o fim é o começo

Eu tenho boa memória e sou boa com datas, então aqui vai mais uma: 22 de março de 2021. Esse foi o dia em que comecei a trabalhar no AoCubo como Senior Product Manager e líder da área de produtos da empresa.

Dor de barriga? Sim

Ansiedade? Sim

Síndrome do impostor? Sim

Eu vinha me preparando para esse momento havia mais de um ano, mas, mesmo assim, fiquei muito insegura no começo. Sem ter o suporte de uma empresa de consultoria por trás, será que eu sabia mesmo o que eu achava que sabia? Será que conseguiria entregar os resultados para os quais fui contratada?

Depois de tudo o que passei, eu não acredito em um emprego dos sonhos, até mesmo a empresa mais amada do Brasil tem seus problemas. Mas acredito que existem algumas empresas que são melhores que outras para o momento de um profissional. O AoCubo chegou à minha vida no momento certo. É uma startup em crescimento, que precisava não apenas de alguém com experiência em produto, mas com maturidade profissional para fazer as escolhas certas. Por outro lado, eu precisava de uma empresa que conseguisse enxergar além dos títulos e apreciar as minhas experiências diversas. Deu certo.

Nesta segunda-feira, completo 50 dias de empresa. Passou rápido, mas muita coisa aconteceu. Já aprendi muito mais do que imaginava e recebi feedbacks muito melhores do que esperava. Novamente, tenho um plano, mas um plano muito mais interessante do que eu tinha no ano anterior. É um plano de crescimento para mim, para os produtos da empresa, para a equipe que estou montando.

Agora, volto a fazer entrevistas, mas estando do lado de quem contrata, e lidera, e desenvolve.

Às vezes, me sinto culpada por me alienar das notícias e chegar contente ao fim de um dia cansativo de trabalho. Mas é bom ter uma agenda novamente, falar com pessoas, fazer planos e ter esperança de que, no meio do caos, pelo menos um aspecto da minha vida está nos eixos.

Faz tempo que tenho o desejo de contribuir com a comunidade e apoiar pessoas que estão passando pelas mesmas situações pelas quais eu passei. Infelizmente, criar conteúdo leva tempo e não consigo escrever tanto quanto gostaria, por isso entrei para o time de embaixadoras do Mulheres de Produto, onde poderia contribuir com uma dedicação menor, já que são várias pessoas trabalhando por um objetivo comum. Mesmo assim, quero voltar a escrever! Espero que esse texto ajude a encorajar as pessoas que estão nessa jornada, mas sem pintar o mundo em cor-de-rosa e azul-bebê. É possível, mas é difícil. É difícil, mas é possível.

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