A poesia é uma coisa que voa?

Considerações sobre a performance “Coisas que voam” de Angélica Freitas e Juliana Perdigão”

Mulheres que Escrevem
Mulheres que Escrevem
7 min readDec 4, 2018

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Em julho e outubro deste ano, a poeta Angélica Freitas e a cantora e compositora Juliana Perdigão realizaram performances na Audio Rebel, em Botafogo e no Teatro Ipanema. As apresentações se deram a partir dos zines “Coisas que voam”, “Canções de atormentar”, “Crianças Kids” e “Consumo”. Escritos pela poeta e com desenhos de Juliana, os zines feitos em papel ofício dobrado e vendidos na porta traziam temas como sereias bocejando para marinheiros, um aplicativo de notícias para crianças e o diário da cadela Laika na Sputnik. As sessões que consistiram em uma sofisticada vocalização, com samplers e sintetizadores, musicalização de poemas e sons variados foram marcadas por um tom de humor, já recorrente na produção de Angélica Freitas.

Esse investimento no humor, presente desde Rilke Shake (2006), primeiro livro de poemas de Freitas, se coloca como forma de tratar diversos temas em sua obra. Serve tanto para o tratamento da tradição da poesia (“rilke shake” ou “toasted blake”) como para tensionar discursos sobre gênero, o que se vê no posterior Um útero é do tamanho de um punho (2012). Trata-se de um tom, no mínimo, interessante tendo em vista o contexto brasileiro de consagração de uma tradição da cultura que tanto valoriza discursos ditos “nobres” e “eruditos”. Neste sentido, parece se contrapor à característica dos “grandes intelectuais brasileiros” que simbolizam uma determinada retórica e que fazem parte de nosso repertório desde o ensino básico.

Em “Coisas que voam”, Angélica e Juliana começam por um texto que faz referência à notícia de um padre que se amarrou à balões de gás e voou pela cidade. A performance começa com a reprodução da voz de Angélica gravada lendo o trecho inicial:

um padre pode voar
um padre é uma coisa que voa
especialmente
ah especialmente se atado
a mil balões de hélio
e se as cores que o transportam
são laranja branco e vermelho
balões num emaranhado
feito ovo de sapo
um padre foi feito para andar no chão
ser rasteiro como um sapo
mas não
acontece que padre é uma coisa que voa
o padre não se preocupou com o ridículo
quem se preocupa com o ridículo
não voa
não levanta do chão
e você sabe que o ser humano
nasceu para brilhar
o ser humano é uma coisa que voa
nas imagens do celular
o padre e seus balões são um cacho de uva
que desaparece entre as nuvens

Os versos são ouvidos até um determinado ponto do texto até que vão se abafando, sendo disposto em diferentes nuances sonoras, se fazendo de difícil compreensão, até se tornarem uma espécie de ruído intergaláctico. Faz-se incompreensível a voz. Em algum momento, há apenas um farfalho que logo se torna sussurro contínuo e, novamente, ruído. O ruído da voz da gravação prossegue enquanto Angélica, de carne e osso, começa a leitura sobrepondo-se ao áudio indecifrável da Angélica gravada. Com ritmo ora rápido, ora lento, marca com alguma ênfase as últimas sílabas, ora rimam, ora não. Diversos sons aéreos e de flutuação atravessam sua leitura, seguida também, de risos da platéia. A voz ganhando o ritmo de flutuação. A voz também uma coisa que voa. Leitura e ruído: o poema voando pelo ambiente.

O padre natural de Pelotas, também cidade natal de Angélica Freitas, ficou conhecido como “padre do balão”. Sobre ele, se sabe que seu nome é Adelir Antônio de Carli, de 41 anos e que levantou vôo com aproximadamente mil balões de hélio em 20 de abril no Paraná. Adelir desejava quebrar um recorde de vôo de um americano que teria voado 19 horas, a fim de arrecadar fundos para sua pastoral. “O religioso estava em uma cadeira flutuante, usava uma roupa térmica, levava dois celulares (…), e um aparelho de GPS, que ele não sabia operar.” (NOTÍCIAS TERRA, 2011).

Angélica, formada em Jornalismo pela UFRGS, investe em um procedimento próximo às defesas modernistas. Faz, desta forma, quase um “Poema tirado de uma notícia de jornal”, à moda de Manuel Bandeira, deixando-se entrever o lugar do cotidiano, do jornalístico, da vida em sua produção.

Esta manifestação do cotidiano se apresenta não só na escolha de notícias de jornal, mas nos modos de fazer e ler. O modo de ler muito se aproxima de uma crítica realizada desde o modernismo aos parnasianos. Se refletirmos sobre o lugar da oratória na história da cultura brasileira, é notável o prestígio aos grandes intelectuais e conferencistas, em sua maioria homens.

O modernismo teve um papel relevante, sobretudo, em uma mudança de tom. Os teóricos Gonzalo Aguilar e Mario Cámara (2017) comentam que o modernismo brasileiro marcou uma oposição à uma tradição bem particular: aos parnasianos e à sua oratória “construída na base da impostação e do rebuscamento”. Nos próprios manifestos de Oswald de Andrade, como os autores pontuam, aspectos estéticos como o uso de humor e a ironia podem ser percebidos como elementos de contraposição à uma retórica que perdurava desde o Brasil Colônia.

Em defesa de uma oralidade corriqueira, Manuel Bandeira, publica em Carnaval (1919), seu poema “Os sapos”. Dentre as diversas espécies de sapos apresentadas no poema, algumas delas se vangloriam pelas ocupações de seus pais e de sua classe social. O sapo-boi, por exemplo, grita que seu pai foi à guerra e que também foi rei. Já os sapos-tanoeiros, chamados “parnasianos aguados” se ocupam de enaltecer sua arte e seus versos bem trabalhados. Esses sapos poetas que tinham pais reis ou guerreiros assinalam uma figura do poeta de classe social abastada e de um discurso retórico e “grandioso”. Em outro momento do poema, é mencionado o sapo-cururu, espécie amazônica, junto da presença de registros orais e cantigas infantis. Esses aspectos aparecem como contrapartida a produção literária parnasiana, ou seja, elementos que não eram considerados “nobres”, desde a própria escolha do sapo, animal rasteiro e abjeto, fazem frente ao imaginário da poesia “elevada”.

Cabe aqui um retorno ao modernismo, pois se aproximam dele alguns procedimentos de Freitas, como os ready-mades ou o humor e a ironia tão constantes. Essa aproximação entre Bandeira e Freitas, entre um poema que traz à tona os sapos e entre uma performance de sapas (sapatonas, lésbicas), ambos seres abjetos, pode ser vista como uma radicalização da oposição à um tom grandioso. Se contrapondo ao tom falocêntrico e heterocentrado de parte da tradição da literatura e da cultura, os poemas e as performances de Freitas e Juliana põe em questão debates de gênero através não só da temática, mas também pela leitura em si, pela performance do casal na leitura.

Em uma operação verbocorporal, vemos duas sapas realizando uma performance, trocando carícias e beijos durante a apresentação e provocando risos. Ocorre uma performance particular de gênero/sexualidade pouco ou nada realçada na história da cultura brasileira. Angélica e Juliana deslocam, do ponto de vista do gênero, o feminino de um lugar hegemônico essencialista e se deixam entrever por suas linhas de fuga, pelos gritos, pelos ruídos. Uma performance ruidosa, um gênero ruidoso. O gênero como uma coisa que voa, que flutua, que não é estanque. Os ruídos que seguem a leitura de poemas do zine, os beijinhos de Angélica e Juliana, o barulho agudo de balões de festa se esvaziando na apresentação, todos desestabilizadores de uma determinada tradição retórica da poesia. Ou mesmo de uma tradição da poesia. Há um gesto de colocar o corpo no poema e o poema no corpo, deixando entrever as tecnologias de construção do corpo-poema: tecnologias sonoras ou vocais e tecnologias de produção do sexo/gênero.

Assim, tanto a tradição da cultura como o próprio conceito de poema são sacudidos estética e politicamente por duas sapatonas. Os elementos performativos reconfiguram instituições estáveis de autor e provocam a implosão ou o alargamento da noção de texto, poesia, música e teatro. A performance inviabiliza a leitura isolada dos textos a tal ponto que não faz sentido algum considerá-los somente grafismo. Se desconformam de um conceito de poema alicerçado na palavra escrita, na leitura cerrada, no grafocentrismo. Ou seja, propõe-se novos limites para o poema.

Embora a poesia seja colocada para voar nessa performance, embora tenha seus elementos vocalizados e soprados pelos ares, embora tematize um vôo, uma busca (do padre) pela elevação, o que parece impactar é justamente seu aspecto rastejante e abjeto, de sapo, de sapas. A esquisitice das performances de gênero, a excepcionalidade de um humor crítico vindos de duas mulheres e a oralidade na escrita potencializam não uma subida ao divino, aos céus, ao elevado socialmente. Mas o que enfatizam é justamente a capacidade da poesia de se manter flutuando, de se libertar do texto enquanto grafismo, de ser musicada e, portanto, gravável de cor (“par coeur”, nos corações), atravessando diferentes corpos. A poesia é uma coisa que voa.

Texto adaptado da comunicação “D”Os sapos” às sapas: uma contraposição à grandiloquência na performance “Coisas que voam” de Angélica Freitas e Juliana Perdigão” no Claro Enigma, evento organizado pelos monitores do Departamento de Ciência da Literatura da Faculdade de Letras — UFRJ.

Juliana de Assis é graduanda em Letras na UFRJ e realiza pesquisa sobre poesia contemporânea brasileira sob a orientação da Prof Luciana di Leone. É membro do Núcleo Poesia do Laboratório da Palavra (PACC/UFRJ).

Esse texto foi publicado na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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