[BANGLADESH] Uma era de ouro, de Tahmima Anam

Por tudo que ela tinha perdido, tudo que ela queria era não perder novamente.

Eu tenho muita certeza de que a melhor narrativa sobre grandes acontecimentos encontram-se entremeadas às pequenas narrativas singulares de pessoas comuns. Olhar o micro para ver o macro: é isso que Tahmima Anam faz no livro Uma era de ouro* [A Golden Age], ao contar a história da luta pela independência de Bangladesh pelos olhos de Rehana Haque, seus filhos Sohail e Maya e seus vizinhos e amigos no bairro de Dhanmondi, em Daca.

A primeira coisa me me impressionou na leitura do livro foi o fato de eu saber tão pouco sobre a história de Bangladesh. Até se tornar um país independente, em 1971, Bangladesh era Paquistão Oriental — que, com o Paquistão Ocidental, eram parte de um mesmo território, ainda que separados pela Índia. A separação foi efeito da ocupação colonizadora britânica, que dividiu o subcontinente asiático em dois, separando, assim, as duas partes do Paquistão. O poder político e econômico encontrava-se no Paquistão Ocidental e quando, em 1971, um partido do Paquistão Oriental ganhou a maioria parlamentar, líderes do Paquistão Ocidental impediram que ele tomasse posse, gerando instabilidade política. Diante deste cenário, irrompe uma disputa entre o exército paquistanês, que invadiu o Paquistão Oriental, seu próprio território, e deparou-se com movimentos armados de resistência que lutam pela independência do Paquistão Oriental.

Com a invasão do exército por meio da Operação Searchlight, hindus, civis, estudantes e militantes foram massacrados, num genocídio que matou entre 300.000 e 3.000.000 pessoas — o número é incerto, até hoje. A guerra pela independência durou nove meses e terminou quando, com o apoio da Índia, o Paquistão Oriental conseguiu render o exército paquistanês, nascendo assim Bangladesh.

Não, nunca tinha havido um outro tempo; (…) havia somente esse tempo, essa vida, essa cheia e carregada era, à qual eles estavam atados sem escolha, sem conhecimento, somente tendo suas paixões, seus amores para guiá-los e carregá-los.

A história contada por Tahmima Anam através da personagem Rehana se passa majoritariamente durante esses nove meses mas, antes, relata o momento em que, após a morte do marido, Rehana vê-se em uma disputa judicial com seu cunhado e a esposa pela custódia de seus filhos. Tendo a justiça a considerado financeira e pessoalmente incapaz de cuidar dos filhos, eles são enviados para a família do falecido pai, em Lahore, Paquistão Ocidental, enquanto Rehana permanece em Daca, Paquistão Oriental, agora sem os filhos.

Eu abri mão da única coisa que você me deixou. Quando o juiz me perguntou se eu sabia com certeza se eu seria capaz de cuidar deles, eu não consegui me fazer dizer que sim. Eu estava muda, e em meu silêncio ele viu minha hesitação. Foi por isso que ele os entregou. Fui eu; minha culpa. De mais ninguém. Não culpo seu irmão por querê-los. Quem não os quereria? Eles são a sua imagem cuspida e escarrada.

O evento marca Rehana profundamente. Sem a custódia dos filhos, ela busca meios de comprovar sua capacidade financeira de mantê-los e, por meio de um evento que se mantém como segredo, consegue construir uma casa anexa a seu bangalô e a aluga para o casal Sengupta, obtendo, assim, a renda necessária para reaver a custódia dos filhos sem precisar se casar novamente.

Mas desde que as crianças tinham voltado, a urgência de ser amada daquela forma desapareceu dela por completo. Era muito arriscado. Podia facilmente dar errado. E o pensamento de que algum homem pudesse ser cruel com suas crianças era suficiente para que bile subisse à sua garganta.

A perda dos filhos se atualiza na experiência de Rehana quando, diante das tensões que vão culminar na guerra pela independência, ambos os seus filhos, agora entrando na idade adulta, universitários, veem-se envolvidos com política e com movimentos libertários. Com medo de perdê-los novamente, Rehana opta por apoiá-los em suas escolhas, e o que ela vive é uma mistura de medo e orgulho.

A visão de Rehana a respeito dos movimentos de libertação e de toda a situação política do país é atravessada pelo fato de que ela e sua família têm origens no Paquistão Ocidental. Rehana mudou-se para Daca diante da possibilidade de casar-se com o falecido marido, e desde então “adotou” o território como seu. Todo seu envolvimento com a questão política é mediado por este lugar híbrido que ela, falante de bengali e urdu (a língua do Paquistão Ocidental), ocupa. O amor pelo seu território, bem como o amor de seus filhos pelo país que eles querem ver nascer independente, é constantemente atravessado por tensões originadas na sua“língua mestiça” — mestiça porque misturava Urdu e Bengali; porque misturava amor e culpa; porque misturava medo e esperança.

Conforme ela se voltou para a cozinha, Rehana pensou se ela deveria ir à reunião. Eles sempre a diziam que ela deveria ir com eles aos protestos e encontros, mas, não sendo jovem ou parte do movimento estudantil, e não tendo ido a nenhuma conferência do Partido Nacionalista ou às eleições das uniões estudantis, e não tendo, como Sohail e Maya, lido o Manifesto Comunista e sentado por horas a fio sob as árvores debatendo os menores pontos da resistência, ela não tinha as características adequadas de uma nacionalista. Ela não tinha a juventude ou a aparência ou as palavras. As palavras corretas, apesar de agora familiares a ela, não deslizavam facilmente por sua língua: “camarada”, “proletariado”, “revolução”. Elas eram duras, palavras precisas, e não capturavam os sentimentos ambíguos de Rehana sobre o país que ela havia adotado. Ela falava, fluentemente, o Urdu do inimigo.

Há tensão também em relação à cobrança que ela faz sobre si mesma por ter “perdido” seus filhos anteriormente. Movida pela culpa e pelo amor na mesma medida, e imersa em um desejo quase obsessivo de não perder os filhos novamente, Rehana define-se e define sua trajetória de vida pelo lugar de mãe que ocupa — mas longe de colocar esse lugar como estável e sempre desejável, a autora evidencia as pequenas tensões cotidianas, as complexas relações de Rehana com Sohail e Maya e com ela mesma, na medida em que as exigências que cria para si em relação à maternidade são, muitas vezes, exaustivas e inatingíveis.

Sua vida de sortes variadas a havia ensinado a nunca terminar nada. Ela sempre mantinha escondido um pouquinho — um pedaço de gengibre, um pau de canela, uma porção de arroz — caso da próxima vez que ela fosse comprar esses itens eles tivessem fugido dela, pela pobreza ou pela falta de confiabilidade na sorte do país.

Conforme Rehana vai envolvendo-se na luta política ao lado dos filhos — e em grande medida como estratégia para estar perto deles e protegê-los como for preciso — , ela vai descobrindo-se também para além da maternidade: suas posições políticas e suas relações pessoais vão sendo construídas, talvez pela primeira vez em sua vida, em torno também de seus desejos, e não só dos filhos. O que parece uma contradição é, na verdade, retrato da ambivalência na qual são tecidas as relações entre as pessoas: no contexto em que se torna ainda mais palpável a ideia de perder os filhos, dessa vez pela guerra, Rehana vai aos poucos encontrando a si mesma.

Era sempre nesse momento do dia que ela se permitia um momento egoísta, quando a casa, o mundo, tudo era dela, e não havia ninguém para amar, ninguém para salvar.

Conforme Rehana vai se aproximando da guerra, também nós, leitoras/es, o fazemos. Como uma pessoa envolvida sem efetivamente estar vinculada aos grupos de resistência — seu envolvimento se dá sempre na mediação feita pelos filhos, porque é pelo filhos e com os filhos que ela adentra a guerra — , os eventos que Rehana narra raramente são detalhes sangrentos da guerra, ainda que eles povoem uma ou outra narrativa, já que é inevitável narrar o que quer que se passe na guerra sem ser afetado pela violência. São os eventos cotidianos da relação de Rehana com os filhos, com os vizinhos, as muitas cartas que ela pensa em escrever para o marido morto, para as irmãs no Paquistão Ocidental, para Sohail e Maya, são as inquietações que lhe atravessam a cabeça no dia a dia em sua casa o foco da narrativa de Rehana. A escolha de Anam, neste sentido, é não só acertada como muito potente: deixa ver que a guerra, quando existe, existe em todos os lugares, nas mais pequenas coisas cotidianas.

O que era estranho se tornou comum. (…) O cenário da guerra estava se tornando familiar, e eles tinham encontrado seu jeito de viver nele.

Rehana vê-se, em determinado momento, gritando “Joy Bangla!” com outros militantes. Ela sente, ali, a força incendiária do grito. Mas Tahmima Anam mostra, em Uma era de ouro, que há também uma força incendiária nos pequenos gestos, nas escolhas duras e silenciosas que são feitas todos os dias na fina linha que separa liberdade, dependência, amor, medo, culpa, desejo, dor e alegria.

*Uma era de ouro é o primeiro livro de uma trilogia, seguido por O bom muçulmano [The Good Muslim] e Os ossos da graça [The bones of grace].

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Luisa Bertrami D'Angelo
Mulheres do Mundo — uma escritora de cada país

Psicóloga social, pesquisadora e apaixonada por livros e gatos, especialmente o seu, o Chicó.