As ansiedades de ser autônoma

As narrativas que ratificamos afetam a realidade para além dos nossos limites individuais

Taís Bravo
Mulheres que Escrevem

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Uma verdade que toda escritora conhece intimamente é a variedade de sentidos que cabem em uma mesma palavra. Nosso ofício nos demanda atenção aos detalhes e ao contexto de cada termo. Por isso, para nós talvez seja mais evidente como um pequeno desencontro em uma interpretação pode alterar completamente o sentido de um texto. Acredito que a cautela que nosso trabalho demanda nos ensina de um modo prático o quanto as palavras moldam nossa realidade e são mais poderosas do que a maioria das pessoas supõe que seja.

Hoje é quase banal se falar em ansiedade. Ela — junto à depressão — é o mal do nosso tempo e ganha destaque nos jornais, nas revistas e livros de autoajuda. No entanto, ao mesmo tempo em que a palavra “ansiedade” guarda esse emprego em um contexto alarmante, ela também faz parte de nosso vocabulário cotidiano. Ainda que ansiedade possa ter diferentes sentidos, causas e impactos em nossas vidas, parece ser um fato irrefutável que todos estamos ansiosos.

O que as narrativas midiáticas nos dizem é que se sentir em um constante desajuste com o tempo é algo recorrente, é um sintoma da nossa contemporaneidade. Quando a ansiedade passa a ser um estado normal, é porque há alguma coisa desequilibrada e, talvez, não seja um problema exclusivamente subjetivo ou psicológico, mas fundado em questões socioeconômicas.

O excessivo e descuidado uso da ansiedade provoca confusões que nos afetam profundamente. Dessa forma, quando alguém se diz ansioso é possível que a ansiedade seja apenas por conta de uma notícia boa ou seja fruto de um momento de estresse. Contudo, também existe a ansiedade que é mais do que uma mera sensação, que se impõe enquanto uma estrutura, um modo de lidar com a realidade. Compreender o que está em jogo nos diferentes sentidos dessa palavra é algo de extrema importância. A partir dessa compreensão podemos nos situar melhor e perceber quais cuidados devemos tomar com nós mesmos e com os outros, já que as narrativas que ratificamos afetam a realidade para além dos nossos limites individuais.

Ilustração por Fuco Ueda.

No caso de quem é trabalhadora autônoma, como a maioria das mulheres que escrevem, a ansiedade parece ser um estado permanente. A possibilidade de ser responsável por sua própria rotina e ritmo de trabalho é libertadora, porém exige que uma série de decisões sejam tomadas diariamente. Gerenciar a própria rotina pode ser desafiador, principalmente, quando ainda não se conquistou uma carreira mais sólida. É difícil organizar um ritmo de produção saudável e equilibrado quando não temos muita certeza da demanda de trabalho e, principalmente, das possibilidades financeiras que nos aguardam. Às vezes parece que faz parte da vida de um profissional autônomo alternar entre dois tipos diferentes de desespero: o desespero para encontrar mais trabalhos em um mês que foi fraco e o desespero de quando diversas oportunidades aparecem ao mesmo tempo — geralmente com prazos absurdos — e você aceita todas movido por um instinto de sobrevivência digno de um animal que se prepara para o inverno.

Em uma sociedade que glamoriza o estresse como um sinal de produtividade, a instabilidade que faz parte da vida de tantos profissionais autônomos torna-se ainda mais estressante. Afinal, em um mercado instável no qual todos estão sempre em busca de novos trabalhos, mostrar-se sobrecarregado de tarefas nada mais é do que ostentar o sucesso profissional. Há bastante tempo se construiu uma ideia de que estar sempre ocupado — ou sobrecarregado — é algo admirável. O fato de falarmos excessivamente sobre ansiedade é um sintoma do quanto ratificamos essa ideia em nossas próprias narrativas cotidianas. Nesse contexto, a ansiedade é algo difícil, mas parece ser muito melhor do que o marasmo de quem não tem tantas tarefas a cumprir. Marasmo que, evidentemente, não existe. Se você não tem uma vida corrida para ostentar, você está ansioso pensando no que fazer para conseguir mais trabalho, ser mais bem sucedido e viver a maravilhosa vida das pessoas que não param de falar sobre o quanto estão ocupadas. Dessa forma, construímos uma narrativa — e uma realidade — na qual não há a possibilidade de existir sem estar em conflito com o tempo.

Diante desse cenário, meu conselho é que consigamos realizar o mesmo exercício que realizamos em nosso trabalho em relação à nossa saúde mental, isto é, dedicar aos nossos sentimentos a mesma atenção que investimos nas palavras. Afinal, qual é o significado e o contexto de nossas angústias? Até que ponto o que sentimos cabe em um simples desabafo ou nos demanda mais tempo, pesquisa e ajuda até conquistarmos uma formulação mais acertada? Aprender a importância e a dimensão do que sentimos não é algo fácil — principalmente em uma dinâmica socioeconômica que nos impõe uma produtividade incessante — mas é uma necessidade vital. Há muitas possibilidades de curas e cuidados para nossa saúde mental, isso é algo que não ouso opinar, mas sei que o início de qualquer uma dessas opções começa com um olhar mais honesto e atento para nós mesmos.

Ilustração por Fuco Ueda.

Junto a isso, acredito que é fundamental entendermos que nosso bem estar psicológico e mental é tão importante quanto qualquer outra questão de saúde. Qualquer pessoa acharia insensato que alguém insistisse em trabalhar em meio a uma crise de tendinite, então, por que é diferente no caso de uma dor ou doença psicológica? A verdade é que nos acostumamos a negligenciar nossa saúde para nos mantermos produtivos e isso é ainda mais recorrente quando se trata de um problema psicológico. Muitas vezes um profissional autônomo se vê obrigado a trabalhar mesmo quando está doente para não correr o risco de perder prazos e, consequentemente, clientes. Em meio a essa realidade, ter tempo para cuidar de nossa saúde mental é, de fato, um luxo.

Contudo, se você pode desfrutar desse privilégio, faça isso, sem culpa. Não insistir em narrativas que nos impõem realidades cruéis e insuportáveis é um desafio da maior importância. Independente do quão grave é a sua ansiedade, reconheça que seu corpo e sua cabeça não são coisas dissociadas e, portanto, entenda que saúde mental é uma questão vital. Porque, ao contrário do que tantas narrativas nos dizem, nossas vidas valem muito mais do que as nossas produtividades.

Para ouvir o podcast que gravamos com Carla Soares sobre este texto, clique aqui!

Este texto foi originalmente publicado em nossa newsletter no dia 22/08 e faz parte da iniciativa Mulheres que escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer colaborar com a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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