[ETIÓPIA] Sob o Olhar do Leão, de Maaza Mengiste

“Um dia, ele contaria o seguinte ao pai: que os olhos morrem primeiro, que abrimos caminho para o pó e a cinza às cegas. (…) Um dia, perguntaria ao pai se ele sabia que a morte não mostra clemência em um corpo combatente, que aqueles que lutam sofrem o rigor da morte mais depressa do que os que permanecem submissos e deixam a morte aproximar-se devagar”.

No contexto de um conflito político e econômico que atravessa as atividades mais cotidianas de uma cidade ou de um país, desde o trajeto do trabalho à casa até o que, onde e quanto se compra de alimento, o que é possível negociar e o que é inegociável? Quanto, e até quando, os laços afetivos tecidos dentro de uma família suportam diferentes inegociáveis até que se construa uma ponte que os conecte? “Sob o olhar do leão”, aos meus olhos, parece explorar essa questão. Com a sensibilidade de quem conta uma história que atravessou a sua própria história, Maaza Mengiste nos permite adentrar alguns dos anos mais caóticos e sangrentos da história da Etiópia, particularmente na capital Adis Abeba: a queda do imperador Hailé Selassié e a instauração do regime militar comunista do Derg.

Assim como o fez Tahmina Anam ao abordar a luta pela independência de Bangladesh, Maaza Mengiste parte da experiência de uma família para nos apresentar os eventos que tomam forma com a tomada do poder pelo Derg: Hailu, médico respeitado, seus filhos Yonas e Dawit, sua nora Sara, esposa do mais velho Yonas e sua neta Tizita, filha do casal. O momento pelo qual passa a família é delicado: Selam, mãe de Dawit e Yonas, encontra-se gravemente doente no hospital onde Hailu trabalha.

“É preciso saber o seguinte sobre a agonia: ela chega com o luar, espessa como algodão, e imprime o silêncio em todos os pensamentos”

A escolha é acertada, primeiro porque adentrar grandes acontecimentos históricos pelas lentes de uma família específica nos dá elementos potentes para sentir com clareza que a História se faz de gente viva, em carne e osso; e segundo porque é por meio das tensões que surgem no contexto familiar que vamos tomando dimensão da questão que, acima, elenquei como central para a obra: o que se faz, como e por quais razões, quando seu país e a liberdade encontram-se ameaçados por muitas forças complexas e em constante movimento.

“O que sabemos sobre o tempo que temos? O que sabemos sobre qualquer coisa?”

Hailé Selassié foi o último Imperador da Etiópia. Coroado em 1930, se exilou em 1935 quando Benito Mussolini invadiu a Etiópia, tendo voltado ao país em 1941, sendo restituído imperador com a ajuda da Grã-Bretanha. Com o Imperador de volta e tendo chegado ao fim a Segunda Guerra Italo-Etíope, Selassié reuniu ainda mais prestígio, transformando-se em um ícone anticolonialista que livrou o país da Itália. Seu prestígio e toda a construção de sua imagem o aproximavam de uma divindade, e seu poder administrativo era imenso. No entanto, com o país mergulhado na crise e na fome, grupos começaram a se insurgir, questionando o comprometimento do Imperador com o povo etíope. Enquanto nos palácios do Imperador a comida era farta e as denúncias de corrupção eram muitas, muitos eram os que passavam fome nas cidades etíopes, especialmente no interior no país.

Um grupo de militares da capital dá, então, um golpe, em 1974, depondo o Imperador, que foi preso e posteriormente assassinado, em 1975. Com um discurso de que priorizariam o povo, o que fazem é implantar o terror e o medo em um país já fragilizado. Com práticas que se assemelham às do Khmer Vermelho no Camboja, a própria existência do Derg complexifica as discussões em torno da democracia, da violência de Estado e da ideologia.

“O que nunca foi pode de fato ser levado embora?”

A complexa relação entre os militares e grupos de estudantes e militantes de esquerda que lutavam pelo fim da desigualdade no país é encarnada, no livro, na figura de Dawit. Como muitos outros estudantes, Dawit junta-se aos militares no intuito de retirar o Imperador e levá-lo a julgamento, assim como outros ocupantes de cargos políticos. Com a promessa de julgamentos justos e de não derramamento de sangue, os militares depõem o Imperador. Mas logo vê-se que as promessas foram em vão, e o que seria uma junta de transição para uma Etiópia democrática rapidamente se transforma em um regime ditatorial responsável pela prisão e execução de opositores políticos “contra-revolucionários” em números que, segundo a Anistia Internacional, chegam às centenas de milhares. Agora opositor do regime do Derg, Dawit continua sua militância, na luta pela democracia — dessa vez contra aqueles que ele acreditou que a trariam, com o fim da era imperial.

Enquanto Dawit é o espírito rebelde da família, incansavelmente envolvido na resistência, seu irmão Yonas é seu oposto: cauteloso em envolver-se com política, seu objetivo principal é proteger sua família naquele contexto de incerteza e violência. Hailu, o pai, também tende para a cautela em detrimento do envolvimento na luta; desde o início crítico aos militares que derrubaram o Imperador, ele observa o filho caçula envolver-se na resistência, primeiro a favor e depois contra os militares, com a preocupação de um pai que, diante do abismo que se criou entre ele e o filho após o adoecimento e a morte de sua esposa, preza pela segurança do filho mas não sabe mais como se comunicar com ele.

Mas conforme a história se desenrola, Yonas, Hailu e toda a família veem-se cada vez mais envolvidos em acontecimentos que tocam questões políticas, independentemente de seu desejo de se envolver. Parentes e amigos começam a sumir ou a ser encontrados mortos pelas ruas. Os serviços médicos de Hailu veem-se diante da necessidade de se envolver com um caso que claramente é delicado e perigoso. Torna-se cada vez mais difícil ficar afastado.

Diante desse cenário, as diferentes inserções dos membros da família em eventos relacionados à luta pela democracia vão reconfigurando as noções do que pode e do que não pode ser negociado diante da violência. Algumas das distâncias entre eles parecem se alargar ao mesmo tempo em que outras parecem tornar-se cada vez mais estreitas.

Se eu pudesse traduzir o livro em uma única pergunta, acredito que essa pergunta seria: o que é possível a cada um fazer diante da violência cotidiana de uma ditadura? Certamente uma possibilidade é envolver-se na resistência armada, na luta de guerrilha contra o regime, como o faz Dawit. Mas o que Maaza Mengiste mostra, por meio dessa família, é que são múltiplas e diversas as maneiras por meio das quais o enfrentamento se faz e a coragem se mostra. Todo ato é político, toda escolha é política — do acolhimento à dor de uma mãe que perde um filho ao reconhecimento de que, às vezes, perguntas são dispensáveis e o silêncio é a melhor resposta, a resposta possível.

“O que nunca foi pode de fato ser levado embora?”

O título da obra, “sob o olhar do leão”, faz uma dupla referência à figura do leão que estampou a bandeira imperial etíope e à simbologia deste que conhecemos como o “rei da selva”, embebido de coragem para a defesa do seu território e dos seus. Todas as personagens do livro são, cada qual a sua maneira, leões: na tentativa de conciliar o passado a um projeto de futuro, são todos corajosos diante a violência — não porque entregam-se de corpo e alma à luta, mas porque, apesar de todas as razões para não fazê-lo, entendem que não há outra forma senão transformar o medo e a dor em força e esperança.

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Luisa Bertrami D'Angelo
Mulheres do Mundo — uma escritora de cada país

Psicóloga social, pesquisadora e apaixonada por livros e gatos, especialmente o seu, o Chicó.