[JAPÃO] Memórias de um urso-polar, de Yoko Tawada
“Toda grande personalidade, capaz de um ato que muda o mundo, deve ter sido adotada por um animal e alimentada por ele.”
Eu compro livros pela capa. Sei que o ditado nos ensina que não devemos, mas confesso que, pra mim, capas são importantes. O belo desenho de um urso e uma tenda de circo, acompanhados do título em uma fonte feita de bolinhas idênticas àquelas que circundam espelhos de camarins, me capturaram logo de cara. Ao ler a sinopse, o espanto e a estranheza de descobrir que se tratava de um livro cujos protagonistas eram três gerações de ursos-polares tornaram impossível resistir à tentação de lê-lo.
Histórias com personagens animais não são novidade. Desde nossa infância somos apresentados a fábulas e narrativas produzidas a partir de personagens não humanos antropomorfizados que nos permitem entrar em contato com algo que fala de nós, humanos. Não é propriamente o fato de serem ursos-polares os protagonistas do livro da japonesa Yoko Tawada que tornam esse um livro especial; é sua a capacidade de articular realidade e absurdo em uma narrativa tocante, comovente e sagaz, em que a delicadeza e singeleza das reflexões de um urso acompanham a sofisticação e a dureza dos processos que instauram instituições e burocracias tão assustadoramente humanas.
Yoko Tawada nasceu no Japão em 1960, mas na década de 80 se mudou para a Alemanha. Ela já morava há tempos no país quando, em 2006, o mundo foi capturado pela fofura de um urso-polar que, no zoológico de Berlim, havia sido rejeitado pela mãe e adotado por seu criador. Como grande parte do mundo, a autora também se viu atraída para a história do pequeno Knut — inspiração para a escrita deste livro: “Memórias de um urso-polar” conta a história de três gerações de ursos-polares artistas, Knut, sua mãe Toska e sua avó. A partir das relações que essas três gerações de ursos têm com humanos em diferentes países e momentos históricos, Yoko Tawada passeia por alguns dos mais relevantes eventos do nosso século como a Guerra Fria, o desfazimento da União Soviética e a queda do Muro de Berlim. E enquanto constrói esse mapa histórico-geográfico, tece também outros mapas menores, mais locais, cujos elementos que os constituem são tanto humanos quanto não-humanos.
A primeira parte do livro conta a história da avó de Knut. Nascida na Rússia, ela narra, em primeira pessoa, a dura tarefa de escrever sua autobiografia.
“O escrever não se diferencia tanto da hibernação. Aos olhos dos outros, eu poderia parecer adormecida, mas na toca de urso do meu cérebro eu dava à luz minha própria infância e a criava até vê-la crescer. (…) Era uma sensação solitária, a de escrever uma autobiografia. Até ali, tinha usado a língua principalmente para transportar uma opinião para fora. Agora a língua ficava em mim e tocava pontos fracos dentro de mim. Era como se eu estivesse criando algo proibido. Eu me envergonhava daquilo, não queria que ninguém lesse a história da minha vida. Mas, quando vi que as letras cobriam inteiramente o papel, senti desejo de mostrá-la a alguém.”
O processo da escrita de sua autobiografia evoca memórias da época em que ela, ex-membra de um circo, e seu treinador Ivan ensaiavam números artísticos para a plateia — memórias com o gosto primaveril de um luto que pode até rejuvenescer, mas machuca ao nos colocar em contato direto com nosso passado.
“O escrever era como uma acrobacia mais perigosa do que dançar sobre uma bola. Era mesmo um trabalho árduo aprender aquela dança, tanto que cheguei a quebrar os ossos durante um ensaio, mas ao fim consegui atingir meu objetivo. Ao final, estava certa de que conseguia me equilibrar em cima de um objeto rolante, mas não sei se posso afirmar o mesmo da escrita. Para onde rolava a bola do escrever? Ela não podia simplesmente rolar para a frente, pois assim cairia fora do palco. Minha bola deveria girar em seu próprio eixo e ao mesmo tempo circular dentro do centro do palco. Como a Terra ao redor do Sol.”
A narrativa em primeira pessoa mistura humanos e não-humanos num mesmo contexto em que interagem, dialogam, conversam, discutem e criam laços, borrando as fronteiras do que seria a natureza. Tendo se aposentado dos palcos em decorrência de problemas nos joelhos, a ursa passa a exercer outras tarefas mais “administrativas”, sendo uma de suas incumbências participar das mais diversas conferências sobre os mais diversos tópicos. Os casos por ela contados são extremamente cômicos e desconcertantes — por exemplo quando ela narra suas experiências participando de debates e mesas redondas pedantes e burocráticas:
“‘Não posso ser vegetariana’, eu disse rapidamente, mesmo sabendo que meus antepassados e parentes distantes haviam sobrevivido sem carne. Eles comiam sobretudo frutas e vegetais, ocasionalmente um caranguejo ou peixe. Lembrei-me de uma conferência sobre o capitalismo e o consumo de carne, onde haviam me perguntado por que eu matava outros animais. Não soubera responder.”
O desconcerto, aliás, atravessa toda a obra — da forma mais potente que é possível agir o desconcerto. É a estranheza que nos mobiliza. Estamos diante de uma ursa que, na Alemanha Oriental, decide se escreverá em russo ou em alemão a história de sua vida enquanto perambula por cidades, apartamentos e países em relação com amigos, vendedores de livro e editores que ela analisa mais pelo cheiro do que pelas palavras. Vai se tornando cada vez mais difícil saber quem é humano e quem não é, e é por causa dessa estranheza que se torna possível ver, pela história dessa ursa, como funcionam os mecanismos que gerem as diferenças e as desigualdades na sociedade humana. Sua tensa proximidade com aquilo que é humano evidencia, como seu avesso, tudo aquilo que a torna diferente; e essa é uma via de mão dupla, que nos convoca a pensar que se estamos certos de que somos totalmente diferentes dos animais que chamamos “irracionais”, isso só pode ser verdade se considerarmos também o avesso dessa diferença, que é a semelhança.
“Após a morte de todas as criaturas vivas, todos os nossos desejos não cumpridos e palavras não ditas seguiriam à deriva na estratosfera, combinando-se uns com os outros e permanecendo na terra como neblina. Como a neblina seria vista pelos vivos? Iam se esquecer de lembrar-se dos mortos e se entregar a comentários meteorologicamente banais como: “Que neblina, hein?””.
Da Rússia, ela vai para o que naquele momento era a Alemanha Oriental e, posteriormente, para o Canadá, onde nasce sua filha Toska. A segunda parte do livro gira em torno dessa sua filha. Exímia artista dos palcos da Alemanha Oriental, Toska carrega consigo tudo aquilo que sua mãe foi: uma autora internacionalmente reconhecida cuja autobiografia se esgotou rapidamente das prateleiras. Mas o destino se encarrega de também conduzi-la a um circo, onde conhece sua treinadora e, com ela, constrói uma relação de muita proximidade.
Diferentemente da primeira parte do livro, aqui não é a ursa que narra em primeira pessoa sua história, mas sim a treinadora. E diferentemente da mãe, que contava os causos de suas interações em que falava a mesma língua que os humanos, aqui a relação de Toska e sua treinadora não se dá pela língua falada, mas pelo elo invisível que se cria entre elas a partir de suas línguas de carne em um dos números que elas apresentam no circo: o beijo da morte.
“Uma alma humana acabou sendo menos romântica do que eu tinha imaginado. Era feita principalmente de línguas, não somente línguas comuns e compreensíveis, mas também de fragmentos quebrados de língua, as sombras de línguas e as imagens, que não podiam ser palavras.”
A mudança na forma como Yoko Tawada faz humanos e não-humanos dialogarem entre si leva às últimas consequências a tentativa da obra em tornar pouco visíveis as linhas que nos separam dos bichos, desestabilizando noções como “natureza” ou “humanidade”. A operação é calculada, pensada, assim como são outras pequenas passagens e escolhas de palavras que evidenciam que nada nesse romance é escrito em vão: tudo tem como objetivo tencionar nossas certezas a respeito da superioridade dos seres humanos em relação ao resto do planeta.
Essa parte do livro faz cômicas e relevantes reflexões a respeito do trabalho e dos direitos humanos. Afinal, como falar de direitos humanos para ursos? São direitos humanos? Direitos animais? O olhar afiado de Yoko Tawada aqui evidencia que estão certas as análises que a aproximam de Franz Kafka: a discussão sobre as leis, a burocracia e as instituições de controle cresce, e aquilo que separa humanos e animais é muito menor do que julgaria um Gregor Samsa.
“Para nossa surpresa, já uma semana depois da chegada, os ursos-polares fundaram um sindicato. (…) Os ursos-polares podiam conduzir debates políticos em alemão fluente. De sua boca, saíam novos termos técnicos, que provavelmente vinham dos movimentos trabalhistas. De suas exigências, não havia nada que se poderia chamar de tipicamente “urso”. (…) Mesmo que nós seres humanos também precisássemos de um chuveiro ou de uma cantina, nunca tivéramos a coragem de reivindicar qualquer coisa. Trabalhávamos todos os dias tão apressados que já havíamos esquecido havia tempos o conteúdo de nosso contrato de trabalho.”
Também a maternidade aparece como elemento central. Toska, que no futuro ficaria conhecida como a mãe que abandonou seu bebê, serve também como uma espécie de lupa através da qual a autora deixa ver outras formas de maternagem que são deslegitimadas quando atravessadas por raça, classe e nacionalidade.
“Havia, inclusive, profissões em que as mães tinham de ficar meses a fio sem ver seus filhos. Ninguém as acusava de nada. Não conhecíamos o amor materno, ele não era sequer um mito. As igrejas estavam fechadas, lá onde a Virgem Maria segurava seu filho nos braços de forma exemplar. Quando a supressão da religião foi dissolvida, o mito do amor de mãe surgiu como uma miragem no horizonte das fronteiras internacionais. Deixava-me muito triste que, após a quebra do Muro, Toska tenha sido muito duramente criticada por ter rejeitado seu filhote Knut. Alguns diziam que ela o deixara em mãos alheia, porque vinha da Alemanha Oriental. Outros escreviam no jornal que havia perdido seu instinto materno porque trabalhara em um circo hostil aos animais sob o típico estresse socialista. O termo “estresse” parecia não condizer com o lugar. Não havia estresse antes da queda, somente sofrimento. O termo “instinto materno” era tão longínquo quanto. Para os animais, não é o instinto, e sim a arte que permite criar seus filhotes. Com os seres humanos não pode ser muito diferente, ou não adotariam crianças diferentes, de outras espécies.”
Assim, a experiência de Toska é, de alguma forma, toda a experiência do circo, que passamos a olhar não com os olhos ocidentais e modernos que simplesmente julgam absurdas as práticas com animais, mas com olhos que se despem dessa humanidade que, na tentativa de humanizar, pode muito bem desumanizar.
“Existem muitos costumes e formas de conduta que são naturais para quem nasceu e cresceu no circo. Mas são incompreensíveis ou inaceitáveis para os filhos de trabalhadores. Claro, muito disso pode ser aprendido posteriormente. Mas há diversas coisas que não estão escritas em lugar algum. Esse é o motivo pelo qual um cidadão normal acha difícil sobreviver ao circo. (…) O circo desenvolveu suas próprias leis da natureza: uma pessoa que parece desajeitada ao andar é um atleta. Uma pessoa que consegue fazer a plateia rir deve ser levada a sério.”
É o desdobramento da maternidade de Toska que nos leva à terceira e última parte do livro, sobre Knut. Mais uma vez, a linguagem muda: Knut não fala língua humana, mas entende humanos e pensa em linguagem humana. Sua relação com seu cuidador, Matthias, é narrada pelos olhos singelos e amorosos de um urso bebê que vê naquele homem o cuidado e o amor que, na natureza (principalmente a humana) se atribui à mãe.
“Quando crescer, quero casar com Matthias e viver com ele até que a morte nos separe. Mas ele não disse nada sobre o parentesco genético entre ursos-polares e Homo sapiens. Na frente da área do urso-do-sol, comparei-me com Matthias e com o urso-do-sol. Não importava sob qual ângulo eu olhasse: a semelhança entre mim e Matthias era maior do que a semelhança entre mim e o urso-do-sol.”
Conforme apreende o mundo, Knut vai também descobrindo a si mesmo como sujeito — e digo isso já sem medo de que pareça estranho dizer que um urso é um sujeito, como chamamos a nós, humanos, na modernidade. A descoberta de si e do mundo faz com que ele se pareça com crianças humanas que, com seus por quês e sua ingenuidade, desestabilizam qualquer certeza sobre nossa existência, as regras sociais e o mundo do qual fazemos parte.
“Knut decidiu em um curto ataque de raiva nunca mais estabelecer contato com o urso-do-sol. Knut era Knut. Por que não deveria ser Knut? Mas era impossível tirar o comentário do urso-do-sol da cabeça. Ao observar com atenção uma conversa entre Matthias e Christian, era possível identificar imediatamente que Matthias não chamava a si mesmo de Matthias. Ele não usava seu próprio nome, como se não tivesse nada a ver com ele, e o transferia para as outras pessoas. Que fenômeno curioso! Como Matthias chamava a si mesmo? “Eu”. O que era ainda mais curioso era o fato de que Christian também se chamava de “eu”. Como não se confundiam, se todos usavam a mesma palavra para se referir a si mesmos?”
Seja com Knut e Matthias, com Toska e sua treinadora ou com a ursa avó e Ivan, o que essas relações entre ursos e humanos nos mostra são as tênues linhas que produzem afeto, violência, controle, agência e sujeição. Li em um texto sobre o livro que, na história, humanos e animais vivem “como se fossem iguais”. Pra mim, essa é a pior leitura possível dessa obra, a que mais a despotencializa; porque não se trata de sermos iguais aos animais — o que evidentemente não somos. Mas nossa não-igualdade não se traduz automaticamente em diferença, ou melhor, nossa diferença não precisa necessariamente se traduzir em desigualdade. O que Yoko Tawada faz, nesse que é um dos livros mais magníficos e impressionantes que já li na vida, é aproximar e distanciar o tempo todo.
Desfazendo qualquer noção possível do que seria “natural” tanto na natureza quanto no que chamamos de humanidade, essa história nos permite pensar, a partir de ursos, como nós, humanos, fazemos parte do planeta. Nos vemos nos animais, naquilo que não somos; nessa diferença, ao abraçar nossa animalidade, podemos questionar também aquilo que há de pior no humano — o poder, o controle, a violência. Ler esse livro é descobrir-se mais humano ao mesmo tempo em que menos humano. É descobrir a possibilidade de ir além das dicotomias e buscar, no fino equilíbrio entre o que nos diferencia e o que nos aproxima, aquela pequena coisinha, qualquer que seja ela, que faz com que nos conectemos com o outro. Seja esse outro um humano ou um urso.