Amigas & rivais

Elena Ferrante e a pós-sororidade

Taís Bravo
Mulheres que Escrevem
4 min readDec 4, 2016

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Quando leio Elena ferrante uma corrente elétrica me atravessa.

Não é apenas a identificação com suas personagens, é reencontrar sentimentos e vivências do meu passado a partir de outro lugar. É uma perspectiva que permite uma reconciliação com minha raiva, confusão e desejos.

Eu sinto mais uma vez que há um oceano inquieto dentro de mim e que não existe recipiente no mundo que seja suficiente para me conter ou guiar. Os livros não assinados de Elena Ferrante fazem o oposto de um respaldo ou um acolhimento, eles impulsionam minha ressaca: transbordo, como Lila, perco as margens.

Parece que ser uma mulher neste mundo é aceitar o fato de que será preciso negociar com medidas insatisfatórias, fazer o que for possível. Então, se justifica a raiva, a inveja, a vontade de justiça, a confusão de desejos e impossibilidades.

Quanto mais leio, mais entendo o quanto uma certa compreensão de feminismo me fez mal. A ideia de compreensão absoluta que existe na aposta da sororidade ignora nossas diferenças em uma exigência de empatia que não mede desigualdades. Essa aposta — que muitas vezes se confunde com um imperativo — me feriu e fere, porque ignora que todas as relações são relações de força. E assim passamos a sentir culpa pelas reações diante desses relacionamentos, podamos nosso ódio, nossa inveja e rivalidade — como se precisássemos de mais alguma coisa para recalcar.

“Quanto a mim, ao vê-la tão maltratada, meu coração subiu à garganta e a abracei. Quando disse que não me procurara porque não queria que a visse naquele estado, meus olhos se encheram de lágrimas…No entanto, devo admitir, também experimentei um prazer sutil. Fiquei até contente ao descobrir que Lila agora precisava de ajuda, talvez até de proteção, e me emocionou aquela admissão de fragilidade não em relação ao bairro, mas a mim”. (A história do novo sobrenome)

Elena expõe as relações entre mulheres de um modo brutalmente honesto, dando espaço para que a admiração se confunda com inveja, o desejo com o ódio e o amor seja algo complexo, incoerente e violento.

Lina e Lenu são amigas e rivais, antes de qualquer coisa, são interlocutoras. Estabelecer esse tipo de relação é superior a qualquer promessa de acolhimento incondicional. Lina e Lenu são de uma potência completamente diversa do ambiente de migas tão positivas e carinhosas nos comentários das selfies no Facebook. Elas se devoram, medem cada passo que dão traçando comparações, constroem uma rivalidade que é movimento porque impõe que cada conquista seja propriamente respondida por outra. Principalmente, elas fundam, em um universo de homens, seus próprios parâmetros.

E existem os homens nessa competição, porque eles são parte incontornável das negociações e concessões que essas mulheres precisam fazer em suas sobrevivências. A rivalidade parte pelo desejo deles também. Mas o que elas disputam entre esses rapazes não são exatamente quem eles são, mas o que podem prometer. Os homens são uma possibilidade de ascensão ou estabilidade social que Lina e Lenu precisam para continuar em movimento. São pequenos andares que atravessam movidas por um vontade que vai muito além do desejo de ser amada.

“Tentei não me encontrar com ela por um tempo, estava com raiva…Talvez eu tenha de apagar Lila de mim como um desenho na lousa, pensei, e foi, acho, a primeira vez que aquilo me ocorreu. Me sentia frágil, exposta a tudo, não podia passar meu tempo perseguindo-a ou descobrindo que ela me perseguia, e em ambos os casos me sentindo inferior. Mas não consegui, voltei logo a procurá-la. Deixei que me mostrasse como sabia escrever todas as palavras italianas em alfabeto grego. Quis que eu também aprendesse aquele alfabeto antes de ir à escola, e me forçou a lê-lo e escrevê-lo”. (A amiga genial)

Lina e Lenu desejam o tempo inteiro algo a mais. Esse desejo sem margem, sem alvo, sem nome só encontra um rumo na partida que se passa entre elas. É natural que diante de tanto peso e comparação nasça todo tipo de cobiça, inveja e ressentimento.

Porque Ferrante não esconde ou julga essa violência, me reconcilio com grande parte de quem eu sou.

O ódio quando parte das mulheres dificilmente cabe em narrativas cruas, é preciso sempre romantizar, nos dar algo mítico próprio a forças da natureza — pense na peça Gota D’água por exemplo. Em Ferrante não há isso, só há o que somos, humanas.

A possibilidade de duas mulheres serem amigas e rivais é, para mim, infinitamente mais importante do que a promessa de união incondicional entre as mulheres. Porque é mais importante que as mulheres possam apenas ser gente, ou seja, equivocadas, vacilantes e contraditórias. Gente e não bibelôs domesticados. Gente e não a falsa figura materna própria ao acolhimento.

Há um tempo ouvi em uma aula que o comunismo precisava pensar a questão da pulsão de morte, porque a ideia de construir uma comunidade sem levar isso em conta é de uma ingenuidade que solapa qualquer início. Penso o mesmo do feminismo. Enquanto acreditamos que, a parte os boy lixo, todo mundo é bom e somos todas maravilhosas, apenas apostamos em outra forma bastante pueril de alienação. Nesse caso, uma alienação de nós mesmas, de nossa potência e violência, mais uma vez, de nós enquanto gente.

É por isso que Elena me faz trincar os dentes e chorar — depois de um ano em que conto nos dedos das mãos as vezes em que consegui chorar. Porque seus livros são um lugar para ser com toda a minha potência.

Para ouvir o podcast que gravamos com Taís Bravo, clique aqui!

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