Bicicleta prateada, sem marca

Eu dispensei a esses pedaços de metal um carinho que não sabia que era capaz de ter. Por ninguém.

Mulheres que Escrevem
5 min readApr 4, 2018

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Na primeira semana em que estava com ela, passei tardes na oficina arrumando suas peças. Lembro-me até hoje da silenciosa disputa pela chave de boca número 15, a perfeita para tirar os parafusos das rodas. Lembro-me também do macacão que eu usava — parecia fantasiada para melhor me adequar ao ambiente. Na primeira daquelas tardes, tirei a corrente a partir de um de seus dentes e lavei a graxa velha, todas as camadas de poeira que eu, insuportavelmente poética, pensava serem um acúmulo de trajetos e histórias de caminhos. Ela estava em pedaços diante de mim, cada peça com um nome, uma função, e a junção delas todas compondo um outro nome e a esquisita sensação de que eu era responsável por aquilo, por cada parte e pelo todo. Dispensei a esses pedaços de metal um carinho que não sabia que era capaz de ter. Por ninguém. Falhei em entender o mecanismo da marcha e acabei por me impedir de deixá-la mais leve ou mais pesada, porque um movimento do câmbio fazia saltar a corrente pra fora. Com a bicicleta montada, eu, à sua esquerda, jogo minha perna direita pelo cano e, em pé nos pedais, começo a pedalada. Sobre ela, a ideia de quem domina quem é estúpida, infértil. Estamos juntas, afinal. Troquei as pastilhas do freio na segunda ou terceira daquelas tardes na oficina, alinhei direito para que encaixassem precisamente sobre a parte de metal, mas não demorou muito para um dos pedaços do v-brake se mostrar pouco confiável. O cabo de aço de vez em quando se solta na parte dianteira e preciso parar, os pés fazendo as vezes de freio, para colocá-lo de volta. Teve um dia em que pensei não arrumar, em andar sem breque, e seguir direto o caminho até sua casa. Chegaria à sua rua, no bairro vizinho, e diria “não pude parar, o freio falhou” e percorreria o trajeto escuro, um pouco sombrio, matando saudades daquelas noites quentes de outubro. Eu sentiria o cheiro das plantas e meu coração bateria acelerado porque ainda não me esqueci do seu apartamento. Mas, parada no meio da ciclovia, arrumei o freio e não fui visitar as pastilhas hidráulicas do prédio em que você morava. Para ser honesta, te conto que, desde a última vez, só passei ali um dia, porque era o trajeto do ônibus. Uma ruazinha tão estreita assim, sempre me admirava o movimento intenso dos ônibus, que faziam o único barulho que eu ouvia quando voltava andando para casa, lá pelas onze. Olhei para a janela do seu andar e me perguntei o que estaria sendo da sua vida. Gostar de você foi como aquele ditado sobre aprender a andar de bicicleta. Pego o desvio para a esquerda, o meu desvio, o meu caminho, enfim. Avanço olhando os faróis, já entendendo suas lógicas de funcionamento. Fecha o meu, abre o da perpendicular — que também leva à sua rua, o primeiro caminho que fiz, agora me lembro — e também o da saída do viaduto. Fecham-se esses. Abrem os de pedestres. A essa hora quase não tem mais pedestre. Sobrou só um grupo de, no máximo, quatro pessoas no bar da esquina. Vou avançando lentamente, alguma música no fone, deslizando com as duas rodas pelo asfalto. A bicicleta sou eu, e eu sou ela, somos extensão uma da outra, um movimento de uma desencadeia de imediato um movimento na outra. Eu sou mecânica e ela, orgânica. O farol seguinte está fechado e vejo a marcha quebrada, a marca de ferrugem nos parafusos do guidão, analiso suas peças pensando que é o momento de me desfazer dela. Rio lembrando do meu último tombo de bicicleta, uma história incrível, em que não consegui colocar o pneu no ângulo certo para subir a guia da calçada e fui lançada por cima dela, num átimo de segundo, e no momento seguinte eu estava em pé, a bicicleta largada na rua. Eu caí em pé. Olhei para o lado — era uma rua movimentada da zona norte — e sorri pensando em como, depois de todos os ralados de joelho que as primeiras manobras me causavam, a mania de moleca que tinha de ficar empinando a roda dianteira, finalmente eu tinha tido reflexo para não me machucar inteira. O farol abre, as rodas trepidam sobre um asfalto cheio de ranhuras, escuto barulhos estranhos no cubo central da roda, penso que não vai demorar muito até trocar de bicicleta. Passo por outros bares. Lembro alguns pedaços da conversa que tivemos em um deles, na primeira noite em que saímos. Sorrio, torço para que outras pessoas estejam tendo conversas parecidas com aquelas. Não vai demorar muito até eu trocar de bicicleta, penso novamente quando a coloco dentro do elevador do meu prédio. Mas vou tirar a campainha que uso de buzina. Porei no novo guidão da nova bicicleta. Porque alguma coisa sempre há de ficar.

(Faz alguns meses, eu nem cheguei a te contar, que a cômoda que montei perigou desmontar. As coisas que a gente faz às duas da manhã parecem cada vez menos sólidas e estáveis, quase indesejáveis. Percebi o problema, agachei-me descalça, e apertei os parafusos, até aquele que parecia prestes a espanar. Os tambores minifix ajudaram um bocado. Coloquei as gavetas de volta, levantei, pus os sapatos e saí já meio atrasada com a bicicleta).

Para ouvir o podcast que gravamos com Bárbara Carneiro, clique aqui!

Essa é a segunda crônica de uma série em andamento sobre Objetos & Afetos. A primeira pode ser lida aqui.

Essa crônica foi publicada na iniciativa Mulheres que Escrevem. Somos um projeto voltado para a escrita das mulheres, que visa debater não só questões da escrita, como dar visibilidade, abrir novos diálogos entre nós e criar um espaço seguro de conversa sobre os dilemas de sermos escritoras. Quer saber mais sobre a Mulheres que escrevem? Acesse esse link, conheça nossa iniciativa e descubra!

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