A desmarginalização como abertura para o desejo

Uma resenha de “A vida mentirosa dos adultos” de Elena Ferrante

Taís Bravo
Mulheres que Escrevem
6 min readNov 11, 2020

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Há um tempo desenvolvi a teoria que Elena Ferrante é o Harry Potter da mulher adulta. Não que exista alguma semelhança no que diz respeito aos temas dessas obras, pelo contrário, os livros de Ferrante passam longe do universo mágico de Hogwarts. No entanto, o fascínio que essa autora provoca em suas leitoras me remete à experiência dos adolescentes dos anos 2000 que aguardavam ansiosamente para mais um volume das aventuras de Harry Potter. O mercado editorial até criou um nome para esse fascínio: febre ferrante. Os romances de Ferrante parecem mesmo ter um efeito de contágio, infectando mulheres de diferentes faixas etárias que logo se encontram, formam vínculos e criam comunidades em torno de tais livros. Eu sou uma delas e sou filha de uma delas. Há quatro anos, eu e minha mãe nos rendemos aos dias de abandono e, desde então, devoramos todos os livros de Elena Ferrante assim que são lançados. Portanto, nós duas aguardávamos “A vida mentirosa dos adultos”, romance mais recente de Ferrante que foi publicado no Brasil pela editora Intrínseca, como um encontro marcado.

A trama de “A vida mentirosa dos adultos” apresenta muitos dos elementos constitutivos do universo ferrantiano. Giovanna, a narradora da trama, é filha de uma família que ascendeu socialmente pela via da intelectualidade; tanto seu pai quanto sua mãe são professores em renomadas escolas de Nápoles. Como filha de seus pais, Giovanna cresce em uma casa que preza pela educação como um caminho de progresso e racionalidade — um caminho que é almejado por tantas outras personagens de Ferrante, como Lila e Lenu na tretalogia napolitana. E é justamente quando Giovanna falha em cumprir com as expectativas familiares, ao se mostrar uma aluna de rendimento medíocre, que a sua narrativa tem início. As suas notas baixas na escola geram um desconforto familiar e um dia seu pai fala com hostilidade que Giovanna está a cada dia mais parecida com Vittoria. Essa frase que Giovanna, diz ter escutado sem querer, provoca uma série de movimentos transformadores. Vittoria é a irmã de seu pai, uma figura mal vista em seu lar. Ao ser igualada a essa mulher que ela só conhece a partir de seu pai como alguém detestável, Giovanna decide que precisa conhece-la por conta própria. Precisa comprovar se o futuro que a aguarda se encontra ou não no rosto de Vittoria.

Mas ir em busca de Vittoria implica em ir de encontro às suas origens. Essa tia é, portanto, um motor disruptivo na história. Ela provoca uma desestabilização na medida em que representa tudo aquilo o que os pais de Vittoria tentaram deixar para trás: o bairro, o dialeto, a pobreza, a sujeira, a insensatez, a falta de educação. Ao entrar em contato com Vittoria, Giovanna ganha novos referenciais para observar a sua própria casa. E quanto mais observa, mais se dá conta dos conflitos que habitam o que parecia ser uma realidade ideal. A convivência com Vittoria coincide (e agrava) com uma fase de perda da inocência. E o custo dessa perda é também uma experiência de desamparo. Em um dado momento, Giovanna já não sabe mais em quem confiar. Seus pais se mostram pessoas tão falhas e incoerentes quanto sua tia e os ideias que formaram sua infância revelam-se como uma performance hipócrita e vazia. Em meio a isso, ela ainda precisa lidar com um corpo que fala e toma forma para além do seu controle, um corpo lido socialmente como um corpo de mulher que invade os limites da sua subjetividade. Portanto, nesse romance de Elena Ferrante, tornar-se adulta, para uma garota, é uma experiência de perda e contaminação.

Para lidar com esse desamparo, Giovanna assume uma postura à espreita. Em estado de constante alerta, ela mantém os olhos e os ouvidos atentos. Derivantes da palavra “vigiar” aparecem ao longo de toda a trama. Ela vigia o corpo, a linguagem, o desejo. Tenta se manter o mais limpa possível e quando não consegue, experimenta o caminho oposto. Giovanna se vigia e vigia aos outros com a expectativa de entender quais são as regras do jogo ou de encontrar um modo de existência possível. A vigilância é, então, uma resposta à perda da inocência.

A vigilância é também um tema ferrantiano. No ensaio “Frantumaglia”, que se encontra no livro homônimo também publicado pela editora Intrínseca, Ferrante explica uma sensação que acompanha as narradoras de seus dois primeiros romances, “Dias de abandono” e “Um amor incômodo”. Para isso, recorre ao dialeto de sua mãe usando o termo “frantumaglia”, uma palavra que sintetiza um conjunto de sensações. A frantumaglia também está presente na tetralogia napolitana e, nesses livros, foi traduzida como desmarginalização. Desmarginalizar-se, para essas personagens, é um estado de mal estar em que tudo que as constitui mostra-se subitamente destinado a se perder. É um contato dilacerante com a perda.

Contudo, é a partir da experiência da frantumaglia que as narradoras de Ferrante desenvolvem uma percepção particular da realidade e delas mesmas. Segundo Ferrante, suas personagens são “mulheres que exercem uma vigilância consciente sobre si mesmas”. Essa autovigilância, ao contrário de um controle exercido externamente por figuras de autoridade masculinas, se relaciona com o desejo de seauto aprimorar, “de expandir a própria vida”. Assim, essas mulheres vigiam, sobretudo, o passado como um antídoto para prevenir uma repetição das histórias de seus fantasmas pessoais. E vigiam a si mesmas para dar um passo a mais, para ampliar as suas possibilidades de existência em vez de reproduzir tramas já predeterminadas. Ferrante chama essa vigilância feminina, que tem mais a ver com expansão do que com controle, de vigência. Para ela, essas mulheres vigentes insistem na necessidade de viver e fazem isso com uma energia violenta, com um vigor determinante.

Ao observar atentamente os seus pais e a sua tia Vittoria, a narradora de “A vida mentirosa dos adultos” tenta desviar da origem familiar como um destino. Para descobrir quem deve ser, que tipo de vida adulta deve aderir ou criar, Giovanna desenvolve uma postura vigente. Ela vai em busca da origem que o pai escolhe apagar, não como um destino que a aguarda, mas como uma história que precisa ser olhada. Ao contrário de seus pais que tentam superar o passado, essa narradora decide conhecer aquilo que a antecede, decide conviver com o que escapa do seu controle. Com isso, ela rompe com a narrativa de ascensão social como uma via de progresso e começa a rascunhar a história que deseja elaborar para si mesma. Dessa maneira, a desmarginanalização em “A vida mentirosa dos adultos” é mais do que uma experiência desestruturante, é também uma abertura.

Ao fim do romance, depois de testar diferentes experiências com seu corpo, Giovanna parte de sua cidade natal em uma viagem que é também o início de uma promessa: “No trem, prometemos novamente que nos tornaríamos adultas como jamais havia acontecido com nenhuma mulher”. Esse final em aberto nos convoca a investigar qual trajetória essa narradora escolhe traçar. O que significa se tornar uma adulta como mulher alguma jamais experimentou? Como é possível adentrar uma via inédita em vez de repetir os destinos inscritos em nossas origens? Que tipo de expansão das possibilidades é essa? Como a desmarginalização pode ser o início da invenção do desejo?

Lendo “A vida mentirosa dos adultos” me peguei pensando no tipo de fascínio que Ferrante provoca. Enquanto grifafa o livro que seria lido em sequência por minha mãe, me perguntava se ela também destacaria as mesmas passagens que eu ou se a sua leitura se enveredaria por caminhos diferentes. Como ela interpretará o final em aberto de Giovanna? Sinto que nesse mesmo livro coexistem muitos olhares e cada leitora pode ser fisgada por uma marca específica. Lendo Elena Ferrante me pergunto sobre o que nos une em torno desses livros. Penso em mim mesma e nas minhas companheiras de tempo histórico. Nos vejo conquistando oportunidades que nossas mães não tiveram e tentando negociar com a distância que os avanços provocam. Lendo Ferrante, entendo porque uma mulher precisa fazer análise (ou escrever um livro ou abandonar sua cidade natal) para conviver com os seus desejos sem se desmarginalizar. Mas, principalmente, enquanto leio esses romances me pergunto como transformar a vigilância em vigência. Como criar um modo de vida em que a ideia de progresso não exista e a origem seja uma história que ainda pode continuamente ser (re)contada.

Esta resenha foi publicada na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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