A universidade tem responsabilidade pela cultura do estupro

Taís Bravo
Mulheres que Escrevem
4 min readMay 29, 2016

Uma vez, em um sala de aula de um curso de mestrado, um professor começou a apontar o quanto nossa sociedade é machista. Tudo ok até o momento em que soltou um “o que eu não entendo é que existem mulheres machistas”. A frase foi recebida com várias cabeças acenando em concordância. Cabeças de homens, porque eu era a única mulher naquela sala. Quando eu questionei esse professor, ele se preocupou mais em se defender do que em me ouvir. Até que em um dado momento ele, que já tinha um tom de voz alto, gritou comigo, reproduzindo o mesmo machismo que condenava. Naquele momento eu tive vontade de ir embora e nunca mais voltar para aquele curso. Eu não sei se foi o feminismo ou meu orgulho que me deu forças pra continuar aquela discussão. Mas continuei até que ele entendesse o que tinha feito, o quanto sua postura autoritária era machista e como ela afetava de modo diferente suas alunas e seus alunos. Saí daquela aula, sentindo que ganhei um pouquinho, mas o desgaste era imensamente maior do que qualquer alívio.

O único momento em que eu consegui começar a acertar as certezas desse professor foi quando fiz a pergunta: Quantas professoras existem nesse departamento?

A resposta: uma.

A resposta é que, na teoria, há muitas pessoas dentro dos espaços universitários que são profundamente contra o machismo e qualquer tipo de sexismo. O fato é que vivemos tão entranhados em uma estrutura patriarcal que é fácil não enxergar todos os pontos nos quais isso nos atinge. É ainda mais fácil se, de alguma forma, você é privilegiado por essa estrutura — digo isso como uma mulher de classe média, não-branca, mas com uma considerável passividade branca.

Eu não abandonei meu mestrado por causa dessa discussão. Existem uma série de fatores e problemas que me deixaram em crise com o sistema acadêmico. Mas é inevitável que o machismo está entre esses fatores.

Durante toda a minha graduação, discuti com professores, colegas de curso e amigos próximos. Nas salas de aula, nos bares e no facebook.

Durante a minha graduação, eu vi diversos professores exporem suas alunas das mais diversas formas, de piadinhas até relacionamentos abusivos.

Durante a minha graduação, eu tive só dois cursos com professoras.

Mas, tudo isso, é visto como normal. Talvez não seja exatamente bom, mas também não é nada que não consigamos aguentar. Vivemos em um país extremamente machista e as universidades são apenas um reflexo da desigualdade de gênero. Desgaste e violência psicológica são a parte mais fácil, não reclame de boca cheia. Continue estudando para mudar isso. Continue sendo ignorada como um ser pensante pelos seus professores e colegas. Continue se desgastando emocionalmente em um ambiente que deveria te educar e preparar para o seu mercado de trabalho, porque esse desgaste vai mesmo fazer parte do seu trabalho. Porque, quando você for professora, se você não for ríspida não te levarão à sério e, se você for, será chamada de mau comida. Continue se esforçando mais do que todos. Continue sofrendo, porque faz parte.

Talvez o pior seja reconhecer que, por mais desgastante que tenha sido, minha graduação não foi mesmo das piores. Eu não fui assediada por professores, não sofri qualquer tipo de abuso físico ou sexual. Eu, na verdade, tenho sorte. Há milhares de mulheres que não tiveram a mesma sorte que eu. Há milhares de mulheres que sofreram assédios dentro de seus campus e foram obrigadas a continuar convivendo com seus abusadores, sejam eles professores ou alunos. Há milhares de mulheres que não aguentaram viver dentro desses espaços hostis e abandonaram seus cursos. Os seus abusadores continuam dando aulas, estudando, se formando. Seus abusadores serão nossos futuros professores, advogados, médicos, companheiros de trabalho. Algumas dessas mulheres não suportaram mais viver em uma sociedade na qual tal injustiça é completamente aceitável. Isadora, que era uma das alunas em luta da Rural, foi uma dessas mulheres. Há ainda alunas, como Louise Ribeiro e Thais Mendonça, que foram assassinadas por homens que eram seus companheiros dentro de seus campus universitários.

As universidades precisam reconhecer que são parte da violência de gênero que acontece em nosso país. A universidade é mais um dos espaços nos quais essa violência é naturalizada.

A universidade tem responsabilidade pela cultura do estupro. A universidade tem responsabilidade quando não debate questões de gênero. A universidade tem responsabilidade quando reproduz a desigualdade de gênero em seus departamentos. A universidade tem responsabilidade quando não cria espaços seguros para suas alunas. A universidade tem responsabilidade quando é indiferente à violência contra a mulher. A universidade tem responsabilidade quando não escuta os apelos de suas alunas. A universidade tem responsabilidade quando não expulsa os estupradores e permitem que circulem no mesmo ambiente que suas vítimas. A universidade tem responsabilidade por sua negligência e silêncio.

Enquanto alunas são violentadas e mortas dentro dos campus universitários, lugares em que deveriam estar seguras e acolhidas, as universidades são um instrumento da misoginia. Enquanto as universidades não criam projetos e estratégias para combater a violência contra suas alunas, elas são instrumentos da misoginia.

Isso precisa parar. É pelas nossas vidas, é por nosso futuro. É por Isadora, por Louise, por Thais. É para que nem uma a mais sofra. Gritaremos até que nos escutem: A universidade tem responsabilidade.

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