[ARGENTINA] O Vento que Arrasa, de Selva Almada

“Não queria saber de pensamentos elevados. Religião era coisa de mulher, de fracote. O bem e o mal eram coisa de todos os dias, deste mundo, coisas concretas com as quais se lidava de corpo presente.”

O quanto é necessário para contar uma história? Para Selva Almada, muito pouco: algumas horas de interação entre duas famílias em uma oficina mecânica são mais do que suficientes para pintar uma tela brilhante sobre religião, relações familiares, desigualdades e a relação das pessoas com o mundano e o divino, além de traduzir os modos como a Argentina complexamente lida com suas feridas no contexto pós-ditadura.

Selva Almada, autora de 48 anos de idade nascida na província de Entre Ríos, na Argentina, escreveu “O Vento Que Arrasa” para retratar algumas das questões que atravessam a vida no interior de Argentina, já que grande parte dos(as) autores(as) contemporâneos(as) têm se focado em histórias vividas nas grandes cidades. Longe do ambiente e do ritmo cosmopolita de cidades como Buenos Aires, a novela conta a história do pastor evangélico Pearson e sua filha de 16 anos, Leni, que veem-se largados no meio de uma estrada quando seu carro quebra. Com a ajuda de um homem que passa pelo local, levam o carro até a oficina do mecânico Brauer e seu ajudante Tapioca, criado por ele como um filho. Todo o enredo se passa no intervalo de menos de dois dias, tempo que Brauer leva para consertar o carro do Reverendo.

Pouco sabemos sobre essas personagens, e o que delas chega até nós acontece por meio de flashbacks e recordações que nos oferecem alguns vislumbres a respeito de como se formaram aqueles arranjos familiares sem a presença de mães. Ainda assim, vamos rapidamente sendo afetados por suas histórias. Sobre Pearson e sua filha, aos poucos descobrimos a relação um pouco tensa entre um pai e uma filha que, sem casa fixa, viajam pelo país para “espalhar a palavra de Deus” e angariar fiéis para a igreja. A relação entre pai e filha é estranha e curiosamente próxima e distante; mesmo a proximidade parece sustentar uma espécie de abismo entre eles.

Genuinamente crente e excelente orador, o Reverendo Pearson vive só com a filha; nada menciona sobre a mãe de Leni, que aparece para os leitores apenas através das turvas memórias da adolescente a respeito do dia em que ela e o pai entraram em um carro e deixaram a mãe para trás, sem jamais voltar a mencionar qualquer coisa sobre ela.

“Isso queria dizer que estava muito feliz de tê-la ao seu lado, pensou Leni, mas ele nunca conseguia falar assim, diretamente: tinha sempre que meter Jesus no meio.”

A espiritualidade do Reverendo é confrontada com a figura mundana de Brauer, esse mecânico do qual pouco sabemos, exceto que é um homem que trabalha arduamente todos os dias e que vive com Tapioca e dezenas de cachorros, desde que a mãe do rapaz o deixou na oficina e foi embora. As diferenças culturais, sociais e de classe entre o Reverendo e o mecânico se mostram, dentre outras coisas, na visão que ambos têm da religião; mesmo havendo pontos comuns em suas histórias de vida, cada um seguiu seus caminhos de formas muito diferentes, e a vida reservou a eles também coisas muito distintas.

“Não queria saber de pensamentos elevados. Religião era coisa de mulher, de fracote. O bem e o mal eram coisa de todos os dias, deste mundo, coisas concretas com as quais se lidava de corpo presente. A religião, ele achava, era uma maneira de se librar das responsabilidades de cada um. Escudar-se em Deus, ficar esperando que alguém sabe a pátria, pôr a culpa no diabo pelas coisas ruins que qualquer um era bem capaz de fazer. Ensinara Tapioca o respeito pela natureza. Acreditava nas forças da natureza, isso sim. Mas nunca falara de Deus. Não achou que fosse necessário falar de uma coisa que não estava em seu campo de interesses.”

Ao ver Tapioca, um jovem tímido e silencioso, o Reverendo vê nele uma alma pura e entende, ali, que sua missão cristã é levá-lo consigo em sua viagem e apresentá-lo à vida na igreja. Transpondo para Tapioca — de nome de batismo José, como o pai de Jesus — suas aspirações enquanto pastor, Pearson acredita que ele, por ser jovem e não carregar os pecados que ele próprio carrega, tem todo o potencial necessário para se tornar um grande expoente da palavra divina. E, ao apresentar a narrativa cristã do mundo ao rapaz, ele, que jamais havia ouvido falar em nada do gênero, sente-se intimamente afetado pelas promessas do céu e da vida cristã. O Reverendo, então, busca convencer Brauer a deixá-lo levar o rapaz consigo, o que causa uma série de conflitos entre eles que expõem as desigualdades que marcam suas existências.

Selva Almada joga com a dualidade entre transcendente e terreno a partir das personagens de Brauer e Pearson e, também, a partir do próprio ambiente no qual se passa a história. A aridez daquela terra do Chaco argentino, que pede pela água da chuva, vai formando um cenário que espelha as áridas trajetórias de vida dessas pessoas, tão diferentes entre si mas que carregam igualmente as marcas de vidas duras e de relações complexas com a família e com o mundo.

“Primeiro o castigo da seca, depois o castigo da chuva. Como se aquela terra não parasse de fazer merda e tivesse de ser castigada o tempo todo. Não afrouxava nunca.”

Então o vento anuncia a chuva que oferecerá algum respiro àquela terra e, também, àquelas pessoas. Em um dos capítulos mais incríveis do livro, narrado da perspectiva de um dos cachorros que sente a chegada da tempestade, Selva Almada vai dando vida ao vento que, pelo título, sabemos já que arrasa mas não sabemos ainda como. Quando cai a tempestade, um breve momento de comunhão liga essas quatro personagens que, debaixo da segurança do teto da oficina, observam a água que cai abundantemente.

Mas é esse momento de aproximação, e de relação com a chuva e com a natureza, que novamente a autora brinca com a díade humano-divino, quando Brauer apresenta o ritual passado a ele por sua mãe, para frear uma tempestade. Diferentes leituras para a chuva — divina, natural, passível de ser modificada pela intervenção humana — vão novamente espelhando as diferentes formas com que as personagens se assemelham e se diferenciam, ao mesmo tempo.

“Em campo aberto, de cada para a tempestade, crava-se um machado na terra, formando uma cruz, três vezes seguidas, e no último golpe deixa-se o machado enfiado na terra. Pode parecer mentira para quem nunca viu, mas o céu se abre, a tempestade furiosa se transforma num vento revolto, passageiro. Então a tormenta toma distância, com o rabo entre as pernas, rumo a algum lugar onde ninguém conheça o segredo. Mas quem o possui deve também usá-lo com precaução. Pelas gretas abertas, a terra pedia a gritos por um pouco de chuva. Não era o momento de desviar o curso das coisas.”

E no meio da tempestade, diante dela e depois dela, vão ficando cada vez mais suaves e tênues as fronteiras dessa díade e dessas trajetórias. O vento arrasa, modifica tudo aquilo que está em seu caminho, para o bem e para o mal. Logo, a tempestade que, ao ser observada pelos quatro os aproximou, vai-se embora e dá lugar a novos afastamentos, que demandam de Pearson, Brauer, Leni e Tapioca que construam pontes por meio das quais possam novamente se aproximar.

“À comunhão que se dera lá fora, sob a intempérie, seguia-se, dentro de casa, a introspecção.”

“O vento que arrasa” é uma espécie de road trip às avessas: não se trata de uma história que se passa na viagem, mas exatamente no momento em que a viagem é interrompida. Enquanto nas tradicionais road stories é o caminho que permite que as personagens entrem em contato com seu passado, presente e futuro, aqui é a brusca interrupção desse caminho que faz com que todas essas questões emerjam.

Abri esse texto me perguntando sobre o quanto de matéria é necessário para que se produza uma história. A competência com que Selva Almada constrói suas personagens e cria diante dos olhos do leitor a materialidade do Chaco argentino mostra que é preciso pouco. A forma como a história vai sendo construída e a questão de se o Reverendo levará ou não Tapioca consigo ao final da tempestade criam um crescente suspense que, para leitores acostumados à grandes reviravoltas narrativas, se resolve com uma delicadeza e de forma tão ordinária que, por ser absolutamente comum e, ao mesmo tempo, divino, faz com que fechemos o livro boquiabertos. Selva Almada nos lembra que as grandes histórias podem não ser grandiosas. Podem ser pequeníssimas histórias comuns.

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Luisa Bertrami D'Angelo
Mulheres do Mundo — uma escritora de cada país

Psicóloga social, pesquisadora e apaixonada por livros e gatos, especialmente o seu, o Chicó.