Assassinato na Siqueira Campos
Talvez meu rosto feroz saia no jornal, irreconhecível, rindo ou chorando
Enquanto saio do metrô, andando na minha rua, com as gotas leves demais para abrir o guarda-chuva, mais um homem passa por mim e diz qualquer coisa que não me interessa. Me pego imaginando a próxima vez em que ouvir “gatinha molhada” num dia de chuva.
Para minha própria surpresa, jogo minha bolsa no chão, grito e me atiro no pescoço do homem, com as unhas grandes que não tenho, vermelhas pra combinar com o sangue que começa a sair das feridas que faço. Histérica e descontrolada como me querem. A Siqueira Campos inteira olha a cena, enquanto o moço da tapioca sai correndo da sua barraquinha, se aproxima e me segura, tentando aplacar minha fúria.
Outras mulheres seguram com firmeza sua crianças pelos punhos, permitem o olhar, alguns segundos educativos para as meninas: "seja boa e comportada, aceite os elogios, não faça isso".
A carteira aberta com dinheiro para fora; os livros — tão venerados no nosso pequeno império — jogados por todos os lados, as folhas dentro das poças, meu cabelo, bem curto, preso ao suor da minha testa com o esforço da briga.
Me oferecem até uma água com açúcar.
Pois vai que fecham o trânsito e atrapalho todo mundo. Cada uma das pessoas precisaria me chamar de louca no trabalho, justificar o atraso. Mesmo assim os carros diminuem a velocidade pra me ver ensanguentada, minha vítima no chão.
Talvez meu rosto feroz saia no jornal, irreconhecível, rindo ou chorando, ainda não decidi, mas seria uma fotografia em preto e branco; viraria uma dissertação de mestrado em 2056, avaliando os discursos narrativos de cada reportagem sobre a jovem feminista que finalmente matou, de alguma forma que não sei explicar. Todas as referências remeteriam a uma possível loucura pelo calor, ainda que fosse um dia de inverno e chuva, dirão ser o efeito Copacabana.
No fim, continuo andando com a cena se desdobrando na minha cabeça, aplacando uma raiva que não passa. Por fora, faço minha melhor cara de desdém e reviro os olhos, finjo pra mim mesma que já bastam meus sapatos sujos, mancha de sangue é muito difícil de tirar.
Esse conto foi publicado na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!
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