O que a pandemia de Coronavírus pode nos ensinar sobre agilidade

WIP, MVP e outros aspectos da agilidade que estamos vendo diariamente nos jornais

Cíntia Ribeiro
Mulheres de Produto
7 min readApr 7, 2020

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Scrum. Kanban. Lean.

Quem trabalha com tecnologia já está acostumado a ouvir esses termos e — espero — utilizá-los, na prática, para realizar entregas mais ágeis e com mais qualidade. Porém, embora a agilidade seja mais conhecida pelos profissionais de TI, estando intimamente ligada à Transformação Digital pela qual várias empresas têm passado nos últimos anos, seus princípios e práticas podem ser aplicados em várias áreas.

Sou grande entusiasta da utilização de práticas ágeis em diversos contextos, inclusive, na minha vida pessoal. Em um curso que realizei há alguns dias, quando, inevitavelmente, o assunto “Coronavírus” teve o seu espaço, alguém comentou sobre a limitação no número de leitos hospitalares, o que me levou a vários outros aspectos da pandemia que ilustram conceitos de agilidade e demonstram como todos podem se beneficiar deles.

O que a pandemia de Coronavírus pode nos ensinar sobre agilidade

WIP Limitado

Voltemos à conversa sobre o número de leitos. Esse é um tema em que outras pessoas já tocaram e parece bem óbvio. Todos estamos falando em quarentena, confinamento, distanciamento social, e sabemos que o objetivo não é eliminar o vírus, mas atrasar a sua propagação. É o que chamamos de “achatar a curva”.

Gráfico da curva do coronavírus com e sem medidas de isolamento social.
Carl Bergstrom e Esther Kim/CC BY 2.0

No gráfico ao lado, que todos já devem ter visto em algum momento, a linha pontilhada horizontal representa a capacidade do sistema de saúde para atender os doentes. Quando a curva está acima da capacidade, pessoas ficarão sem atendimento.

Esse é o WIP — work in progress ou trabalho em progresso — limitado, neste caso, por um número que possui um significado além de um quadro Kanban. Para aumentar o WIP na pandemia, estados e prefeituras estão construindo hospitais de campanha e fazendo contratações emergenciais, mas a limitação continuará existindo, dado que o espaço, o dinheiro e os profissionais são recursos limitados.

Nem sempre o limite do WIP é algo tão claro e palpável. Cada time precisa experimentar e se adaptar até descobrir qual é o seu número ideal.

Espaço para imprevistos

A discussão sobre o WIP me leva a outro ponto. Desde o início da pandemia na China e Europa, muitas pessoas estão ressaltando a importância da prevenção de outras doenças, como a gripe comum, que também afeta o sistema respiratório, a dengue, que tem sintomas parecidos, ou o sarampo.

Mas o que o sarampo tem a ver com o covid19? A princípio, nada. Acontece que o sistema de saúde que cuida do idoso com covid19 é o mesmo que cuida da criança que pegou sarampo porque não foi vacinada. Não é suficiente que a curva de contaminação pelo novo Coronavírus alcance o WIP; o ideal é que ela esteja abaixo dele, pois as outras doenças não vão esperar e todos os pacientes precisam ser tratados de forma digna.

Em agilidade, isso pode ser chamado de slack time ou tempo ocioso. É o tempo onde outras atividades poderão ser encaixadas, de forma a atender a necessidades especiais que surgirem, fomentar a criatividade ou melhorar os processos do time.

MVP

Tenho acompanhado como o mercado de tecnologia se comporta nesse período. Algo que me chamou a atenção é a quantidade de soluções de software que estão surgindo a todo momento. Em uma crise como essa, em que o mundo inteiro luta contra um inimigo que pode matar milhões de pessoas, tudo precisa ser muito rápido. Não dá tempo de fazer o layout perfeito, de esperar para lançar dezenas de funcionalidades, de testar todas as opções possíveis para tomar a decisão certa. É o momento de fazer o mínimo necessário no menor tempo possível.

Isso nada mais é do que o conceito de MVP, isso é ser Lean. Na teoria, todos sabemos como funciona e dizemos ser lean. Na prática, muitas empresas não sabiam que poderiam fazer isso tão bem quanto estão fazendo agora. Por exemplo, já vi aplicativos sendo lançados para apenas um bairro, pois se algumas dezenas dentre as centenas de pessoas que moram naquele bairro puderem evitar a contaminação, já serão algumas dezenas de pessoas a menos transmitindo o vírus.

Obviamente, estamos falando de uma situação extraordinária. Em situações normais, provavelmente, não compensaria lançar um MVP tão pequeno de um produto que visa lucro. Mesmo assim, a pandemia nos obriga a rever o que é relevante e o que pode ser deixado para depois.

Equipes auto-organizáveis

Não é novidade para ninguém que governantes do mundo inteiro estão tomando decisões no mínimo duvidosas com relação a medidas de combate ao coronavírus. Enquanto isso, milhões de pessoas, de suas casas, se preocupam e tentam fazer algo de útil. Assim nasceram muitos grupos de voluntários de várias áreas contribuindo com o que quer que saibam fazer e se coordenando sem uma liderança centralizada.

Eu mesma estou fazendo parte de um desses projetos, o Brasil Contra o Vírus, onde gerencio a área de tecnologia e comunicação. O projeto nasceu com um pequeno grupo de pessoas lideradas pela Thabata Ganga, mas cresceu em uma estrutura horizontal. Enquanto as lideranças se reúnem com hospitais, indústrias e entidades governamentais para tratar de temas como segurança e logística, grupos pequenos se organizaram para criar e testar protótipos, buscar doações, colaborar com outros projetos. Na parte de tecnologia, três projetos interdependentes estão sendo desenvolvidos por pessoas que se organizaram e se auto-gerenciam para entregar algo que seja útil à população em tempo hábil.

Na agilidade, muito se fala sobre ownership ou sentimento de dono para tornar as pessoas mais motivadas. Uma pandemia que coloca a todos nós em risco é a maior motivação que alguém pode ter para fazer algo, pois as vidas que vamos ajudar a salvar pode ser de nossos familiares ou amigos. Em momentos de caos, as verdadeiras lideranças emergem.

Criatividade e autonomia

Outro aspecto da agilidade que tenho visto tanto no projeto de que participo quanto nas redes sociais é a criatividade das pessoas ao propor soluções. Quando estamos na zona de conforto, muitas vezes, temos medos de expor nossas ideias e ser ridicularizados por nossos superiores e pares. Mais uma vez, a pandemia tira esse fator. Um possível constrangimento não é nada perto de um vírus capaz de colapsar o sistema de saúde de um país continental como o Brasil ou os EUA em poucos dias. Muitas das ideias propostas nunca serão implementadas, mas, no meio delas, algumas boas estão surgindo.

O brasileiro é conhecido por seu “jeitinho” para resolver as coisas, e, quando contido em limites legais e éticos, o “jeitinho” se transforma em inovação.

Ninguém quer que uma situação como a que estamos vivendo seja necessária para fomentar a inovação. Ninguém é obrigado a utilizar o tempo de isolamento para inovar. Mas podemos incentivar aqueles que estão colocando em prática suas ideias para ajudar e podemos aprender com eles a como agir no futuro.

Transparência, inspeção e adaptação

Por fim, a pandemia está ressaltando a importância dos três pilares do Scrum: Transparência, inspeção e adaptação.

Tanto no Brasil quanto no resto do mundo, a transparência na quantidade de casos parece ser um problema. Não digo que seja por má vontade ou más decisões dos governos, mas principalmente pela rápida velocidade de contágio, é impossível enxergar com clareza o tamanho do problema com que estamos lidando. Qualquer trabalho fica mais difícil quando as pessoas envolvidas não possuem os dados de que necessitam para realizá-lo da melhor maneira possível.

O segundo pilar, inspeção, está presente no trabalho que os governantes e profissionais de saúde estão fazendo diariamente: Avaliar diariamente o que está acontecendo, dentro do seu escopo de atuação e de acordo com os dados disponíveis, para tomar suas decisões com base neles. A inspeção é o que permitirá que, pouco a pouco, as cidades voltem à normalidade à medida que o número de casos for diminuindo.

Depois vem o que, talvez, seja o mais importante tanto na agilidade quanto no controle da pandemia: Adaptação. Assim como um vírus sofre mutações, assim como os sintomas da doença podem diferir em cada região, assim como os remédios podem ter resultados diferentes para cada paciente, no mundo dos negócios, as coisas mudam muito rapidamente.

Citação de Stephen Hawking: Inteligência é a capacidade de se adaptar a mudanças.

A simples existência de algo como o novo Coronavírus em um mundo como o nosso faz com que a maioria dos 7 bilhões de seres humanos que habitam o planeta Terra tenha a sua realidade alterada de alguma forma. Por isso, a capacidade de adaptação será mais necessária do que nunca. As mudanças podem vir da maneira mais trágica possível, com a perda de alguém próximo, mas também pode ser algo mais sutil. Pode ser a mudança na forma de trabalho, nos nossos hábitos de consumo, de higiene. A mudança pode ser interna, ao percebermos o que realmente nos faz falta nessas semanas de isolamento social. Pode ser uma mudança grande ou pequena, mas ela virá. E, quanto mais rápido percebermos e agirmos diante das suas nuances do dia-a-dia, menos dolorido será o processo.

Isso é ser ágil.

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