A trégua ou a importância da voz da mulher

Natasha R. Silva
Mulheres que Escrevem
3 min readApr 18, 2016

(Este texto foi publicado originalmente na newsletter Mulheres que Escrevem)

Como jornalista, estou acostumada a pensar sempre nos fatos. Acontece que a vida real supera a ficção e não é possível ter uma visão mais fria e distanciada de tudo na vida.

Essa semana li “A Trégua”, do Mario Benedetti. É um clássico da literatura latinoamericana e eu tinha ouvido falar maravilhas dele. Minha companheira de apartamento inclusive disse que era seu livro preferido. Comecei a ler toda emocionada e me senti uma ignorante ao não ver o lado incrível do livro. Fiz um esforço, considerei que era um retrato de Montevidéu nos anos 50 e que tinha muitos absurdos por isso, porque era fiel aos fatos… mas o meu lado emocional ganhou do lado jornalista e eu comecei a implicar com essa tal obra prima.

Nessa história em que um homem, viúvo e perto de se aposentar, se apaixona por uma jovem funcionária que vem trabalhar com ele, eu poderia ter visto uma grande história de amor e uma inspiradora trama sobre como a vida pode surpreender até quando você acha que tudo está acabado.

Mas não.

O que eu vi foi um livro em que um homem não questiona nem por um minuto a sua posição perante a vida. Aos 50 e tal anos, ele é bastante infantil e vê com bastante desprezo as pessoas a sua volta. Nesse livro, aclamado pelo seu realismo e humanidade, todos os personagens, exceto nosso incrível protagonista, são seres humanos rasos e limitados, incluindo os seus filhos.

Mas o que é pior, de longe, é que não há uma única mulher bem representada nesse livro. Santomé, o protagonista, dedica infinitas e ofensivas comparações entre sua jovem namorada e sua esposa morta. Ele considera que pode guiar a jovem em seu caminho de vida e, em um raro momento de honestidade, confessa que tem medo de que ela lhe coloque um par de chifres. A história gira em torno dessa descoberta do amor, mas a gente só sabe de como é o amor para ele, o homem. A jovem mulher mal dá um pio.

Conversando sobre isso, soltei sem pensar que esse e tantos outros clássicos da literatura mundial correspondem à categoria de livros para homens adolescentes. E para mim é bem a verdade. Todo esse mimimi, todo esse egocentrismo disfarçado de falso romantismo corresponde a um clássico desde que saia da boca de um homem. Se a protagonista é mulher, fica marcado como um livro bobinho, exageradamente sentimental e até, quem sabe, um pouco histérico.

A vida toda quis poder escrever ficção, mas não consigo. Posso imaginar mil histórias nos meus delírios mundanos, mas construir personagens e conduzir histórias que não são reais não é uma possibilidade para mim. No entanto, lendo “A trégua” e tantos outros livros ao longo da vida que reduzem a imagem das mulheres a nada, senti a necessidade de entrar no projeto de escrever para reverter essa onda.

Fica essa carta então, como uma espécie de resolução de fim de ano: Como não consigo entrar no mundo da ficção, me mantenho no projeto do jornalismo e da newsletter, de pelo menos divulgar o trabalho de mulheres incríveis que estão lutando por aí, com os dinossauros da Literatura, para fazer com que todas sejamos escutadas — inclusive nos papéis de coadjuvante.

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Natasha R. Silva
Mulheres que Escrevem

Cocriadora da Mulheres que Escrevem. Gosto de descobrir coisas.